O neurocientista Michel Desmurget, diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da França, escreveu um dos livros mais importantes sobre os riscos do uso das tecnologias digitais pelos mais jovens.
'A Fábrica de Cretinos Digitais: Os Perigos das Telas para Nossas Crianças', editado no Brasil pelo selo Vestígio, compila diversos estudos realizados mundo afora nesse sentido.
E mostra que o cotidiano em frente a um computador ou celular pode acarretar sérios malefícios à saúde do corpo (obesidade, problemas cardiovasculares, expectativa de vida reduzida), ao estado emocional (agressividade, depressão, comportamentos de risco) e ao desenvolvimento intelectual (empobrecimento da linguagem, dificuldade de concentração e memória).
Desmurget ainda desmistifica a ideia de que os chamados "nativos digitais" são mestres da informatica, enquanto os mais velhos têm diculdades nessa área. É o que você lê no trecho a seguir.
Uma objeção essencial, regularmente citada pela comunidade científica a respeito do conceito de nativos digitais, refere-se à suposta superioridade tecnológica das novas gerações.
Imersas no digital, estas teriam adquirido um grau de domínio que não será jamais acessível para os fósseis das eras pré-digitais. Bela lenda; mas que, infelizmente, não está livre de enfrentar, ela também, alguns problemas importantes.
Para começar, até que se prove o contrário, esses fósseis pré-digitais foram (e com frequência ainda são!) os criadores desses dispositivos e ambientes.
Em seguida, ao contrário das cativantes lendas populares, a esmagadora maioria de nossos geeks potenciais apresenta, além das utilizações recreativas mais escandalosamente básicas, um nível de domínio das ferramentas digitais no mínimo titubeante.
O problema é tão marcante que um relatório recente da Comissão Europeia mencionava a “baixa competência digital” no alto da lista de fatores suscetíveis de restringir a digitalização do sistema educacional.
Convém dizer que, em grande parte, esses jovens sofrem para dominar as competências de informática mais rudimentares: criar parâmetros de segurança nos terminais; utilizar os programas funcionais habituais (processador de texto, planilhas, etc.); manipular um documento em vídeo; escrever um programa simples (em qualquer linguagem); configurar um software de proteção; estabelecer uma conexão remota; acrescentar memória a um computador; ativar ou desativar a execução de certos programas na inicialização do sistema operacional, etc.
E isso não é o pior. Com efeito, além das alarmantes inaptidões técnicas, as novas gerações experimentam também dificuldades assustadoras para processar, selecionar, ordenar, avaliar e sintetizar as massas gigantescas de dados armazenados nas entranhas da web.
Segundo autores de um estudo voltado para essa problemática, achar que os membros da Google Generation são experts na arte da busca digital de informação é um mito perigoso. Uma triste constatação corroborada pelas conclusões de uma outra pesquisa de grande alcance, publicada por pesquisadores da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.
Para estes, “em geral, a capacidade dos jovens de refletir sobre as informações na internet pode ser resumida em uma palavra: desoladora. Nossos nativos digitais podem ser capazes de flertar com Facebook e Twitter enquanto, ao mesmo tempo, ‘sobem’ um selfie para o Instagram e mandam uma mensagem de texto para um amigo, mas quando se trata de avaliar informações que desfilam pelos canais de mídia social, eles logo ficam perdidos”.
O pesquisadores ainda afirmam: “De todo modo, e em todos os níveis, ficamos perplexos com o despreparo dos estudantes. [...] Muitas pessoas supõem que, pelo fato de os jovens terem fluência em mídia social, eles sejam igualmente perspicazes no que diz respeito a tudo que encontram nesse ambiente. Nosso trabalho mostra o oposto”.
No final das contas, essa incompetência se exprime com uma “espantosa e desalentadora consistência”. Para os autores do estudo, o problema é tão profundo que chega às raias de uma “ameaça à democracia”.
A nova geração dedica muito pouco tempo para criar o próprio conteúdo
Certamente, esses resultados não são muito surpreendentes, já que os nativos digitais apresentam, nesse ambiente virtual, uma gama de usos ao mesmo tempo limitada e nada espetacular.
As práticas das novas gerações se articulam prioritariamente em torno de atividades recreativas, que são básicas e pouco instrutivas: programas de televisão, filmes, séries, redes sociais, videogames, sites comerciais, clipes musicais, vídeos diversos, etc.
Em média, os pré-adolescentes dedicam 2% de seu tempo diante da tela criando conteúdos (por exemplo, escrevendo, criando arte digital ou música); somente 3% afirmam criar frequentemente programas de informática. Essas porcentagens crescem respectivamente a 3% e 2% entre os adolescentes.
