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Opinião

Como as democracias morrem: uma versão brasileira

Tempestade ao fundo das colunas do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, no dia 28 de setembro de 2023
Tempestade ao fundo das colunas do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, no dia 28 de setembro de 2023 (Foto: EFE/André Borges)

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O best-seller “Como as Democracias Morrem”, dos professores de Harvard Daniel Ziblatt e Steven Levitsky, tornou-se leitura de cabeceira para algumas das mentes mais iluminadas que hoje comandam nossa “democracia” – inclusive para o ministro do STF Luís Roberto Barroso.

À primeira vista, pode parecer que isso se deve a uma legítima preocupação com os alertas do livro, que denuncia as estratégias com que líderes tirânicos sequestram sistemas democráticos. No entanto, a análise mais minuciosa revela uma constatação trágica – e, de certa forma, irônica: talvez nossos líderes vejam a obra, na verdade, como um manual de instruções.

O livro inicia reconhecendo que “as iniciativas governamentais para subverter a democracia frequentemente têm um verniz de legalidade” e são “aprovadas pelo Parlamento ou julgadas constitucionais pelas supremas cortes”, sob o pretexto de atingir algum objetivo legítimo, como defender o processo eleitoral ou até a democracia em si.

O princípio do fim, portanto, se dá dentro das quatro linhas da lei. Para ilustrar o modus operandi dos autocratas, os autores até recorrem à analogia de uma partida de futebol:

“Para consolidar o poder, autoritários potenciais têm de capturar o árbitro, tirar da partida pelo menos algumas das estrelas do time adversário e reescrever as regras do jogo em seu benefício, invertendo o mando de campo e virando a situação de jogo contra seus oponentes.”

Capturando os árbitros

No contexto brasileiro, “capturar os árbitros” significa nomear aliados políticos para ocupar cargos em instituições que, supostamente, deveriam funcionar com autonomia – como as empresas estatais, agências reguladoras, o Banco Central, o Supremo Tribunal Federal (STF), as Forças Armadas, a Polícia Federal, a ABIN, entre outras.

Mesmo antes da posse do atual governo, os primeiros sinais desse processo já se faziam notar. Membros da “equipe de transição” empenharam-se em alterar a Lei das Estatais para facilitar nomeações políticas, dispensando a necessária qualificação técnica. No primeiro ano de mandato, a indicação do advogado pessoal do presidente e de um aliado político de longa data para o STF reforçou a determinação de seguir à risca a estratégia autocrática descrita em “Como as Democracias Morrem”:

“Capturar os árbitros dá ao governo mais que um escudo. Também oferece uma arma poderosa, permitindo que ele imponha a lei de maneira seletiva, punindo oponentes e favorecendo aliados.”

Em entrevista recente à revista progressista americana The New Republic, Ziblatt destacou que o simples ato de abrir uma investigação pode ser suficiente para intimidar a oposição – uma das táticas preferidas dos tiranos. A lei, então, passa a ser um instrumento de silenciamento: bastam alguns “casos exemplares” para sinalizar a milhares de pessoas que não vale a pena se envolver na política como antes.

Assim, podemos imaginar uma situação extrema em que os árbitros, já cooptados, iniciam investigações intermináveis, valendo-se de flagrantes permanentes e estendendo prisões preventivas por tempo indeterminado. Não haveria limites para a criatividade na perseguição aos adversários políticos.

Mas atacar a oposição é apenas um dos lados da moeda da cooptação do judiciário e das instituições; o outro consiste em blindar o próprio regime:

“Essas instituições podem servir aos objetivos do aspirante a ditador, protegendo o governo de investigações e processos criminais que possam levar ao seu afastamento do poder. O presidente pode infringir a lei, ameaçar direitos civis e até violar a Constituição sem se preocupar com a possibilidade de tais abusos serem investigados ou censurados.”

