A cada janeiro, boa parte da imprensa dá espaço às conclusões (sempre apocalípticas) do relatório da Oxfam sobre a desigualdade econômica. As informações costumam ser repetidas sem qualquer análise crítica.
Mas a verdade é que economistas veem falhas graves no estudo, feito por uma organização não-governamental britânica.
A edição de 2024 do relatório, divulgada nesta segunda-feira (15), afirma que os bilionários ficaram mais ricos e que os mais pobres ficaram ainda mais pobres desde 2020. O estudo prevê, em tom de alarme, que o mundo terá o seu primeiro trilionário em uma década.
Segundo o relatório, a riqueza dos cinco homens mais ricos do mundo cresceu 114% em três anos: passou de US$ 405 bilhões para US$ 869 bilhões.
A Oxfam afirma que os 1% mais ricos detêm 43% dos ativos financeiros globais. O relatório diz também que 4,8 bilhões de pessoas estão mais pobres do que em 2020 — graças, sobretudo, à inflação.
O prefácio do relatório 2024 é do senador Bernie Sanders, que se autoproclama um "socialista democrático". Ele pede um “movimento internacional que enfrente a cobiça e a ideologia da classe dos bilionários e nos leve a um mundo baseado na justiça econômica, social e ambiental.”
Já a deputada federal Sâmia Bonfim foi mais direta ao reagir à publicação: "Bilionários não deveriam existir!", ela proclamou.
Fragilidades no cálculo
A principal métrica do estudo da Oxfam é o patrimônio líquido de cada indivíduo (ou seja: o patrimônio financeiro somado do patrimônio imobiliário, menos as dívidas). E esta é justamente uma das fragilidades do relatório.
Para a Oxfam, as pessoas mais pobres do mundo são aquelas com as maiores dívidas, e que portanto têm um patrimônio negativo em milhões ou até bilhões de dólares. Mas apenas as pessoas com alta renda podem se endividar tanto. Pela métrica da Oxfam, um aluno de Harvard que tenha obtido um empréstimo para pagar as mensalidades é mais pobre do que um agricultor do interior do Piauí que, sem ter um patrimônio significativo, não tem dívidas.
Outro artifício duvidoso do estudo é separar a “riqueza financeira” da “riqueza global”. A "riqueza financeira" e de US$ 203, 2 trilhões, o que equivale a menos da metade da riqueza global total. A riqueza (privada) global, por sua vez, é de aproximadamente US$ 450 trilhões. Quando se leva em conta a riqueza total, os 1% mais ricos têm US$ 138,6 trilhões em riqueza total, o que equivale a 30,8% do total global em vez de 43%.
De onde vêm os dados?
O relatório da Oxfam se baseia em dados de terceiros. A estimativa da riqueza dos 1% mais ricos vem da lista de bilionários publicada pela revista Forbes. Já para o cálculo do patrimônio dos 60% mais pobres do mundo, o estudo empresta o cálculo de um relatório do UBS, um banco com sede na Suíça. A Oxfam usou os dados de 2019 e 2022, atualizados pela inflação americana. O relatório do UBS define o patrimônio líquido como “o valor de ativos financeiros somado a ativos imobiliários (principalmente moradia) possuído por domicílios, menos as suas dívidas.” É daí que a Oxfam retira a sua métrica problemática.
Ainda assim, o próprio relatório da UBS mostra que a maior parte do "empobrecimento" entre 2019 e 2022 ocorreu em países ricos (Suécia, Nova Zelândia, Austrália, Canadá e Holanda lideram as perdas), e que e que a oscilação do dólar explica a queda em termos nominais. "Estas perdas são exageradas porque se referem ao dólar americano nas taxas de câmbio atuais, e a depreciação face ao dólar americano foi generalizada durante 2022. Se as taxas de câmbio tivessem permanecido as mesmas de 2021, a riqueza total teria crescido 3,4% e a riqueza por adulto 2,2%”, explica o relatório daUBS.
