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O condutor de um bonde descontrolado precisa decidir se atropela 3 pessoas ou só 1. Nós estamos no trilho e o governo está na direção.
O condutor de um bonde descontrolado precisa decidir se atropela 3 pessoas ou só 1. Nós estamos no trilho e o governo está na direção.| Foto: Pixabay

A maioria dos aspirantes a filósofos conhece bem o “Dilema do Bonde” ou, para ser mais preciso, os vários dilemas do tipo, que buscam revelar se você prefere agir deliberadamente de modo a prejudicar uns poucos a fim de reduzir os danos à maioria. O objetivo desses dilemas é lançar luz sobre a moralidade e a intuição moral.

O exemplo clássico propõe a seguinte dúvida: um bonde está fora de controle. Em seu caminho, há três pessoas amarradas. Mas felizmente é possível apertar um botão que fará com que o bonde mude seu percurso para um trilho onde há apenas uma pessoa amarrada. Se você opta por fazer com que o bonde mude de direção, o lado bom é que você salva duas pessoas; o lado ruim é que você é o responsável direto pela morte de uma pessoa.

Dá quase para ouvir o sussurro do filósofo: “Isso está acontecendo”. O coronavírus é o dilema do bonde do século XXI. Bom, quase isso.

O dilema moral

Alguns órgãos e autoridades do governo decidiram prejudicar milhões de pessoas fechando empresas, tirando o emprego de trabalhadores e separando as pessoas de suas famílias e amigos, na crença justificada (supõe-se) de que estão mitigando um problema maior.

Talvez. Mas como se pode ter certeza? E por que isso é importante?

Mais assustador do que o vírus — ao menos para este articulista que, estando saudável, se sente bastante seguro quanto às suas chances de sobreviver a um vírus que quase com certeza vai ser apenas uma gripe pesada, na pior das hipóteses — são essas forças governamentais que decidiram assumir o controle do bonde.

Levando o dilema ao extremo, o governo acha que, ao propor a paralisação do país, ele salvará a vida das pessoas num dos trilhos ao custo de apenas quebrar as pernas dos demais.

Cálculo moral

Mas o cálculo moral depende de quantas vidas serão ou poderão ser salvas (não é a mesma coisa) em comparação com os meios de sustento destruídos e outros efeitos nocivos.

E a resposta a essa pergunta deve levar em conta o fato de que os meios de sustento destruídos causarão a perda de vidas — perdas que talvez sejam menos visíveis do que as mortes causadas pelo vírus.

Todos sabemos por que os governos estão agindo assim. Ao proibirem as viagens e obrigarem as empresas a fechar, por exemplo, eles estão tentando “achatar a curva” — diminuir o pico de infecção da Covid-19 na esperança de que uma porção maior dos doentes possa sem tratada com sucesso. Isso significa que o pico será retardado, mas a estratégia não reduzirá a quantidade total de pessoas infectadas ou que morrerão por causa do vírus no longo prazo (embora isso possa acontecer também).

Agora estou muito próximo de pessoas que já perderam o emprego ou que ficarão na rua por causa do fechamento obrigatório das empresas. Se você não puder alimentar e abrigar sua família, então no balanço geral das probabilidades as consequências para você e os seus serão piores do que as do vírus — sobretudo se vocês forem saudáveis. (Números recentes da Itália mostram que 99% dos mortos por coronavírus tinham comorbidades).

Os efeitos da pobreza e do isolamento se acumularão com o tempo – e alguns deles talvez alcancem picos como os da doença. Alguns desses efeitos estão relacionados à falta de acesso a recursos materiais e outros às consequências psicológicas de problemas para os quais não temos ainda dados.

Em certo sentido, a reação mundial é como a do aluno que acabou de descobrir o utilitarismo, mas não entendeu direito a aula. O utilitarismo é a filosofia moral que diz que a ação boa ou certa é aquela que gera um bem maior para a maioria dos pessoas. Um dos problemas fundamentais disso é exemplificado pela seguinte pergunta: se pudéssemos salvar 10 pessoas matando uma e doando seus órgãos para essas 10 pessoas, deveríamos fazer isso? Há um motivo para a resposta ser negativa. Ainda assim, no caso da reação à Covid-19 muitas jurisdições não veem problema em pôr em risco a saúde material e física de muitas pessoas a fim de salvar outras.

