Com passagens por veículos como The New York Times, New Yorker e The Washington Post, a jornalista e escritora americana Katenlyn Beaty é uma observadora crítica das tendências dos cristianismo contemporâneo.
No livro 'Fama, Dinheiro e Influência: Como a Cultura da Celebridade Enfraquece a Igreja', ela faz um alerta: precisamos ter uma visão mais consciente e responsável sobre os cristãos famosos, sejam eles líderes religiosos, atletas, artistas e empresários. Leia a seguir um techo da obra, recém-lançada no Brasil pela editora Mundo Cristão.
Em 2019, Kanye West fez uma mudança inesperada em sua carreira: aliou-se aos cristãos evangélicos. O conhecido cantor de hip-hop tinha acabado de lançar seu nono álbum gravado em estúdio. O título parecia um daqueles outdoors colocados à beira das estradas planas do centro-oeste dos Estados Unidos: 'Jesus Is King' ['Jesus é Rei'].
Uau. Deus conquistou um dos grandes.
Na verdade, não foi a primeira vez que West fez um rap sobre Jesus. Em sua canção de sucesso de 2004, 'Jesus Walks', West imaginou como seria se Cristo entrasse em sua realidade.
Eu ouvia essa música e o álbum do qual ela fazia parte com frequência quando era mais jovem. Gostava das combinações musicais e letras inteligentes de West.
Também era legal ver um artista de talento falar bem da fé cristã, minha fé cristã. Afinal, West não fazia parte da bolha de música cristã contemporânea.
Tinha credibilidade nos meios musicais de modo geral, e revistas como Vibe, Rolling Stone e Pitchfork o consideravam o futuro do hip-hop.
Ele concordava, e disse: "Quem não der nota máxima para [o álbum] 'The College Dropout', está depreciando a integridade da revista". Tinha credibilidade no mundo mais amplo e também podia conferir um pouco dessa credibilidade a Jesus.
Só tinha um probleminha: nem todos os raps de West eram sobre Jesus. Seu primeiro álbum também falava de drogas, sexo e roupas e carros de luxo.
E esses elementos eram constantes nos outros álbuns de sucesso (ainda que nem todos maravilhosos) de West. A adoração de si mesmo também era um de seus temas, e de forma bastante literal.
Na canção 'Yeezus', ele diz: “Eu sou um deus”. É uma coisa ousada de dizer e, também, mais ou menos aquilo que se espera de um egomaníaco.
Ainda assim, de maneira bastante real, West estava dizendo a verdade. Carrie Battan escreveu na revista New Yorker: "Como gênio atormentado, que contrariou expectativas e conseguiu se transformar […] em ícone do rap e gigante da indústria de calçados, West era o que havia de mais próximo de um deus secular, com milhões de seguidores para venerá-lo".
Então, em 2019, West encontrou um Deus mais digno de adoração do que ele próprio. De acordo com West, naquele ano ele finalmente entregou a vida a Cristo. Kim Kardashian, sua esposa na época, confirmou a conversão: "Ele teve uma evolução incrível; nasceu de novo e foi salvo por Cristo".
"Tentei fazer as coisas do meu jeito e não deu certo", disse ele. "Minha vida estava destruída. Ganho um monte de dinheiro, mas sempre acabo endividado. […] Minha saúde tem altos e baixos. As pessoas me chamam de louco. Não querem sentar perto de mim. Tive que me render a Deus.
Ele afirmou que Cristo havia curado seus vícios em álcool e pornografia. Depois de sua conversão, começou a realizar Cultos de Domingo em sua mansão e transmiti-los nas redes sociais
As apresentações com produção de alta qualidade tinham um coral gospel, mensagens dos pastores-celebridades Rich Wilkerson Jr. e Carl Lentz e várias outras pessoas famosas. Até Brad Pitt apareceu em um fim de semana.
Os objetivos de West eram explicitamente evangelísticos. Em um dos Cultos de Domingo, ele chegou a reescrever as letras de canções seculares, como faziam empolgados pastores de jovens na década de 1990
Cantou uma versão de "Smells Like Teen Spirit" do Nirvana, com a letra: “Deixe sua luz brilhar, é contagiante/aqui estamos nós, inspiração”.
O álbum 'Jesus Is King' foi lançado logo depois que West começou a realizar esses Cultos de Domingo. Traz uma mistura de soul, hip-hop e house, com letras que proclamam a nova missão de West de compartilhar o evangelho. Quando ele mencionou em uma de suas canções a rede de restaurantes Chick-fil-A, conhecida por defender valores cristãos tradicionais, passou a ter livre acesso a um grande segmento constituído de evangélicos brancos.
O álbum estreou em primeiro lugar na lista dos mais ouvidos da Billboard, recebeu o prêmio Grammy de Melhor Álbum de Música Cristã Contemporânea e, de modo geral, foi bem recebido por críticos não cristãos.
Muitos cristãos também gostaram das canções. O sexo, as drogas e a autoadoração haviam sido removidos; finalmente, muitos cristãos brancos podiam ouvir rap sem ficar com a consciência pesada.