Em uma situação hipotética absurda, veríamos os mesmos crimes – como, por exemplo, o compartilhamento de fake news – sendo severamente punidos quando cometidos pelos inimigos do regime, enquanto permaneceriam impunes se praticados por aliados.

O que salta aos olhos é que, embora Ziblatt e Levitsky detalhem como governos corruptos se protegem contra penas por crimes potenciais – como, por exemplo, a violação do teto de gastos – parece ter lhes faltado imaginação para considerar a possibilidade de reversão de penas para delitos já investigados, condenados e confirmados pelas cortes superiores.

Além disso, há outra notável falha de imaginação dos autores: a preocupação de que “autoridades fazendárias possam ser usadas para atacar políticos e empresas rivais”. Parece que não passou por suas cabeças que essas mesmas autoridades poderiam também ser empregadas para beneficiar aliados – por exemplo, concedendo generosos descontos em acordos de leniência para réus confessos.

Tirando os adversários de campo

O segundo estágio da estratégia autocrata concentra-se em garantir que os principais adversários – aqueles realmente capazes de ameaçar o regime – sejam “marginalizados, obstruídos ou pagos para entregar o jogo”. Aqui, falamos de políticos, líderes empresariais, personalidades midiáticas e outras figuras que desfrutam de alguma influência social. Segundo os autores, a maneira mais eficaz de neutralizá-los é comprá-los:

“A maioria dos autocratas eleitos começa oferecendo posições públicas, favores e prerrogativas a figuras políticas, do mundo dos negócios e da mídia, ou suborno direto em troca de apoio ou, pelo menos, discreta neutralidade”

Essa triste realidade também já se manifestava antes mesmo da posse do atual regime, que já articulava para ampliar os limites de despesas das estatais em patrocínio e propaganda. A estratégia avançou com a nomeação de influenciadores digitais e empresários aliados para compor o “Conselhão”, além de promover e remunerar artistas politicamente alinhados através da (já tradicional) Lei Rouanet e de eventos como o “Janjapalooza”.

Contra aqueles adversários que não se deixam comprar, os autocratas recorrem a outros métodos. É preciso substituir os incentivos por ameaças, forçando até os veículos de comunicação mais independentes a adotar uma autocensura quase patológica.

Casos recentes (e sintomáticos) no Brasil incluem a censura imposta pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ao Grupo Jovem Pan durante as eleições de 2022 – que culminou na renúncia de sua diretoria após ameaças do Ministério Público Federal (MPF) de cassar suas concessões – e a censura prévia do mesmo TSE à produtora Brasil Paralelo, que pretendia lançar um documentário sobre o atentado a Jair Bolsonaro.

Ziblatt destaca os sinais de que essa estratégia está em curso: “quando a mídia deixa de reportar certos assuntos ou quando jornalistas amenizam suas críticas, podemos ler muitas coisas neste silêncio.”

Aqui, o regime autocrata brasileiro, mais uma vez, se mostrou além da imaginação dos autores – que consideram táticas como espionagem, prisão ou exílio de adversários políticos características de “ditadores da velha guarda”. Entre essas práticas, destacam-se o misterioso sumiço das inserções de rádio da campanha de Jair Bolsonaro em 2022, a espionagem de mensagens privadas em grupos de WhatsApp, além de prisões e outras medidas arbitrárias contra jornalistas críticos, muitos dos quais hoje vivem no exílio.

No campo político, o líder da oposição foi declarado inelegível, e o deputado federal e ex-promotor responsável por condenar crimes de figuras poderosas do governo atual, teve seu mandato cassado.

As redes sociais, com sua gestão sediada no exterior e usuários dispersos pelo país, permanecem como um dos últimos bastiões contra o autoritarismo – embora o regime clame incessantemente por sua “regulação”. A recente ameaça do MPF contra a Meta, em razão de mudanças no modelo de checagem de fatos, e a suspensão do X/Twitter por ordem do STF – acompanhada do bloqueio das contas da Starlink – ilustram bem esse cenário.

