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Juana Duran, residente no New Jewish Home em Manhattan, recebe a vacina Pfizer-BioNTech COVID-19 em 21 de dezembro de 2020 na cidade de Nova York.
Juana Duran, residente no New Jewish Home em Manhattan, recebe a vacina Pfizer-BioNTech COVID-19 em 21 de dezembro de 2020 na cidade de Nova York.| Foto: Spencer Platt / Getty Images / AFP

Ao lado de outras ocasiões em que a ciência concentrou esforços para solucionar um problema de saúde que extrapolava fronteiras, a corrida pela vacina contra o Sars-CoV-2, o vírus causador da Covid-19, é mesmo um feito impressionante. O tempo transcorrido entre o dia em que a China declarou ter descoberto o vírus, 31 de dezembro de 2019, e a data de aprovação pela Food and Drug Administration (FDA) da vacina produzida pela farmacêutica Pfizer em parceria com a alemã BioNTech nos Estados Unidos, é rápido como nunca se viu se comparado a qualquer outra vacina.

Por isso, um artigo escrito por pesquisadores do projeto Our World in Data, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, caiu nas graças do público. Ele comparava quanto tempo se passou entre a identificação do agente causador de 16 doenças e o ano em que uma vacina contra eles foi aprovada nos Estados Unidos. Foram necessários, por exemplo, 133 anos para que um imunizante eficiente contra a febre tifoide chegasse ao mercado. Quase meio século se passou entre a descoberta do vírus da poliomielite até a comprovação de que a vacina que erradicou a doença era segura, eficaz e viável.

É evidente que cada uma destas empreitadas teve seus próprios contextos. Mas o caminho até este 15 de dezembro de 2020, quando há pelo menos duas vacinas inovadoras aprovadas em tempo recorde, foi pavimentado por dois fatores imprescindíveis que sustentaram o desenvolvimento tecnológico alcançado nas últimas décadas: a liberdade econômica e o investimento privado.

Liberdade e troca de informações

“É importante pensar na liberdade, antes de tudo, como uma forma de permitir trocas e compartilhamentos de informação entre as pessoas com o mínimo de barreiras possível”, explica Davi Lyra Leite, doutor em Engenharia Biomédica e pesquisador da Universidade de Northwestern.

“Desde o começo da pandemia, a liberdade de mercado permitiu que cientistas compartilhassem o sequenciamento do vírus que estava sendo feito ao redor do mundo. Com isso descobrimos, por exemplo, que os nossos primeiros casos no Brasil tinham origem na Itália e não na China - o que nos levou a coordenar políticas públicas e ações voluntárias (protocolos de higiene e distanciamento adotados por empresas privadas) mais específicos”, explica Leite.

Em outros tempos, com menos dinheiro investido em tecnologia de ponta, isso não era tão fácil. “Os servidores e serviços de comunicação hoje permitem que terabites de dados sejam enviados em segundos. Em um contexto mais estatista, por exemplo, o ‘Ministério da Saúde da China’ compartilharia a informação com o do Brasil dentro de um acordo específico dos dois governos, e o governo brasileiro escolheria quais laboratórios poderiam receber essa informação para, aí sim, começar a fazer alguma coisa”.

Risco e iniciativa privada

Além do acesso às melhores informações disponíveis, o desenvolvimento de medicamentos inovadores requer um ambiente no qual se possa correr riscos. E, para isso, o investimento de empresas privadas é fundamental. Foi o próprio CEO da Pfizer, Albert Bourla, quem justificou o excesso de burocracia pela recusa da empresa ao capital angariado pela Operation Warp Speed, uma parceria público-privada liderada pelo governo americano para fomentar pesquisas sobre a Covid-19.

"Eu queria libertar nossos cientistas de qualquer burocracia. Quando você recebe dinheiro de alguém, isso sempre vem com limitações. Eles querem relatórios. Eu não queria ter nada disso. Basicamente, dei a eles [os cientistas da Pfizer] um cheque em branco para que se preocupem apenas com os desafios científicos, e nada mais. Além disso, queria manter a Pfizer fora da política”, disse Bourla em entrevista a uma TV americana.

É verdade que a BioNTech, parceira da Pfizer responsável pelo desenvolvimento da tecnologia da vacina de RMNA - a grande novidade da medicina na pandemia - recebeu um aporte de 445 milhões de euros do governo alemão. O dinheiro, entretanto, só foi disponibilizado em setembro. Boa parte da pesquisa, portanto, se deu antes, com dinheiro privado.

Livre mercado e parcerias

A própria parceria espontânea entre duas empresas de continentes diferentes não seria possível em um ambiente autoritário. “O livre mercado permitiu a união da expertise da BioNTech - a produção da vacina de RNMA - com a capacidade de produção em massa da Pfizer”, explica Leite.

“Tanto a Pfizer quanto a Moderna, que estão na linha de frente da corrida, foram empresas que receberam um aporte de capital privado gigantesco em um ambiente de risco muito elevado. Elas tinham uma tecnologia promissora, mas que nunca havia sido aplicada de maneira convincente para nada”, diz o médico infectologista Artur Brito, que atua na linha de frente do combate ao coronavírus e é membro do Movimento Livres.