Em lugar dos palavrões habituais, parecia haver o testemunho sincero de uma vida transformada por Deus. A Christianity Today, a Gospel Coalition e até mesmo a revista tipicamente sisuda Plugged In elogiaram o álbum.
Líderes cristãos também nos incentivaram a considerar sincera a conversão de West. Afinal, a Bíblia e a história da igreja são repletas de conversões dramáticas.
Deus continua a atuar de maneiras surpreendentes no meio daqueles que parecem mais distantes dele. Além disso, quem mais não poderia ser salvo depois de ouvir 'Jesus Is King'? Brad Pitt seria o próximo? (Avise-me se quiser visitar minha igreja, Sr. Pitt.)
Claro que nenhum de nós teria como saber em que, exatamente, West crê. O único "Kanye West: que conhecemos aquele que vemos nos palcos e nas telas.
West tem uma persona extravagante; gosta de instigar controvérsia e contrariar expectativas. É possível que sua fase cristã seja só isso: uma fase a ser experimentada antes de começar outra.
Não obstante, faz sentido cristãos comemorarem qualquer um que se aproxime de Cristo, mesmo que "seja impossível conhecer o coração de uma pessoa". Os cristãos acreditam que riqueza, sucesso e fãs cheios de admiração não são páreo para as boas-novas da salvação. Histórias de conversão, especialmente histórias dramáticas, são a força motriz da fé evangélica.
No entanto, há outros motivos pelos quais os evangélicos se mostram tão ansiosos para ver celebridades proclamarem Cristo. Quando celebridades se convertem, muitos cristãos sentem que sua fé está sendo validada em âmbitos que parecem hostis ou indiferentes a suas crenças mais profundas.
Se os cristãos se enxergam em uma batalha contra a cultura secular, conversões de celebridades mostram que talvez o lado de Deus esteja vencendo, e que cristãos em Hollywood ou nos meios musicais podem exercer influência positiva em lugares "sombrios".
Bob Dylan e a "trilogia cristã" que deu uma guinada radical em sua carreira
Antes de Kanye West houve Bob Dylan. É difícil imaginar uma comparação musical mais díspar. E, no entanto, eles têm um elemento em comum: os dois professaram uma conversão cristã sincera e deram testemunho dela em sua música.
Compositor norte-americano mais importante do século XX, Dylan, cujo nome real era Robert Zimmerman, foi educado em uma família judaica em Minnesota.
Depois de se mudar para Nova York quando jovem, tornou-se ícone do movimento contra a guerra na década de 1960 e usava imagens bíblicas para expressar protesto nos moldes proféticos. Álbuns aclamados como 'Highway 61 Revisited', 'Blonde on Blonde' e 'Blood on the Tracks' captaram as turbulentas e empolgantes mudanças políticas do final da década de 1960 e início da década de 1970.
Então, em 1978, diz-se que Dylan começou a participar de um curso bíblico na Capela do Calvário, uma igreja carismática na Califórnia, e foi batizado no Oceano Pacífico.
Ele declarou ao Los Angeles Times: "Tive, verdadeiramente, a experiência de nascer de novo, por assim dizer. Essa é uma expressão batida, mas é algo com que as pessoas podem se identificar"
Seus três álbuns seguintes, 'Slow Train Coming' (1979), 'Saved'(1980) e 'Shot of Love' (1981), se tornaram conhecidos como sua “trilogia nascido de novo”. 'Slow Train Coming' começa com a canção evangelística "Gotta Serve Somebody" ['É Preciso Servir a Alguém]. O roqueiro cristão Larry Norman a recomendou ao presidente Jimmy Carter.
Por volta dessa época, Dylan começou a pregar sermões todas as noites em sua turnê. Em vez de falar da Guerra do Vietnã, começou a falar de uma guerra cósmica entre o bem e o mal que expressava a teologia escatológica da época.
"Vou lhes dizer: Jesus está voltando, está mesmo!", ele declarava. "Não há outro caminho para a salvação."
Claro que nem todos os seus fãs gostaram. Alguns se sentiram traídos. "Dylan representava a liberdade de opinião, valores antissistema, do tipo 'não sigam os líderes'. E agora ele está seguindo o maior líder de todos”, observou o jornalista Michael Simmons.
Ao que parece, em um dos shows de Dylan alguém no meio da multidão agitada segurava um cartaz que dizia: "Jesus ama suas canções mais antigas".
Ainda assim, as reações negativas davam testemunho de fé sincera. Afinal, Jesus advertiu seus seguidores de que o mundo zombaria deles e os perseguiria.
Na canção 'Property of Jesus' ['Propriedade de Jesus'], Dylan fala de um homem com o qual as pessoas se ofendem e que elas chamam de fracassado por causa de sua fé. Perseguição, Armagedom e guerra espiritual são temas comuns em seus álbuns cristãos.
Não é coincidência. Quando ele lançou 'The Late Great Planet Earth e A Thief In the Night', o mundo evangélico mais amplo estava obcecado com tudo o que dizia respeito ao fim dos tempos. Acontecimentos nacionais e mundiais eram projetados sobre a Bíblia, e alguns líderes políticos eram representantes óbvios do anticristo.
