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Casa própria: uma miragem no deserto dos juros altos 

Paisagem urbana no bairro de Pinheiros, em São Paulo, refletida em prédio espelhado: casa própria virou miragem.
Paisagem urbana no bairro de Pinheiros, em São Paulo, refletida em prédio espelhado: casa própria virou miragem. (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

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Nas últimas semanas, uma discussão entre jovens movimentou as redes sociais: afinal, o que significa ser millennial no Brasil? De um lado, estavam os que cresceram acreditando que, com educação e esforço, teriam uma vida melhor que a dos pais e hoje encaram frustração, dívidas e aluguel caro. Do outro, os que dizem ter conquistado coisas que as gerações anteriores de sua família jamais imaginaram. Realidades diferentes, mas com um ponto em comum: a dificuldade generalizada de comprar a tão sonhada casa própria, vista como marco de estabilidade e status social que ainda habita o imaginário coletivo como sinônimo de conquista, maturidade e segurança.

Se você nasceu entre 1985 e 2000, talvez já tenha sentido isso na pele. Alugar um apartamento modesto já consome quase metade do que você ganha. Aderir a um financiamento parece um tiro no pé. E falar em aposentadoria, seguro de vida, reserva de emergência ou qualquer plano financeiro de longo prazo parece delirante. Isso não é um drama individual, é o retrato de uma geração. 

Na pesquisa que publiquei no International Journal of Urban and Regional Research, uma das revistas científicas mais prestigiadas mundialmente na área de planejamento urbano, estudei como diferentes gerações da classe média urbana brasileira lidam com a ideia de ter um imóvel. E a resposta foi clara: o desejo não desapareceu, ele apenas foi adiado. E esse adiamento tem um custo financeiro, emocional e coletivo. 

A retórica da “flexibilidade” 

Hoje, sobretudo nas grandes cidades, vemos o crescimento de ofertas de aluguel de imóveis pequenos (em Curitiba, temos o absurdo de 9 m², um apartamento menor do que o escritório de onde escrevo agora), bem localizados, por vezes com serviços inclusos, voltados para jovens profissionais com boa renda. A publicidade fala em liberdade, mobilidade, menos amarras... parece o futuro. Mas por trás desse discurso de flexibilidade, as pessoas estão alugando somente porque não conseguem comprar. E fica pior, nos cubículos residenciais, estão pagando proporcionalmente mais caro do que em apartamentos tradicionais, maiores. 

Segundo os dados que coletei com mais de 500 entrevistados em um recorte da classe média urbana brasileira, a maioria dos jovens adultos ainda deseja ter um imóvel próprio no futuro, especialmente quando pensa na terceira idade. Isso vale inclusive para quem hoje defende que é melhor “viver experiências” do que “se amarrar” a um financiamento. Essa flexibilidade tratada como “hype” pelas empresas de tecnologia imobiliária não é uma escolha genuína, mas uma resposta forçada às limitações econômicas. 

Em nosso artigo, o Professor Mario Prokopiuk (PUCPR) e eu chamamos esse fenômeno de “adiamento das aspirações habitacionais”. Ele descreve como os desejos por estabilidade e propriedade continuam vivos, mas são colocados em espera por falta de condições reais. Alugar se torna um plano B, aceitável por enquanto. Mas há um problema, o tempo passa e essa espera pode custar caro. 

Imagine, millennial: chegamos a 2045, você nascido em 1985 fará 60 anos e ainda pagará aluguel, sem um imóvel seu, sem uma aposentadoria robusta e com juros altos dificultando qualquer investimento de longo prazo. Ou você faz esse financiamento hoje e ao atingir os 60 anos ainda terá uma década de dívida pela frente. Parece distante? Pois essa é a rota silenciosa que muitos millennials e a geração Z (nascidos nos anos 2000) estão trilhando rumo a um contexto de pouca seguridade social.

Na pesquisa, observamos que as gerações mais velhas, como os Boomers (1945-1964), ainda associam fortemente casa própria com segurança e status social no presente. Os intermediários, Geração X (1965-1984), veem a casa própria com pragmatismo orientado ao seu valor financeiro e à proteção de seu capital ao longo do tempo. Já as gerações mais novas, como os Millennials (Geração Y, 1985-1999) e a Geração Z (anos 2000), demonstram maior aceitação do aluguel enquanto aproveitam a vida com gastos efêmeros como viagens ou festivais. Esses jovens entendem que investir dinheiro e morar de aluguel é mais vantajoso que pagar prestações de imóvel próprio, e que gastar com experiências de vida traz mais felicidade do que comprar imóvel próprio para morar.

Mas quando perguntamos como esses jovens gostariam de viver na velhice, 95% deles sonham com a casa própria. O problema é que, diferentemente dos pais e avós, essas gerações enfrentam mercado de trabalho instável, renda achatada, imóveis surrealmente caros e juros altos demais para financiar qualquer sonho sem uma dívida grande por décadas. 

Um estudo realizado pelo Instituto Cidades Responsivas aponta que um imóvel de R$ 830 mil em Curitiba (preço mediano em março de 2025, nada de luxo!), que em 2022 poderia ser financiado mediante comprovação de renda de cerca de R$ 12 mil, em 2025 exige renda de cerca de R$ 17 mil. O mesmo imóvel, para a mesma pessoa, tornou-se inacessível apenas porque o custo do dinheiro aumentou. Isso não é um detalhe técnico, é exclusão social institucionalizada. E o mais perverso é que essa distorção é apenas mais um entre os muitos efeitos nefastos do Brasil ser um país perfeito para rentistas. 

Como a taxa básica de juros baliza toda a economia, investir em certificados de recebíveis imobiliários, letras de crédito imobiliário ou fundos de investimento imobiliário paga-lhe muito bem, acima de 14% ao ano hoje em uma escolha certeira. Enquanto isso, na outra ponta do circuito, financiar um imóvel para morar está mais caro e inalcançável do que nunca. Perpetua-se um sistema de espoliação da classe trabalhadora (mesmo que a classe média, por vezes, não se identifique como tal). 

Futuro incerto 

De forma menos expressiva, algumas participantes de um grupo de foco que antecedeu a pesquisa para fins de testes metodológicos apontaram que, embora sua realidade seja condizente com os critérios para comprar imóvel, hesitam pelo fato de que não terão filhos para herdar o patrimônio. Trata-se de outro ponto importante a ser observado em pesquisas futuras, já que há um adiamento da idade em que as mulheres têm filhos, redução nas taxas de fecundidade de diversos países e consequente envelhecimento da população. 

Ao contrário de ideologias que empresas de tecnologia imobiliária tentam atrelar aos mais jovens, a casa própria não virou um sonho ultrapassado, mas um privilégio inacessível. E não por escolha das novas gerações, mas por um modelo econômico que transfere renda de quem trabalha para quem vive de juros. O adiamento forçado desse sonho revela a crise de um país que normalizou a desigualdade, e que trata o endividamento como se fosse liberdade. Corremos o risco de, a partir de 2045, ver envelhecer uma geração sem casa própria, sem poupança (pois gastou em experiências de vida hoje), e sem filhos para prover uma rede de assistência familiar, o que demandará novas formas de pensar em um estado de bem-estar social que não parece estar circunscrito nas instituições do presente. 

Rafael Kalinoski é mestre em Planejamento Urbano pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Gestão Urbana pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Atua no escritório de arquitetura novaiorquino Rawlins Design e é professor no Centro Universitário de Tecnologia de Curitiba e na Escola de Administração Pública da Prefeitura Municipal de Curitiba.

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