Por isso mesmo, a conclusão de que quase cinco bilhões de pessoas ficaram mais pobres é problemática. "Comparações em dólares demandam cuidados. O correto é comparar por paridade do poder de compra", explica Roberto Ellery, professor de Economia da Universidade de Brasília. Ele dá um exemplo: "Pense em um proprietário de imóvel em 2020 ou 2014, anos de grande desvalorização do Real. A queda no valor apartamento em dólares não reflete a variação no bem-estar do proprietário", compara.
O professor Ellery menciona ainda outro problema do relatório: em vez do patrimônio líquido, a renda líquida seria um indicador mais adequado para os cálculos de desigualdade. Em países como o Brasil, muitas pessoas de baixa renda moram em imóveis sem escritura, o que pode distorcer os resultados do estudo da Oxfam.
"O sujeito é dono de fato da casa, usufrui da casa e pode até vender a casa, mas não há registro que dê a ele essa propriedade. De fato, em termos de registros legais, a propriedade nem sequer existe. Como isso é mais comum entre os mais pobres, acaba por distorcer as medidas de riqueza", ele explica.
Dados originais são mais otimistas
O relatório original do UBS traz um panorama menos pessimista que o estudo da Oxfam: entre 2000 e 2022, a riqueza média per capita cresceu em média 4,86% por ano, e o índice de Gini (que mede a desigualdade) caiu 0,18% por ano, em média. No mesmo período, a parcela da riqueza nas mãos dos 1% mais ricos recuou 0,36%, em média, por ano.
“Para o mundo como um todo, a riqueza mediana aumentou cinco vezes neste século, praticamente o dobro do rimo da riqueza por adulto”, afirma também o documento da UBS. A riqueza mediana é o valor possuído pela pessoa exatamente no meio da "fila", entre os mais ricos e os mais pobres.
O relatório do UBS refuta análises alarmistas ao mostrar que, em 2022, o 1% mais ricos tinham a mesma parcela de riqueza global que eles tinham em 2004, e menos do que eles tinham em 2000.
Na virada do milênio, o mundo tinha 14.695 milionários. Agora tem 59.531. Em 2027, deve ter 85.904.
A causa da inflação ignorada
Embora aponte a inflação como uma causa do aumento da desigualdade, o relatório da Oxfam deixa de mencionar que a inflação costuma ser o resultado de políticas fiscais irresponsáveis dos governos.
Na verdade, a ong defende o aumento dos gastos estatais. Uma das medidas sugeridas pelo relatório é “reforçar, financiar e contratar funcionários para órgãos reguladores para garantir que o setor privado sirva ao bem comum.” Outra recomendação é promover o monopólio público em alguns setores da economia para combater a “desigualdade extrema” e gerar uma “transformação rápida” que deixe os combustíveis fósseis para trás. O documento também afirma que os cortes orçamentários de países pobres atingem "mulheres, garotas e pessoas não-binárias".
O estudo da Oxfam traz informações importantes sobre a crescente concentração de alguns mercados nas mãos de megacorporações. Mas muitos trechos do relatório parecem ter saído de um livro didático brasileiro da década de 1990; um deles afirma que muitas multinacionais “surgiram na era colonial” e que isso "facilitou a extração de riqueza do sul global para o norte global". A publicação, aliás, inclui a foto obrigatória da favela de Paraisópolis dividindo espaço com prédios elegantes do bairro do Morumbi, em São Paulo.
A ong britânica também quer limitar os vencimentos de CEOS a até 20 vezes o do trabalhador médio. E, baseando-se em uma matemática simplista, defende que um novo imposto sobre o patrimônio dos mais ricos poderia arrecadar uma cifra trilionária. "Nosso cálculo mostra que uma taxa anual progressiva de 2% sobre a riqueza líquida acima de US$ 5 milhões, 3% em riqueza líquida acima de US$ 50 milhões e de 5% sobre toda riqueza líquida acima de US$ 1 bilhão poderia arrecadar até US$ 1,8 trilhão por ano”, diz o estudo. A conta ignora, entretanto, que a taxação adicional afeta a forma como os super-ricos aplicam os seus recursos, e dificilmente chegaria à cifra estimada.
Entre o rigor metodológico e as manchetes chamativas, a Oxfam prefere a segunda opção.
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