O caso da Moderna Therapeutics, empresa que recebeu patrocínio da Operation Warp Speed (da qual participaram outras instituições privadas), também merece destaque. A companhia foi fundada em 2010 com o objetivo de criar tecnologia baseada na inoculação de RNA mensageiro para produção de medicamentos contra o câncer e outras doenças. Cotada em 37,5 bilhões de dólares após alta de 400%, a Moderna nunca entregou um produto ao mercado.

“Seu valor era devido ao entendimento do mercado de que ali havia uma tecnologia inovadora que deveria receber suporte. Só um ambiente de liberdade pode favorecer algo desse tipo. Imagine o tamanho da pressão política que haveria para que uma empresa dessas fosse fechada, se fosse bancada apenas com o dinheiro do contribuinte. E aí a gente chega em uma pandemia e a tecnologia se faz necessária”, detalha Brito.

O especialista recorda que a tecnologia do RNA mensageiro - bem como a maioria das descobertas científicas em nível básico, “pré-produto” - foi desenvolvida por laboratórios e universidades que contavam com amplo financiamento estatal. “Ainda assim, é importante ressaltar que existe um longo caminho entre a tecnologia existir e ser viável do ponto de vista comercial. Sem investimento privado, as descobertas nunca serão revertidas para a população”, avalia.

Incentivos

O ambiente de incentivo à inovação resultou na disponibilidade de diferentes tipos de vacina no mercado. “Há quem questione a livre iniciativa dizendo que a Coronavac foi desenvolvida por um laboratório público chinês. Ocorre que a Coronavac é uma vacina de primeira geração, feita com o vírus inativado. Sua tecnologia não traz nenhuma inovação”, explica Brito. “O que não significa que ela não funcione. Na verdade, ela facilita que os países que já dominam essa tecnologia copiem o modelo, como é o caso do Butantã no Brasil. Mas é uma tecnologia que requer uma infraestrutura muito grande, mais difícil de ser implantada em países mais pobres. No médio e longo prazo, a tendência é que as vacinas de RMNA sejam muito mais baratas”, continua o infectologista.

Diante da aprovação da vacina de Pfizer e da Moderna nos Estados Unidos e no Reino Unido, a lucratividade dessas empresas passou a incorporar o “espantalho” construído pelos descrentes do capitalismo - principalmente após a informação de que a vacina não seria vendida a preço de custo.

“Se a Pfizer tivesse aberto mão do lucro com todos os outros medicamentos que já fez, não teria acumulado os bilhões de dólares necessários para redirecionar todas as suas linhas de pesquisa internas para desenvolver a vacina contra a Covid-19. Tendo direcionado todo o seu lucro para produzir essa tecnologia, a empresa precisa se manter sustentável”, explica Davi Lyra Leite.

Comparando com a crise da escassez de insulina e penicilina no Brasil, ocasionada por conta de uma série de mudanças nas permissões dadas aos laboratórios produtores, Leite explica que o lucro das empresas privadas serve para protegê-las de “choques externos”, reduzindo a oscilação do preço final. “Se acontece um terremoto na China ou um problema de linha de transmissão nos Estados Unidos, essa reserva financeira garante que o ônus seja menor para o paciente. É preciso considerar a oscilação temporal em anos, não apenas em meses”, defende.

Perigo autoritário

Para Brito, a visão de que as empresas privadas não têm qualquer responsabilidade social é ultrapassada. Some-se a isto a crítica recorrente aos planos de distribuição da vacina contra a Covid-19, acusados de “favorecer os mais ricos”. “Neste exato momento, as empresas privadas estão servindo muito mais como um contrapeso aos nacionalismos exacerbados do que estimulando disparidades. A distribuição das vacinas pelo mundo é mais equânime por conta das empresas privadas – vide as vacinas da Pfizer e Moderna sendo vendidas para vários países. Cabe, sim, aos Estados nacionais distribuir internamente e determinar prioridades”, defende o médico.

Ao contrário, o efeito prático de se ter menos liberdade pode recair, justamente, sobre a distribuição da cura. “Os Estados nacionais também têm interesses – e podem ser tão difíceis de justificar moralmente quanto a busca do lucro. Imagina se a China fosse o único país do mundo a desenvolver a vacina, sem esse ambiente de ampla concorrência?”, questiona Brito. “Mais do que definir se a melhor vacina foi feita em um laboratório público ou privado, a garantia da liberdade de mercado - sem favorecimentos - para que todos façam suas pesquisas e comercializem seus produtos é o que garante o avanço científico”.

Transparência e democracia

Há que se considerar, por fim, a transparência do processo através do qual as vacinas foram produzidas. Enquanto os imunizantes da Pfizer/BioNTech, da Moderna e da AstraZeneca/Oxford já passaram da fase 3 dos testes, a Coronavac segue sem ter seus resultados finais divulgados.

“Quando não há o escrutínio estatal em todas as fases do processo, é preciso atender às solicitações do público, que pede por muito mais garantia de eficácia e segurança. Se tudo depende apenas do selo de aprovação do regulador, há menos incentivo para que se divulgue os valores verdadeiros”, explica Leite.

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