Como escrevem os autores de um amplo estudo sobre esse uso: “Apesar das novas acessibilidades e promessas de dispositivos digitais, a jovem geração dedica pouquíssimo tempo a criar o próprio conteúdo. A utilização de telas de mídia continua sendo dominada por jovens assistindo à TV e vídeos, jogando videogames e usando as redes sociais; o uso de dispositivos digitais para ler, escrever, conversar à distância ou criar conteúdo segue sendo irrisório”.
Uma conclusão que parece ser válida também para os usos escolares supostamente onipresentes. Em média, estes representam uma fração bem inferior do tempo total diante da tela: menos de 8% entre os pré-adolescentes e de 14% entre os adolescentes (13-18 anos).
Dito de outra maneira, quando utilizam suas telas digitais, os jovens de 8 a 12 anos dedicam um tempo 13 vezes maior para se divertir do que para estudar (284 minutos contra 22 minutos). Para os de 13- 18 anos, a marca é de 7,5 vezes (442 minutos contra 60 minutos).
Neste contexto, acreditar que os nativos digitais são os tenores da informática é confundir um carro de boi com um foguete interestelar; é acreditar que o simples fato de dominar um dispositivo digital permite ao usuário compreender o que quer que seja sobre os elementos físicos e os softwares envolvidos.
Talvez este fosse o caso “antes”, nos tempos gloriosos dos primeiros DOS e UNIX, quando a mais simples instalação de uma impressora se transformava num périplo homérico.
Em todo caso, é interessante associar essa ideia aos resultados de um estudo acadêmico que revelou que a utilização pessoal de um computador para fins recreativos estava positivamente correlacionada ao desempenho em matemática dos estudantes nos anos 1990, porém, não mais nos anos 2000 (os da geração de millennials).
Isso se entende, se considerarmos que a utilização e a função dos computadores domésticos mudaram de forma drástica em duas décadas. Para as crianças e adolescentes atuais, como acabamos de dizer, essas ferramentas, consumíveis ao infinito sem esforço ou aptidão particulares, servem essencialmente à diversão.
Hoje em dia, tudo é praticamente plug and play. Jamais foi tão vasta a distância entre facilidade de uso e complexidade de implementação.
Usar o Google é "fácil como escovar os dentes"
Hoje, é tão necessário ao usuário comum entender como funciona seu smartphone, sua televisão, seu computador quanto ao gastrônomo de domingo dominar as sutilezas da arte culinária para poder almoçar no restaurante de um grande chef; e (sobretudo) é extravagante pensar que o simples fato de comer regularmente num bom restaurante permitirá a qualquer um se tornar um cozinheiro experiente.
Na culinária, como na informática, há aquele que utiliza e aquele que concebe... e, para existir, o primeiro claramente não precisa conhecer os segredos do segundo.
Para aqueles que duvidarem, um breve desvio pela população dos imigrantes digitais (expressão usada com frequência para caracterizar os usuários “idosos” nascidos antes da era digital; e que são portanto considerados supostamente menos competentes que os nativos digitais) deverá se provar enriquecedora.
Na verdade, uma infinidade de estudos mostra que os adultos se revelam globalmente, em termos de tecnologia digital, tão competentes quanto seus jovens descendentes.
Até mesmo aqueles indivíduos designados como “seniores” são capazes, sem grandes dificuldades, quando eles julgam isso útil, penetrar nesse novo universo.
Tomemos, por exemplo, o caso de meus amigos Michele e René. Ambos com mais de 70 anos de vida, esses dois aposentados nasceram bem antes da generalização da televisão e do nascimento da internet. Seu primeiro telefone fixo foi adquirido quando ambos tinham mais de 30 anos.
Nada disso os impede, hoje em dia, de possuir uma tela plana gigante, dois tablets, dois smartphones e um computador no escritório; comprar suas passagens de avião pela internet, utilizar o Facebook, Skype, YouTube e um serviço de vídeo sob demanda (VOD), ou jogar videogames com seus netos.
Mais conectada que seu marido, Michele colabora igualmente com a conta no Twitter de seu grupo de caminhada, por meio de selfies e anedotas. Francamente, como acreditar por um só segundo que tais práticas são suscetíveis de transformar quem quer que seja num maestro da informática ou gênio da criptografia?
Qualquer pateta é capaz, em poucos minutos, de utilizar essas ferramentas. Estas, por sinal, são elaboradas e concebidas para isso.
Desta forma, como explicava há pouco tempo ao New York Times um executivo do serviço de comunicação da Google, que decidiu colocar seus filhos numa escola primária sem telas digitais, usar esse tipo de aplicação é muito simples.
”É como aprender a escovar os dentes. Na Google e em todas as suas filiais, nós tornamos a tecnologia tão desesperadamente fácil de utilizar quanto possível. Não há razão alguma para que nossos filhos não possam dominá-la quando forem mais velhos”.
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