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José Dirceu continua o mesmo.
Na noite desta quinta(9), o estrategista do PT deu a aula inaugural do novo curso da Fundação Perseu Abramo, mantida pela sigla com recursos do fundo partidário. Tema: “A extrema-direita hoje — ódio e guerra pelo poder”.
Em meio a elogios à China e as menções costumeiras ao capitalismo e a CIA, Dirceu afirmou que o governo Lula está refém do mercado financeiro e que os partidos de esquerda brasileiros terão dificuldades se não priorizarem a cultura para conquistar “mentes e corações”. Ele também disse que houve “interferência internacional” na eleição de Jair Bolsonaro em 2018.
Público modesto
O novo curso da Fundação Perseu Abramo é virtual, e a aula de Dirceu foi transmitida ao vivo. Às 18h30, horário marcado para o início da palestra, 112 pessoas aguardavam o início do evento.
Eram militantes de lugares como São Leopoldo (RS), Rio de Janeiro (RJ), Botucatu (SP), Ascurra (SC), Natal (RN) e, sabe-se lá por que, Tigres (Argentina).
Às 18h34, a transmissão começou, comandada pelo ex-deputado Jorge Bittar. A fala do diretor de Formação da Fundação Perseu Abramo estava entrecortada. “A minha internet está com problema, efetivamente”, diagnosticou. Bittar mencionou o “processo de perseguição política” antes que,“felizmente”, Lula voltasse à Presidência.
O presidente da fundação, Paulo Okamoto, falou em seguida e disse que cursos como aquele são importantes para a marcha rumo ao socialismo. “A gente precisava preparar mais a nossa base para a gente ir para cima e conseguir fazer com que tenhamos realmente muito sucesso na construção de uma sociedade socialista”, afirmou.
Além dos dois, Dirceu foi ladeado pelos professores da Universidade de São Paulo (USP) Jorge Branco e Lincoln Secco. O professor Secco se referiu a Dirceu de “companheiro”.
Estilo caótico
Filmado por uma câmera de baixa resolução, José Dirceu vestia uma camisa polo vermelha e parecia estar em um quarto simples. Ao fundo era possível ver uma cama sobre a qual repousa um lençol cor-de-rosa.
Alguns minutos depois do início da aula, o público ultrapassou as 600 pessoas.
Aos 78 anos, o ex-chefe da Casa Civil continua capaz de fazer análises complexas com o sotaque caipira de Passa Quatro (MG). Dirceu tem predileção pelo que acredita serem causas estruturais dos problemas (que ocasionalmente pronuncia “poblemas”).
Ele sabe, de cabeça, os números do déficit fiscal da Europa e dos Estados Unidos. O total de imigrantes que chegam ao território americano por ano. Que a Nigéria e a Indonésia passaram recentemente o Brasil no ranking das maiores populações do mundo.
Ao mesmo tempo, o petista parece juntar as informações de forma caótica, fazendo associações improváveis como se fossem auto-evidentes. Quando falou de fascismo, ele misturou Mussolini, Hitler, Jair Bolsonaro, Donald Trump e as big techs, que representariam o “controle das mentes e corações pelas redes”.
Bolsonaro eleito com “intervenção internacional”
Uma das teses de José Dirceu é a de que os Estados Unidos (que ele chama de “império”) estão usando as empresas de tecnologia para interferir nas eleições mundo afora.
“O que nós estamos assistindo é algo inédito. O Elon Musk vai derrubar o governo trabalhista da Grã-Bretanha. Ele já tomou a decisão”. Em seguida, ele refutou parte do que havia acabado de dizer: “É uma decisão do império. Não é uma decisão do Elon Musk, não é uma decisão de uma big tech. É uma forma de atuar do império. Não há mais eleições nacionais. Vamos perder essa ilusão”.
Dali ele saltou para a Romênia e a Geórgia.
Dali, para a Rússia. “O Putin foi levado a fazer uma guerra defensiva, porque ele se deu conta de que iam derrubá-lo”, analisou.
Dali ele pulou para o impeachment de Dilma Rousseff (um “golpe parlamentar-jurídico”) e a Lava-Jato. E para o pré-sal. Tudo conectado, na visão de Dirceu.
Bolsonaro não escapou. “Nós não percebemos que havia uma interferência internacional na eleição do Bolsonaro”, disse, sem dar detalhes da acusação e nem explicar como Lula conseguiu vencer em 2022.
Por vezes, José Dirceu até se aproxima da realidade objetiva. Por exemplo: ele admitiu que Cuba vive um “colapso da sua agricultura e da sua energia”. Mas, para ele, o culpado não é o regime autoritário que governa a ilha desde 1959. Em vez disso, a explicação para a penúria vem das é o aumento do rigor imposto pelos Estados Unidos à ida de turistas ao território cubano, além da limitação das remessas de dinheiro dos expatriados que vivem nos Estados Unidos.
Preocupação com o futuro da esquerda brasileira
José Dirceu está preocupado.
Ele acredita que a esquerda brasileira não está pronta para enfrentar o desafio diante de si.
“Do ponto de vista histórico, há um esgotamento do movimento que nos levou ao governo em vários países, particularmente aqui no Brasil. Para continuar no governo, nós temos que constituir novas bases de aliança e novas bases sociais”, defendeu.
Segundo ele, dois temas explicam a mudança de cenário: a religião (mais especificamente, a ascensão dos evangélicos) e a importância crescente das redes sociais.
“A questão cultural e religiosa, e a questão das redes, se tornam portanto questões centrais da disputa entre a extrema-direita e nós”, disse ele.
O ex-guerrilheiro fez um alerta ao PT e aos outros partidos de esquerda: “Como nós estamos hoje não podemos continuar. Nós não seremos capazes de enfrentar os desafios que nós temos pela frente.”
Ele acredita que, “a propaganda, a cultura, a disputa das mentes e dos corações” deve ser prioridade.
Mercado financeiro domina o governo
Para o estrategista do PT, o governo é refém do capital financeiro.
"O principal problema do Brasil hoje é a abertura total financeira. O domínio, o poder, a chantagem quase ditatorial que o mercado financeiro tem sobre o governo", ele afirmou.
Para ele, o Brasil tem buscado se desvencilhar dessa influência. “Quando o Lula faz os acordos com a China, preside o G-20 e assina o acordo com o Mercosul, significa que nós estamos procurando uma outra opção a nível [sic] mundial, que permita que o Brasil possa retomar o projeto de desenvolvimento nacional”, analisou.
Mas ele se queixa de que falta a adesão da indústria e do agronegócio ao tal “projeto de desenvolvimento nacional”.
Dirceu, aliás, parece estar entusiasmado com a ascensão da China: “A capital do mundo já é Xangai, a Ásia. A Ásia já é a maioria da humanidade”, disse.
O curso
O curso lançado por Dirceu é um desdobramento de outro. Na edição anterior, o foco foi a origem do fascismo. Agora, os alunos vão aprender sobre as manifestações contemporâneas da extrema-direita.
A Fundação Perseu Abramo recebeu R$67 milhões em recursos públicos em 2024. Por lei, 20% dos recursos do Fundo Partidário devem ser usados na manutenção das fundações dos partidos.