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A recente operação policial no Rio de Janeiro reacendeu o debate sobre os efeitos devastadores da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, conhecida como ADPF das Favelas. Para especialistas, a ADPF das Favelas é o retrato de um país em que o excesso de judicialização fragiliza o Estado e fortalece o crime. E o Rio de Janeiro, mais uma vez, tornou-se o palco onde a distância entre a teoria jurídica e a realidade sangrenta se revela em toda a sua dimensão.
Encerrada em abril deste ano, após cinco anos de vigência, a medida é apontada por especialistas em segurança pública como um dos principais fatores para o fortalecimento das facções criminosas e para o agravamento da violência no estado.
Proposta originalmente com o argumento de reduzir a letalidade policial, a ADPF acabou por impor uma série de limitações às forças de segurança. Na prática, as decisões judiciais transferiram para o Supremo Tribunal Federal (STF) o poder de definir quando e como a polícia poderia agir, interferindo diretamente em uma atribuição que pertence ao Executivo. O resultado, segundo analistas, foi desastroso.
“É impossível afirmar que as decisões proferidas na ADPF 635 tenham proporcionado ao Rio de Janeiro um cenário melhor do que o anterior”, escreveu o delegado Fabricio Oliveira Pereira, coordenador da CORE-RJ, em artigo publicado na Gazeta do Povo em fevereiro deste ano. O coronel da reserva Fernando Albuquerque Montenegro, especialista em Forças Especiais, que também escreveu à Gazeta sobre o tema, reforça a avaliação: o fim da ADPF marca “o prelúdio de uma longa e árdua jornada para a recuperação do controle territorial e a restauração da ordem no Rio de Janeiro”. Para ele, o STF demorou demais para reconhecer que a suposta proteção inicial que a ADPF pretendia trazer às favelas “se metamorfoseou em veneno para a própria sociedade”.
A restrição ao dever de polícia
A decisão cautelar de maior impacto foi a do ministro Edson Fachin, em junho de 2020, que proibiu operações policiais em comunidades durante a pandemia de Covid-19, “salvo em hipóteses absolutamente excepcionais”. O problema, como explica Fabricio Pereira, é que essa expressão não oferecia qualquer tipo de delimitação, o que, na prática, se materializou em uma paralisia operacional completa das polícias no Rio de Janeiro.
As polícias passaram a enfrentar um emaranhado burocrático para agir. Relatórios detalhados, justificativas minuciosas e exigências de comunicação prévia transformaram ações urgentes em processos lentos e ineficazes. Mandados de prisão, de busca e apreensão ou flagrantes de roubos de carga já não eram considerados motivos suficientes para operações.
O resultado foi uma mudança drástica no padrão de policiamento a partir da ADPF das Favelas. “A Polícia Militar tornou-se mais reativa do que preventiva”, observa Pereira. Já a Polícia Civil registrou queda acentuada no número de operações em comunidades, especialmente nas regiões mais violentas. Tentar reduzir a letalidade policial restringindo apenas as forças de segurança, sem considerar a natureza da violência não estatal, ele alerta, foi um equívoco grave.
Ativismo judicial ajudou a fortalecer o crime
A interferência do STF é vista por especialistas como exemplo claro de ativismo judicial – quando o Judiciário ultrapassa sua função constitucional e invade competências dos outros Poderes. Para Montenegro, a ADPF 635 instaurou um “garantismo seletivo, que muitas vezes protege o infrator em detrimento da vítima”.
As determinações judiciais que proibiram operações próximas a escolas e hospitais ou limitaram o uso de aeronaves, diz o coronel, demonstram “desconexão com a realidade e com a urgência do trabalho policial nas ruas”. O ativismo, ao restringir a ação estatal legítima, acabou protegendo o crime organizado sob o manto da legalidade.