Seja você um utilitarista ou não, você tem de admitir a importância da pergunta e do princípio em jogo.

Antes que você decida se é ou não justo questionar as políticas oficiais, lembre-se de que não usamos a força nem para tirar um rim de uma pessoa saudável e salvar a vida de outra — ainda que a remoção de um os rins não tenha consequências maiores para o doador.

Então por que se pode tirar um emprego ou um lar ou o sustento de uma pessoa para salvar qualquer outro desconhecido — sobretudo quando esse outro não é vítima de uma ação maligna e é livre para agir para evitar um dano em potencial?

O termo fundamental aqui – a palavra moral — é, claro, “obrigatoriedade”.

Escolhas

Temos de revisar nossa analogia com o Dilema do Bonde. Para adequá-lo à situação na qual nos encontramos diante da ameaça da Covid-19, precisamos mencionar que as pessoas presas aos trilhos podem agir. Elas sabem que o bonde está se aproximando e a maioria delas (embora não todas) pode fazer o que quiser para sair dos trilhos.

Ainda que as pessoas que temem a Covid-19 possam se precaver, aquelas que perderam o emprego ou moradia por causa das medidas impostas pelo governo não têm voz para contestar o que está lhes acontecendo. Se os restaurantes na minha cidade, Seattle, permanecerem abertos, ninguém será obrigado a frequentá-los e se expor ao risco. Todos os envolvidos — proprietários, trabalhadores e clientes — teriam de fazer uma escolha. Por outro lado, o trabalhador que ganha salário mínimo e que foi demitido ou o empresário que não consegue cobrir os custos não têm como se proteger.

Mesmo assim, muitas pessoas veem com bons olhos a forma como o governo está agindo. É compreensível e a razão para isso é simples. Muitos de nós acreditamos que “se permitirmos que as pessoas façam essas escolhas, aumentará a probabilidade de o vírus me matar”.

Talvez. Mas a validade disso depende sobretudo de você. Que tal as seguintes alternativas mais justas e proporcionais?

Alternativas

Se tenho mais medo da possibilidade de perder meu sustento fechando meu restaurante ou sendo demitido, então me deixe trabalhar. Se tenho mais medo da probabilidade de perder minha vida comendo ou trabalhando num restaurante, deixe-me ficar em casa.

Claro que as pessoas devem dispor das melhores informações possíveis para avaliar e comparar os riscos cotidianamente – mas por que lhes tiraríamos isso quando há vidas e empregos em jogos e as circunstâncias de cada um são tão diferentes?

Entre as informações estariam a baixa probabilidade de receber tratamento com os hospitais lotados — assim você saberia do risco que estaria correndo ao frequentar estabelecimentos comerciais como trabalhador ou consumidor. Mesmo sob condições semidraconianas (e essa não é uma palavra dura demais para uma medida que tira o emprego de dezenas de milhares de pessoas e possivelmente as joga na mendicância), você provavelmente não vai conseguir tratamento quando precisar porque talvez não haja leitos disponíveis.

Então por que não dar às pessoas informações sobre todos esses fatores e riscos e deixar que elas decidam sozinhas por si mesmas ou para seus entes queridos, inclusive os filhos?

Ao deixarmos de fazer isso, estamos num caminho bastante perigoso.

Revisando o Dilema do Bonde

As projeções mais pessimistas de mortes por coronavírus mencionam 3% da população. Alguém já fez as contas de quantas vidas serão perdidas por causa das consequências econômicas de uma quarentena que durará o necessário para que essa doença desapareça, tendo em mente o fato de que, quanto mais retardarmos o contágio, mais tempo levará para que a doença atinja seu pico e para que o povo fique imune a ela? Alguém já tentou calcular a expectativa de vida de um idoso com a saúde frágil em relação ao ganha-pão de famílias inteiras? Será que queremos pensar nesses termos?

Se a resposta é “não”, então, para voltar ao dilema do bonde, como o governo pode dizer qual trilho tem menos pessoas ou pessoas menos vulneráveis — e por que caminho ele deve seguir?

Vamos fazer uma última modificação na analogia do bonde aplicada ao coronavírus: você não está no comando, o governo é que está e você é uma das pessoas nos trilhos. A ação do governo que você apoia provavelmente tem relação com o trilho no qual você se encontra — e isso dependerá da sua personalidade, saúde física e financeira, entre outros fatores.

