Se ainda pairava alguma dúvida quanto ao fato de que a política externa brasileira é hoje um instrumento a serviço do projeto de poder liberticida de Lula e do PT, ela foi desfeita por dois discursos proferidos pelo presidente da República na semana passada, em Nova York, por ocasião da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU).
No primeiro, realizado no dia 22 de setembro por ocasião da Cúpula do Futuro – mais um desses convescotes autorreferenciais que a nata globalista promove para aumentar sua exposição à mídia tradicional e repetir as mesmas platitudes de sempre – Lula voltou a insistir na divinização do multilateralismo, que não passa de uma ferramenta de ação externa e, portanto, em si, não é bom nem ruim; o que importa são os fins aos quais o multilateralismo serve à luz dos interesses nacionais objetivos, sobre os quais não se há nenhuma clareza. Alçar o multilateralismo como fim autônomo e para valorizar inexistente unidade de meios e propósitos do chamado “Sul Global” em nada fortalece a posição internacional do Brasil, mas – como um bom peão no xadrez geopolítico mundial – alinha o país ao objetivo da China de criar uma nova arquitetura global política, econômica e de segurança que seja mais conducente aos interesses daquela superpotência.
Após a confusão entre forma e conteúdo, o presidente – que teve sua alocução, interrompida por não respeitar o limite de cinco minutos – afirmou ser “inaceitável regredir a um mundo dividido em fronteiras ideológicas”, o que não apenas entrega o anacronismo de uma concepção geopolítica que remonta à Guerra Fria como também pode ser interpretado como um esforço “homogeneizador” que seu governo realiza no âmbito doméstico, onde a tônica é censura e repressão àqueles que divergem do governo. Nesse contexto, não há espaço para divisões ideológicas: ou se está com Lula e a esquerda, ou se é “inimigo da democracia”.
Lula teve ainda o despautério de dizer que “os níveis atuais de... financiamento climático são insuficientes para manter o planeta seguro”. Imagine o leitor a surpresa de todos ao o ouvirem determinar o que é necessário para “manter o planeta seguro” enquanto seu próprio país arde em chamas precisamente por incompetência de seu governo...
Ato contínuo, o presidente apoiou a criação de “instância de diálogo entre Chefes de Estado e de Governo e líderes de instituições financeiras internacionais” para “recolocar a ONU no centro do debate econômico mundial”. Trata-se não do que Lula melhor sabe fazer, mas da única coisa que sabe fazer: diante do que percebe como um problema, a solução é sempre a mesma: mais intervenção, mais cerceamento da liberdade, menos ação privada. Não terá ocorrido ao presidente que, no mundo real, à ONU, instituição cujas inoperância e disfuncionalidade se avolumam há pelo menos 25 anos, cabe no máximo ser espectadora do “debate econômico mundial”, já que atribuir-lhe agência muito certamente concorreria para piorar as condições econômicas globais, seja por meio do aumento da ingerência externa, da instituição do tais “padrões mínimos de tributação global” ou pela maximização do poder conferido a burocratas não-eleitos.
O presidente concluiu suas diatribes com uma ode liberticida criptográfica, referindo-se nominalmente ao Pacto Global Digital, espécie de roteiro para a institucionalização da censura transnacional na Internet, como “ponto de partida para uma governança digital inclusiva”. Lula, aqui, apresentou apenas as premissas policialescas que defenderia mais desabrida e escandalosamente em seu discurso proferido na abertura da AGNU, em 24 de setembro.
Na alocução à AGNU, Lula, sem mencionar os crimes terroristas perpetrados por Hamas e Hezbollah, acusou Israel de transformar “o direito de defesa... no direito de vingança”, enalteceu o documento sino-brasileiro para a instauração de processo de diálogo e fim da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, ignorado pelas principais potências, e silenciou sobre seu endosso à fraude eleitoral de Nicolás Maduro na Venezuela. Ao aludir aos incêndios florestais no Brasil, afirmou que “meu governo não terceiriza responsabilidades”, o que, para a surpresa de ninguém, não corresponde à verdade: a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, disse, na semana passada, que “qualquer incêndio se caracteriza como criminoso”. Partindo do princípio de que Marina não fez admissão de culpa, sua atitude significa precisamente eximir o governo da responsabilidade pela devastação.
Após quase dez minutos de sandices vazias, uma ou outra lorota e aquele tom de indignação teatral que Celso Amorim e seus discípulos tão bem falsificam, Lula voltou à carga com sua sanha autoritária, policialesca e liberticida. Aduziu que “No Brasil, a defesa da democracia implica ação permanente ante investidas extremistas (...) que espalham o ódio, a intolerância e o ressentimento”. Qual bem se vê, um ex-presidente da República, se for conservador, pode ter seus direitos políticos cassados por convocar uma reunião com embaixadores estrangeiros baseados em Brasília para realizar exposição sobre o processo eleitoral brasileiro; o presidente em exercício, contudo, pode usar a AGNU para travestir a perseguição doméstica a seus opositores políticos como “defesa da democracia”.
O mandatário, que em outra ocasião referiu-se ao empresário Elon Musk como “babaca”, aludiu veladamente ao sul-africano em seu discurso de 24/9, em passagem na qual endossa o banimento da plataforma X no Brasil: “...um Estado (...) que não se intimida ante indivíduos, corporações ou plataformas digitais que se julgam acima da lei”. Lula, tão afeito ao uso da expressão “Nunca antes na história deste país”, tem agora motivo legítimo para dela se valer, já que se trata da primeira ocasião em que um chefe de Estado brasileiro se pronuncia a um fórum internacional para defender a censura doméstica. O presidente, contudo, não se contenta com a defesa do status quo: deseja moldá-lo ainda mais em seu favor, o que, presume-se, poderá ser obtido por “uma governança intergovernamental (sic) da inteligência artificial, em que todos os Estados tenham assento”. Não satisfeito em defender a censura em seu discurso à AGNU, Lula se comprometeu a aprimorá-la.
Engana-se quem acredita que algo que seja tão ruim não possa piorar. Os discursos de Lula, que mais se assemelham a um amontoado de ideias apresentadas de forma incoerente e desconectada da realidade factual, refletem, no plano externo, diversos traços de seu governo. Às vésperas das eleições municipais que começarão a redesenhar o mapa político do Brasil com vistas ao pleito de 2026, constata-se que todas as mazelas e os descaminhos da política e da economia brasileiras se materializaram abundantemente no governo Lula 3, com reflexos na iminente votação. Em um cenário marcado por florestas em chamas, proselitismo político, clientelismo, visão geopolítica distorcida e obsoleta, alianças esdrúxulas, déficit fiscal crescente – em contexto de arrecadação recorde e sistemáticos cortes orçamentários em áreas e projetos estratégicos, o que é um indicador “eficiente” de má-gestão –, declarações desastradas, sobretudo no plano internacional, e demonstrações explícitas de inabilidade, falta de coordenação política e ausência de um projeto de país, somam-se reiteradas e inequívocas manifestações de autoritarismo, de intolerância e perseguição política e de ataques à liberdade de expressão.
Ao cidadão comum, que assiste a tudo estarrecido, cabe se perguntar qual seria a ordem subjacente a regular o descompasso administrativo da atual gestão, no plano doméstico, ou qual a invisível – e incompreensível – bússola moral e estratégica a nortear os rumos do país na arena internacional, para além dos sucessivos vexames protagonizados.
Marcos Degaut é Doutor em Segurança Internacional, Pesquisador Sênior na University of Central Florida (EUA), ex-Secretário Especial Adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e ex-Secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa.
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