Dylan abraçou a fé cristã durante o surgimento da direita religiosa. O descontraído “Movimento de Jesus” do final dos anos 1960 e início dos anos 1970 havia se transformado em um grupo de guerreiros com forte envolvimento político na luta pela verdade e pelos valores da família.
Anita Bryant lançou sua campanha contra os direitos dos gays em 1977 e, dois anos depois, Jerry Falwell foi um dos fundadores da organização Maioria Moral.
O movimento antiaborto estava ganhando força quando líderes republicanos perceberam que podiam usar a questão do aborto para atrair e energizar eleitores evangélicos brancos. Muitos cristãos estavam preocupados com as consequências da revolução sexual: mais divórcios, legalização do aborto, mulheres no mercado de trabalho e direitos de pessoas LGBTQ.
Para eles, essas mudanças culturais sinalizavam o declínio moral do país e, possivelmente, a iminência do fim. Como Falwell disse à sua igreja em Lynchburg. em 1980: "Estamos lutando em uma guerra santa. […] Temos de conduzir a nação de volta ao posicionamento moral que tornou a América um país grandioso. […] Temos de influenciar aqueles que nos governam".
Os cristãos não deviam recuar dessa guerra santa. Deviam permanecer firmes contra as ondas de decadência da cultura mais ampla e reconquistar o país para Deus. Ao mesmo tempo, entendia-se que, para lutar nessa guerra, precisavam adotar as táticas de seus inimigos a fim de obter influência política e cultural.
Essa guerra santa seria travada, em última análise, nas urnas e por meio de alianças com figuras públicas, e não, acima de tudo, por discipulado ou pelo testemunho comum da igreja local.
Dylan, por sua vez, criticou a Maioria Moral em 1980. “Creio que as pessoas precisam ter cuidado a esse respeito. […] É algo bem perigoso.”
Mas, mesmo sem que Dylan quisesse, sua fé recém-descoberta refletia os interesses de cristãos alienados pelas mudanças culturais. Aaron Sanchez escreve:
O cristianismo de Dylan tinha menos em comum com o de Jesse Jackson [líder do movimento pelos direitos civis] e mais em comum com o de Jerry Falwell. Encaixava-se confortavelmente nas perspectivas de um cristianismo reacionário que culpava o liberalismo e o movimento de direitos civis pelo declínio religioso, moral e econômico do país. O fim dos tempos estava próximo, e a nação precisava se preparar para a ira de Deus.
A fé adotada por Dylan continua a ser assunto de interesse. Há quem suspeite que ele voltou a suas raízes judaicas em 1983, quando suas letras se tornaram vagamente espirituais e passaram a falar menos de Jesus. Outros, como o biógrafo Scott M. Marshall, consideram que Dylan nunca abandonou o cristianismo inteiramente.
Recém-convertidos cometem erros ao longo do processo de crescimento na fé
Depender de celebridades para representar a fé é uma abordagem acompanhada do risco de essas pessoas a representarem de maneira indevida. Sempre existe a possibilidade de renegarem a fé ou de prejudicarem sua reputação.
Houve quem desaprovasse, por exemplo, os vínculos entre Kanye West e Donald Trump (com o qual West afirma ter em comum uma "energia de dragão"), bem como o comentário dele de que os 400 anos de escravidão nos Estados Unidos "parecem ter sido uma escolha" [em 2002, o rapper voltou a polimezar, e foi "cancelado", por comentários antissemitas].
Bob Dylan, por sua vez, parou de escrever letras confessionais e de pregar nas turnês há várias décadas.
Além disso, uma porção de atores de Hollywood e músicos pop que se dizem cristãos não caberiam dentro dos limites éticos definidos pelo evangelicalismo branco (ao fazer cenas de nudez, por exemplo, ou divorciar-se e casar-se novamente).
Se os evangélicos estiverem à procura de um embaixador para sua marca, que fale e vivencie sua fé exatamente da mesma forma que eles, vão se decepcionar.
Qualquer celebridade que pratique sua fé debaixo dos holofotes precisa de graça. Recém-convertidos cometem erros ao longo do processo de crescimento na fé.
Além do mais, o que leva os cristãos a imaginar que a fé é uma questão de ser descolado? De certa forma, a esperança de se associar a cristãos de Hollywood é outra forma de os evangélicos acumularem poder.
Se a direita religiosa se associou a políticos poderosos a fim de proteger a fé nos corredores do Congresso, líderes evangélicos que se associam a celebridades cristãs estão em busca do poder brando da influência de Hollywood.
A essa altura, já vimos o rasto de destruição deixado pelos esforços da direita religiosa: alianças com políticos moralmente falidos, testemunho público prejudicado e membros da Geração do Milênio que se sentem traídos pela geração de seus pais e não querem nada com sua fé.
A geração seguinte da igreja se sairá melhor se abandonar a fixação em credibilidade cultural e buscar a fidelidade cotidiana. Antes de termos a expectativa de convencer outros fora da comunidade de fé que somos relevantes, precisamos fazer uma faxina interna.
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