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Ativistas socialistas em Bangalore, Índia, 21 de janeiro de 2017, protestam contra o então recém-empossado presidente dos EUA, Donald Trump.
Ativistas socialistas em Bangalore, Índia, 21 de janeiro de 2017, protestam contra o então recém-empossado presidente dos EUA, Donald Trump.| Foto: EFE/EPA/JAGADEESH NV

As redes sociais foram declaradas inimigas públicas.

No Brasil, Europa, Canadá e outros países, correm ou correram quase em sincronia projetos de regulação tendo como alvo os supostos perigos das redes, encapsulados em expressões da moda como “discurso de ódio” e “desinformação”.

O “Relatório de Riscos Globais 2024” do Fórum Econômico Mundial, com base na opinião de 1.490 lideranças e estudiosos, proclamou a “desinformação” como sendo simplesmente o maior risco a ser enfrentado pela humanidade nos próximos 2 anos, acima até mesmo de problemas econômicos, catástrofes ambientais ou conflitos armados (e isso num período anormalmente instável da geopolítica mundial, com guerra já deflagrada na Ucrânia e no Oriente Médio).

No Brasil, o adjetivo que mais se ouve para qualificar a regulação das redes sociais é “urgente”.

Redes sociais são antigas

A pergunta que quase nunca se faz é de onde viria a suposta urgência, já que, ao contrário do que essa linguagem sugere, as redes sociais não são tão novas assim. O Facebook já completou 20 anos de existência, tendo surgido em fevereiro de 2004; o YouTube é de 2005; o Twitter (atual X), de 2006.

Não se pode falar nem mesmo em “ausência de regulamentação”, como faz, por exemplo, o ministro do STF Alexandre de Moraes. Essa afirmação é, ironicamente, ela própria uma “desinformação” no debate público: o Congresso Nacional já fez, explicitamente, a sua regulação das redes sociais ao editar o Marco Civil da Internet (Lei n.º 12.965).

O que incomoda os adeptos desse discurso não é verdadeiramente a “ausência” de regulamentação, e sim o conteúdo dela. O que o Marco Civil buscou foi justamente fomentar a atividade das redes sociais, dando segurança jurídica às plataformas ao isentá-las de responsabilidade pelo conteúdo postado pelos usuários. Essa lei data de 2014, ano em que o espírito era diferente nas elites políticas, intelectuais e midiáticas e as redes sociais eram vistas com bons olhos.

Ou, nas palavras do ministro Alexandre de Moraes, “éramos felizes e não sabíamos”.

Até 2016, as redes sociais eram bem-vistas

Por exemplo, em 2008, Barack Obama, que era então um parlamentar pouco conhecido nos EUA, surpreendeu o mundo político desbancando lideranças tradicionais e chegando à presidência pela mobilização de apoio popular. O feito foi atribuído à capacidade singular do candidato de surfar nas redes sociais, então vistas como intrigante novidade em campanhas presidenciais, o que foi tratado de forma fortemente positiva pela imprensa – a agência de notícias Reuters, por exemplo, chamou de “revolucionária” a estratégia. Jornais como o Guardian chegaram a tratar de forma depreciativa o adversário por sua menor habilidade com as redes, associando-a à sua idade (72 anos).

A campanha de Dilma Rousseff (PT) à presidência em 2010 tentou reproduzir o feito contratando os mesmos marqueteiros que tinham trabalhado na campanha de Obama.

Em 2010 e 2011, também foram recebidos de forma entusiástica a Primavera Árabe e o movimento anticapitalista Occupy Wall Street, protestos de rua que, segundo a imprensa e a intelectualidade, eram atribuíveis às redes sociais – vistas, assim, como força pró-democracia no mundo árabe. O próprio ministro Alexandre de Moraes elogiou, em palestra de 2022, o papel das redes sociais em insuflar as agitações sociais da Primavera Árabe para derrubar governos constituídos. (Ironicamente, no caso do Egito, essas manifestações incluíram pedidos de golpe militar, concretizado em 2013.)

Radicalização à esquerda

2015 foi o ano do que o jornalista Matthew Yglesias chamou de “the great awokening” – “o grande despertar”, em trocadilho com a palavra woke, referente ao identitarismo progressista. Trata-se da ascensão de uma ideologia coletivista radical de esquerda que busca reinterpretar o mundo por uma ótica de luta de classes, onde as antigas classes sociais são substituídas por negros, mulher e pessoas LGBT. A ideologia woke teve profunda influência nas políticas públicas e privadas (influenciando até mesmo leis no Brasil) e influenciou atos de violência nos EUA no caso dos protestos autoproclamados “antirracistas” de 2020.

Há consenso geral de que a ascensão da ideologia woke foi produto das redes sociais. A ativista Megan Phelps-Roper, em documentário, afirma que o vocabulário da ideologia, assim como determinadas ideias (como a de existirem múltiplos gêneros) foram gestados ou popularizados na rede social Tumblr, nesse período.

Apesar do caráter radical da ideologia woke, isso pouco afetou o prestígio das redes sociais nas elites discursivas, e o motivo é que quem julga é suspeito: essas próprias elites, dominadas pela esquerda, foram o ambiente mais afetado pelo great awokening. A radicalização à esquerda, influenciada pelas redes sociais, foi simplesmente assumida como o novo normal, e não gerou demandas de “regulação urgente das redes sociais”.

Democratização das redes sociais

Essas demandas só surgiram quando, anos depois do advento das redes sociais, elas finalmente começaram a se propagar para além do público novidadeiro onde eram inicialmente dominantes para atingir um público mais amplo; em média, mais velho e menos escolarizado. Se em 2008 o jornal Guardian associava a destreza digital de Obama à sua juventude, hoje essa associação já soa antiquada, porque as redes sociais já estão presentes em todas as faixas etárias.