As restrições impostas pelo Judiciário acabaram por oferecer uma “salvaguarda legal” às facções criminosas. O Comando Vermelho e grupos rivais expandiram seu domínio e consolidaram uma teia de controle territorial sem precedentes. “Restringir e desestimular a atividade policial gera o efeito oposto”, afirma Pereira. “Criminosos violentos se sentiram encorajados a desafiar o Estado sob o amparo da impunidade”, argumenta.
O resultado foi o fortalecimento do crime organizado e o aumento do poder bélico das facções – muitas vezes, os criminosos dispõem de armamentos mais pesados até do que os usados pelas forças de segurança. As ofensivas territoriais do crime organizado se estenderam a mais de mil localidades do estado do Rio de Janeiro, atingindo inclusive áreas antes consideradas seguras, como Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes.
Montenegro descreve uma consequência mais grave: o Rio tornou-se uma espécie de “santuário do crime”. Lideranças criminosas de outros estados migraram para o território fluminense em busca de refúgio, aproveitando-se das restrições operacionais impostas pelo Judiciário. A violência contra as forças de segurança também se intensificou. Segundo Pereira, os disparos contra veículos blindados da CORE aumentaram 1.745% entre 2019 e 2023, e os ataques a aeronaves subiram 765%.
O medo imposto pelo crime cria “zonas de silêncio” nas comunidades controladas. Denúncias à polícia, reclamações ou opiniões contrárias aos criminosos passaram a ser controladas pelos próprios bandidos, podendo custar a vida de moradores recalcitrantes – incluindo retaliações às suas famílias. Ele cita o caso do major do Corpo de Bombeiros Wagner Bonim, que foi sequestrado e “queimado vivo dentro de seu carro” em novembro de 2022. O militar havia denunciado a instalação de barricadas perto de sua residência, buscando justificar o caráter excepcional exigido pela ADPF 635 para a atuação policial. Foi capturado, torturado e morto – numa clara mensagem de terror enviada pelos criminosos aos demais moradores.
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Comunidades sitiadas e população refém
As comunidades passaram a viver sob o domínio direto das facções, que impõem restrições severas à circulação de moradores, controlam serviços básicos e obrigam as populações locais a viverem coagidas continuamente pelos criminosos. As barricadas instaladas nas vias – muitas feitas com vigas de aço para impedir a entrada de blindados – tornaram o acesso de ambulâncias e transporte público quase impossível. A população, privada do direito de ir e vir, convive com a presença ostensiva do poder paralelo. “A exclusão física imposta por forças criminosas antiestado” transformou as favelas em “protetorados urbanos sem lei”, descreve Pereira.
Com o domínio territorial consolidado, o crime passou também a controlar a economia local. Montenegro relata que o tráfico “impõe condições para o funcionamento de concessões públicas”, cobra “impostos e taxas” e fornece versões clandestinas de gás, água, internet e TV a cabo “a preços inflacionados e sob seu controle exclusivo”.
Com o fim da ADPF das Favelas, o Rio de Janeiro enfrenta um desafio histórico: reconstruir a autoridade do Estado e restabelecer o poder de polícia sobre áreas dominadas pelo crime. Isso exigirá mais do que decisões judiciais – exigirá vontade política, coordenação institucional e apoio da sociedade.
Fernando Albuquerque Montenegro defende que a superação da crise requer uma “estratégia integrada e abrangente, que transcenda a mera atuação policial”. Ele sugere um esforço conjunto que envolva o sistema de justiça, as políticas sociais, a inteligência e a participação ativa da sociedade civil. Para ele, é imperativo que o Estado supere “visões ideológicas e adote medidas pragmáticas e urgentes”.
Fabricio Oliveira Pereira complementa, destacando que medidas fundamentais foram negligenciadas e que é necessário o “endurecimento da legislação penal” e a adoção de ações para desencorajar ataques contra agentes públicos. O cenário atual exige ações mais eficazes e menos burocráticas, com foco real na proteção dos cidadãos e no enfrentamento das organizações criminosas que dominam o território, finaliza.



