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Ciência e liberdade na pandemia
| Foto: Pixabay

"A ciência é como uma vela na escuridão" — foi a analogia de Carl Sagan, o grande divulgador do pensamento científico. Ela deveria ser a luz que dissipa o medo, jamais a justificativa de controle com base nele. As restrições extremas de liberdade durante a pandemia de Covid, porém, nascem de uma ampliação da coerção estatal justificada com base no medo e na ciência. Perceber os riscos desse processo é tão importante quanto perceber os riscos do próprio vírus.

Ciência é um processo de busca e descoberta, coerção estatal é uma opção política baseada na força. Dissociar os conceitos não significa negar que o distanciamento social reduza as taxas de infecção. Significa defender a ciência sem se aproximar do autoritarismo.

Para isso é preciso entender que cientistas são pessoas tão cheias de falhas, limitações e vieses quanto quaisquer outras — a ciência torna-se maior que eles ao canalizar tudo isso, por meio do questionamento e da refutação, em um processo que se autocorrige na busca da verdade. Valorizar esse processo e seus resultados não é tutelar, controlar ou coagir a população, mas sim levar a ela as evidências e o próprio debate científico. Ignorância e desinformação só podem ser combatidas com conhecimento e informação, não com coerção.

Descentralização

Decisões livres e descentralizadas são melhores não apenas do ponto de vista moral, mas também porque permitem que o conhecimento gerado por cientistas profissionais se conecte ao conhecimento das outras pessoas sobre sua realidade local (recursos, custos, riscos, necessidades). O mesmo não ocorre em decisões centralizadas, impostas de cima para baixo.

Por isso, talvez a supressão forçada do comércio e de outras atividades mate mais gente de inanição do que salve gente da Covid, seja no país onde ela é aplicada, seja em parceiros comerciais mais pobres (e este é apenas um exemplo do que sabemos que não sabemos, há provavelmente efeitos colaterais que nem desconfiamos e que vão perdurar por anos).

Medidas voluntárias de distanciamento e isolamento, por sua vez, embora também produzam inevitável contração econômica, tendem a se aproximar mais do ponto ótimo entre todos os efeitos e minimizar o total de mortes por Covid, por fome e por todos os fatores que matam cerca de 50 milhões de pessoas anualmente (para ter ideia dessa dimensão, o total de mortes por Covid em 2020 foi cerca de 1,8 milhão).

Países exemplares

Na prática, vejamos os casos de Uruguai, Japão e Suécia, que não impuseram fechamento do comércio e adotaram estratégias abertamente baseadas em informação, conscientização e respeito às liberdades individuais ao longo da maior parte de 2020. De acordo com estatísticas da Organização Mundial de Saúde, no dia 31 de dezembro o número de mortes por Covid por milhão de habitantes na tão criticada Suécia era 864, semelhante ao resto da Europa e inferior ao de muitos europeus que aplicaram duras medidas coercitivas. No Japão, mesmo com uma população extremamente densa e envelhecida, era 26; no Uruguai, incrível caso de sucesso no continente, era 48. Ao mesmo tempo, há diversos países que aplicaram quarentenas precoces, rigorosas e longas, cujos resultados estão entre os piores do mundo, ultrapassando as 1000 mortes por milhão de habitantes.

Está claro que boa parte do comércio fechou voluntariamente nos três países citados, que as empresas aderiram ao teletrabalho, que as pessoas evitaram contato e ficaram em casa por mais tempo, que a atividade econômica experimentou forte queda. Longe de ser um argumento favorável às restrições de liberdade, esse é exatamente o ponto: medidas efetivas podem ser tomadas sem coerção.

Isso não quer dizer que qualquer país conseguiria igualar os resultados uruguaios, nem que o próprio Uruguai vai repetir seu feito a cada nova onda. Quer dizer que medidas impositivas podem não ser determinantes. Além disso, podem ser contraproducentes.

A ciência não pode vir acompanhada de autoritarismo

A sensação de autoritarismo invariavelmente gera desconfiança e revolta, inibe o surgimento de um constrangimento social espontâneo sobre atitudes repreensíveis e incentiva a clandestinidade. Transformar atividades legítimas em transgressões tende a transformar cidadãos honestos em transgressores. Tudo isso exige respostas estatais ainda mais duras e cada vez menos efetivas, que por sua vez passam a ser vistas como ameaças — um ciclo extremamente vicioso.

Por isso é tão importante que a população seja parte da solução e não do problema. A história da vacinação no Brasil é um bom exemplo. Em 1904, a ciência de Oswaldo Cruz era perfeita, mas o mesmo não pode ser dito do modo autoritário como o governo lidou com a população, com péssimos resultados. A própria adesão à vacina, que vinha crescendo, despencou com a tentativa de coerção. Já no final do século, o incrível sucesso que as campanhas de vacinação tiveram por todo o Brasil dificilmente pode ser atribuído à obrigatoriedade.

Políticas públicas que geram resultados opostos ao esperado não são novidade. Evitá-las não reduz a importância do Estado, principalmente na pandemia — hoje ele é responsável por leitos, testes, medicamentos, flexibilização de regulamentos para incentivar o teletrabalho e a educação à distância, proteção social, produção transparente de dados atualizados sobre o contágio e difusão de informações relevantes. Além disso, algumas regulações estatais que interferem de maneira reduzida na liberdade geral podem até ser justificáveis, como a imposição do uso de máscaras em ambientes públicos e a suspensão de grandes eventos presenciais.

Radicalização

O que vimos no mundo em 2020, porém, foi uma inegável radicalização: proibições e limitações sobre praticamente todas as dimensões da vida, durante período indeterminado. Justificar tamanho controle pelo conceito de externalidade (impactos de uma decisão sobre aqueles que não participaram dela) é abusar do conceito. Por isso nunca foi proposto algo semelhante para conter a gripe comum e a tuberculose, que juntas matam cerca de 2 milhões todos os anos. Determinar o que é essencial ou não dentre todas as atividades humanas só é “científico” no mesmo sentido que o planejamento econômico central pretende ser.

Tal radicalização revela não um apreço pela ciência, mas sim uma profunda crença na coerção. De fato, após o crescimento da pobreza (com todos os riscos de morte associados), após imposições controversas que por vezes concentraram mais do que distanciaram pessoas, após meses para ampliar o rastreio e o número de leitos, deveríamos aceitar menos coerção — mas governos de muitos países usaram os próprios insucessos como justificativa para aumentá-la. Ciência nada tem a ver com isso.

Ciência e liberdade individual não apenas se encaixam, mas amplificam uma à outra ao fazer todos mais capazes, conscientes, responsáveis e questionadores. Optar por outro caminho é desprezar os valores moral e utilitário da liberdade. Esses valores são responsáveis por todo o sucesso e bem-estar que as sociedades livres atingiram. São responsáveis pelo próprio avanço científico. Crises, por mais ameaçadoras que pareçam, são justamente os momentos em que mais precisamos deles.

*Nilo Saccaro é biólogo e pesquisador do Ipea**.
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O texto reflete exclusivamente as opiniões do autor

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