O principal vetor para essa transformação deve ter sido a popularização dos smartphones, que atingiram um público muito mais amplo do que o computador de mesa jamais atingira. O primeiro iPhone com loja de aplicativos saiu justamente em 2008, e os aparelhos do gênero se popularizaram nos anos seguintes.

As redes sociais chegaram à direita

Por fatores tecnológicos, a natureza da mídia consumida através da internet também se modificou ao longo do tempo. Nos anos 90 e no começo dos anos 2000, por limitações tecnológicas, o conteúdo consumido era predominantemente escrito. Segundo números do pesquisador Matthew Ball, isso resultou em perda de mercado imediata pelos jornais, mas a mídia televisiva ficou inabalada. Ela só começou a sofrer por volta da metade da década de 2010, presumivelmente quando os smartphones passaram a ser usados com maior frequência para consumidor conteúdo visual. Segundo o portal UOL, no Brasil, “a situação das grandes redes de TV começou a deteriorar em 2016” e “2022 foi o pior ano da história das grandes redes de TV”.

Isso pode ter produzido consequências políticas pouco comentadas, porque, pelo menos nos Estados Unidos, os números sempre indicaram uma diferença política média entre os consumidores de mídia escrita (como jornais) e os consumidores de mídia visual (como a televisão): os primeiros são muito mais à esquerda que os segundos.

Isso significa que, em meados da década de 2010, as redes sociais passaram a atingir um público mais conservador que, antes, se informava predominantemente pela televisão. Uma das características dela é ser um meio de comunicação unidirecional, sendo que, na outra ponta (jornalistas e artistas), os emissores de conteúdo eram maciçamente de esquerda.

A internet e as redes sociais revolucionaram a comunicação justamente porque permitiram que qualquer pessoa se tornasse não só consumidora, mas também produtora de conteúdo. Ou, na descrição muito menos lisonjeira do ministro Alexandre de Moraes, “a internet deu voz aos imbecis”.

Naturalmente, a internet também deu voz a milhões de indivíduos de esquerda, mas, quando se compara o restrito público que antes tinha “voz” com o público em geral, que também passou a ter, o resultado é que o emissor de conteúdo médio passou a estar muito mais à direita. 

O abismo entre o povo e as elites

Os países ocidentais (à exceção do Brasil, na avaliação do presidente Lula) já tinham uma direita representada na política. No entanto, o recorte entre “esquerda” e “direita” reproduzia as divergências de pensamento que existiam nas elites. Por exemplo, a respeito de qual deve ser o tamanho do Estado, se devem ou não ser privatizadas empresas estatais, etc.

No mundo todo, vários estudos sempre mostraram existir uma discrepância adicional entre o pensamento das elites e o pensamento das classes menos ricas ou escolarizadas. Em geral, as elites são mais liberais e individualistas que o povo, tanto do ponto de vista econômico quanto do ponto de vista dos costumes (em questões como aborto, direitos dos criminosos ou sexualidade).

Algumas posições políticas foram, em algum momento do passado, transformadas em tabu nas elites, socialmente proibidas de serem defendidas. Mas esse tabu nem sempre chegou com a mesma intensidade ao resto da população.

Assim, quando o povo ganhou, através das redes sociais, capacidade material de produzir o próprio discurso e os próprios movimentos políticos, foram alçadas a posições de destaque, de repente e sem aviso, indivíduos que horrorizaram as elites com a sua defesa de ideias e valores tornados tabus nas elites do respectivo país.

O apocalipse de 2016

No caso dos Estados Unidos e do Reino Unido, a imigração era um desses tabus – em particular, a imigração vinda de determinados grupos, como latino-americanos ou muçulmanos. Em 2016, a vitória do Brexit no Reino Unido e a eleição de Donald Trump como presidente foram um duplo golpe nas elites discursivas dos seus respectivos países.

No Brasil, em 2018, foi eleito Jair Bolsonaro, que causava aversão quase física nas elites culturais brasileiras com suas posições históricas sobre a ditadura militar brasileira, a homossexualidade e os direitos dos criminosos. 

De imediato, a opinião das elites culturais sobre as redes sociais mudou do vinho para a água. Nas palavras do ministro Alexandre de Moraes, “A origem das redes sociais foi de um discurso democrático”, mas, em seguida, teria ocorrido uma “cooptação total das redes pelo populismo de extrema direita”.

Com efeito, as elites discursivas passaram a se valer de um mecanismo de defesa que a psicanálise chama de “clivagem”: se antes o que havia de bom nas redes sociais vinha do “povo”, agora o que há de ruim deve vir de outra entidade (o governo russo manipulando o Facebook, ou um grupo de “extrema direita” fazendo disparos em massa no WhatsApp). Se parece vir do povo, é apenas porque essa entidade engana o povo para agir conforme seus desígnios. E o meio como ela engana o povo é através da dita “desinformação”, que precisa, portanto, ser combatida, em nome da “democracia”. 

A realidade é diametralmente oposta a esse discurso. Não era a origem das redes sociais que era democrática, mas, ao contrário, foi justamente a democratização (difusão) das redes sociais, permitindo a democratização (mais voz ao povo) da política o que gerou o resultado detestado.

Os inimigos das redes sociais seriam mais honestos consigo mesmos e com o público se dissessem que a democracia é que é o problema, porque o povo não sabe votar. Infelizmente, poucos (como o filósofo libertário Jason Brennan em ótimo livro) tiveram a coragem intelectual de fazer esse argumento. Em vez disso, escolheu-se o caminho da perfídia.

Hugo Freitas Reis é mestre em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais

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