Segundo Levitsky, o objetivo final dessas estratégias não é apenas punir os adversários do regime, mas alterar a relação custo-benefício para atores políticos e sociais, incentivando-os a evitar expressar insatisfação ou desafiar a narrativa oficial.

Celular mostrando o aplicativo da rede social X momentos após ele ter parado de funcionar no Brasil devido ao bloqueio imposto pelo Supremo Tribunal Federal, no dia 30 de agosto de 2024. (Foto: EFE)

Reescrevendo as regras

A essa altura, já vimos inúmeros exemplos de regras sendo reescritas. Podemos ainda citar o fim da prisão em segunda instância – que beneficiou muitos altos membros do partido no poder – e as constantes interferências do STF na execução do orçamento.

Porém, os autores expressam preocupação especial com a reescrita das regras eleitorais, alertando que regimes autoritários frequentemente modificam as regras e “rescindem direitos eleitorais para garantir que não perderão.”

Em um país onde o ex-presidente do TSE afirmou, logo após as eleições, ter “derrotado o bolsonarismo”, é notável que mudanças nas leis eleitorais — especialmente as medidas para combater as “fake news” – foram implementadas às vésperas das últimas eleições, fora do prazo legal estabelecido. Além disso, os esforços para alterar as regras das eleições para o Senado Federal em 2026, antecipando uma eventual vitória da oposição, também geram preocupação.

A abdicação coletiva

No ano passado, Levitsky declarou em entrevista que “há um lado sombrio nessa influência expandida” do STF no Brasil. Segundo ele, “uma vez que um órgão não eleito começa a se intrometer na democracia, às vezes é difícil reverter isso. Embora eu não possa apontar o caso específico, reconheço que este é um assunto de real preocupação pública para o Brasil.”

É razoável supor que muitos eleitores, que alegaram ter votado para “salvar a democracia”, passem a ter ressalvas em continuar apoiando o regime ao ver medidas cada vez mais autocráticas sendo implementadas. Entretanto, para Levitsky, “jamais se pode contar com os eleitores para votar em favor da democracia”; segundo ele, a defesa da democracia cabe às elites.

Quando essas elites se calam – normalizando o autoritarismo, seja por interesses econômicos, conveniência política ou medo de retaliação – e renunciam à sua capacidade de conter abusos, ocorre o que ele chama de “abdicação coletiva”, em que as restrições institucionais que deveriam frear os avanços autocráticos deixam de funcionar:

“O paradoxo trágico da via eleitoral para o autoritarismo é que os assassinos da democracia usam as próprias instituições da democracia – gradual, sutil e mesmo legalmente – para matá-la.”

A abdicação coletiva se instala na polarização entre uma coalizão governante, fundamentada em interesses econômicos, e uma oposição dispersa, fundamentada em pouco mais do que um repúdio comum ao establishment – e sob uma combinação de medo, exaustão e resignação que leva muitos à mais pura inércia.

Enquanto a economia estiver relativamente saudável e as instituições mantiverem as aparências, a maioria das pessoas continuará vivendo sua vida tranquilamente, indiferente às perseguições orquestradas por inquéritos ilegais, prisões por vandalismo com batom ou bloqueios de redes sociais alheias.

E assim, na calada da normalidade, as medidas autoritárias são implementadas tão sutilmente e com tal verniz de legalidade que a deriva para o autoritarismo raramente causa qualquer alarme. Como o livro de cabeceira do autocrata brasileiro médio nos ensina, as democracias costumam morrer quase sem serem notadas:

“Os cidadãos muitas vezes demoram a compreender que sua democracia está sendo desmantelada – mesmo que isso esteja acontecendo bem debaixo do seu nariz.”

Jefferson Vieira é economista com uma década de experiência no mercado financeiro e em organizações multilaterais, baseado na Europa.

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