Se você teme pegar o vírus (talvez por causa da saúde debilitada ou porque você fica ansioso), é mais provável que apoie as decisões do governo de arruinar o sustento dos outros para protegê-lo. Se você não teme (talvez porque é jovem, saudável ou está mais preocupado em perder seu emprego), é mais provável que você se ressinta dos danos causados ao seu sustento e ao dos outros e se preocupe com as consequências de longo prazo das decisões que estão sendo tomadas.

Em outras palavras, sua preferência depende de seus princípios — e também de seu enviesamento.

Como estamos lidando com vidas e mortes, temos o dever moral de analisar esse olhar enviesado antes de permitir que qualquer um tome a decisão quanto ao rumo do bonde, sobretudo porque, uma vez que deixemos que o governo assuma o controle, pode apostar que ele vai querer mudar o rumo do bonde o tempo todo.

Há vários enviesamentos em ação. Eis aqui apenas três deles.

O primeiro, o efeito pseudocerteza, é bastante claro. Trata-se da tendência de fazer escolhas avessas ao risco (como evitar que as pessoas façam negócio) quando se espera um resultado positivo, mas fazendo escolhas de risco (como paralisar toda a economia) para evitar resultados negativos.

O segundo é o viés de otimismo. Trata-se da tendência de subestimar a possibilidade de consequências indesejáveis (como as consequências da destruição de milhares de empresas, milhões de empregos e meses de educação) e superestimar consequências agradáveis (como a redução na quantidade de pessoas infectadas pelo vírus).

O terceiro é o viés de disponibilidade. Isto é, a tendência de dar peso demais a consequências sobre as quais temos mais informações e conhecimento (como a morte por causa de uma doença) e peso de menos para consequências sobre as quais não temos informações e não podemos conceber (como, e eu odeio me repetir, as consequências da destruição de milhares de empresas, milhões de empregos e meses de educação).

Em relação a tudo isso, lembre-se de que muitas das medidas que estão sendo tomadas por autoridades emergenciais para proteger vidas no curto prazo terão consequências incalculáveis sobre a saúde e a vida tanto no curto quanto no longo prazo.

Mais uma vez, será que alguém fez as contas — ou só estamos reagindo? E, se estamos apenas reagindo, será que (para usar uma expressão da moda nos círculos progressistas) “fizemos a autocrítica”?

Voltemos à terceira preconcepção – a do viés de disponibilidade. É dela que são feitas as tiranias, porque ela faz com que nós, o povo, abdiquemos de nossos direitos civis (e, ao menos nos Estados Unidos, constitucionais) “para nosso próprio bem”. Num momento de medo ou pânico, preferimos uma segurança precária à liberdade individual (“Aqueles que abdicam da liberdade fundamental para adquirirem uma segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança”, como disse Benjamin Franklin), assim como a segurança à responsabilidade individual.

"É fácil para você dizer"

Você pode desprezar tudo o que foi dito aqui com um “é fácil para você dizer”. E você estaria com toda a razão: é mesmo muito fácil para mim.

Mas meu ponto é que eu — e você — deveria ao menos ter voz quando há tanta coisa em jogo — e morrer por causa de um vírus ainda é uma forma bastante improvável de perder a partida.

Voz e escolha. A moralidade e a liberdade exigem essas duas coisas apenas porque o fato de eu ter escolha não significa que a sua escolha foi tirada e não o condena à morte. Não chega nem perto disso.

Se, por outro lado, a voz e a escolha forem tiradas de mim e de todos, então é melhor você ser capaz de olhar nos olhos da mãe que ganha salário mínimo e dizer que não há nada de mau no fato de ela perder o emprego a fim de reduzir em uma fração sua chance de morrer por causa de uma doença.

E se pessoas como eu saírem para comer e contraírem a doença, você pode me desprezar de novo, já que estarei sofrendo em casa, uma vez que não haverá leitos o bastante no hospital.

Não que isso fosse fazer muita diferença para mim se eu perdesse meu plano de saúde — e meu teto — juntamente com meu trabalho e minha liberdade.

Robin Koerner é o fundador da WatchingAmerica.com, consultor e escritor.

© 2020 FEE. Publicado com permissão. Original em inglês
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