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“Uma campanha de informação justa sobre o impacto das telas no desenvolvimento com diretrizes claras seria um bom começo: nada de telas para crianças de até seis anos de idade e não mais do que 30-60 minutos por dia”
“Uma campanha de informação justa sobre o impacto das telas no desenvolvimento com diretrizes claras seria um bom começo: nada de telas para crianças de até seis anos de idade e não mais do que 30-60 minutos por dia”| Foto: BigStock Photo

Já se passaram quatro décadas desde que o psicólogo neozelandês James Flynn (1934 - 2020) observou um fenômeno que carregaria seu sobrenome: o aumento de Quociente de Inteligência (QI) a cada geração.

O pesquisador percebeu, por exemplo, que se um americano médio fizesse o primeiro teste de QI, elaborado em 1939, atingiria cerca de 130 pontos — um número atribuído a pessoas geniais. Da mesma forma, se o teste atual fosse aplicado a um americano médio daquela época, sua pontuação seria a que hoje é esperada de deficientes intelectuais: 70 pontos.

A compreensão do Efeito Flynn levou à elaboração de diversos testes de QI, atualizados a cada 25 anos para dar conta do desenvolvimento cognitivo alcançado pela geração que passou.

O próprio Flynn, contudo, não ficou embriagado de otimismo com a própria descoberta. Ele próprio considerou que era muito improvável que uma pessoa com inteligência mediana nos dias de hoje pudesse ser, de fato, considerada um gênio para os padrões da década de 1930.

O psicólogo defendia, por exemplo, que o avanço das ciências e da tecnologia levou a um aumento da capacidade de pensamento abstrato (em sua palestra no TED Talks ele exemplifica, por exemplo, que à pergunta “como você se sentiria se acordasse com outra cor de pele”, nossos bisavós provavelmente responderiam que “isso jamais aconteceria”), o que teria levado a um aumento geral na parte do teste conhecida como Matriz Progressiva de Raven, na qual é mensurada a capacidade de compreender símbolos e fazer conexões; uma discrepância que tende a ser menor nas áreas de linguagem e aritmética.

O pai do efeito Flynn faleceu enquanto dormia, no dia 11 de dezembro de 2020, aos 86 anos; uma longa vida de defesa ferrenha da ideia de que o avanço na inteligência observado através das gerações pode ser explicado pela diferença de estímulos recebidos pela população.

O que ele teria dito das manchetes afirmando categoricamente que a Geração Z (os chamados “nativos digitais”, nascidos após o surgimento da internet, em 1995) é a primeira a ter um QI menor do que o de seus pais?.

A fábrica de cretinos digitais

Em outubro do ano passado, o neurocientista Michel Desmurget, que trabalha para o Instituto Nacional Francês de Saúde e Pesquisa Médica e carrega em seu currículo títulos do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e da Universidade da Califórnia, emplacou no topo da lista de livros mais vendidos na França sua obra “La fabrique du crétin digital” (“A fábrica de cretinos digitais”, ainda sem tradução para o português).

Em entrevista à BBC, Demurget afirmou em primeira mão que o efeito Flynn começou a ser revertido em vários países cujos fatores socioeconômicos se mantiveram estáveis por décadas (sabe-se que o QI pode ser afetado por fatores como alimentação, genética, saúde, exposição a poluição e outros agentes físicos). Em nações como a Noruega, Dinamarca, Finlândia, Holanda e França, os filhos “nativos digitais” começam a ter QI inferior aos pais, segundo o pesquisador. Ainda que seja impossível determinar o papel específico de cada fator, Demurget afirma categoricamente que as telas possuem um efeito significativo sobre a inteligência.

“Os principais alicerces da nossa inteligência são afetados: linguagem, concentração, memória, cultura (definida como um corpo de conhecimento que nos ajuda a organizar e compreender o mundo). Em última análise, esses impactos levam a uma queda significativa no desempenho acadêmico”, explicou o cientista, que analisou dados de nativos digitais ao longo de cinco anos.

Demurget avalia que as causas da redução não são difíceis de identificar. “Diminuição da qualidade e quantidade das interações intrafamiliares, essenciais para o desenvolvimento da linguagem e do emocional; diminuição do tempo dedicado a outras atividades mais enriquecedoras (lição de casa, música, arte, leitura, etc.); perturbação do sono, que é quantitativamente reduzido e qualitativamente degradado; superestimulação da atenção, levando a distúrbios de concentração, aprendizagem e impulsividade; subestimulação intelectual, que impede o cérebro de desenvolver todo o seu potencial; e o sedentarismo excessivo que, além do desenvolvimento corporal, influencia a maturação cerebral”.

A tese do neurologista francês correu o mundo e provocou reações diversas. Há quem avalie, por exemplo, que o QI pode não ser a maneira mais precisa de mensurar a inteligência dos nativos digitais — que não necessariamente seriam mais limitados, mas mais distraídos do que a geração anterior. O neuroendocrinologista Robert Lustig, da Universidade da Califórnia, especialista em adicção e tecnologia, corrobora a tese — e confere mais peso às condições externas.

“Há pesquisas recentes que mostram uma clara relação entre a quantidade de flúor presente na água consumida por gestantes e os resultados dos testes de QI de seus filhos. Por outro lado, conheço nativos digitais que têm severos problemas de atenção e que, portanto, teriam dificuldades para completar o teste, mas que, quando medicados, são absolutamente brilhantes. Não ter concentração para responder as questões não necessariamente significa que eles não sejam capazes de formular a resposta”, explica o médico, em entrevista à Gazeta do Povo.

Complexidade e tédio

Para o professor de marketing e psicologia da New York University, Adam Alter, a “chave” do problema está na atenção.

“Acredito que a tecnologia cause uma série de efeitos profundos em nossa vida social, nosso bem-estar e em nossa saúde física e psicológica, mas é uma grande alegação sugerir que ela também está nos tornando menos inteligentes. Mas é verdade que, até recentemente, as crianças aprendiam a ficar entediadas — a ficar em silêncio em elevadores, a esperar em salas de espera e a usar a mente em vez de usar o telefone sempre que tinham alguns minutos de inatividade. Agora nos voltamos para nossos telefones sempre que temos alguns segundos de inatividade”, explica o especialista.

“Uma consequência dessa mudança é que perdemos a capacidade de apenas existir com nossos pensamentos — de desenvolver ideias novas e criativas e pensar ociosamente sobre tudo o que acontece para ocupar nossa atenção. Os telefones atraem o entretenimento para nós — eles exigem muito pouco de nós e, como resultado, esperamos esse nível de envolvimento em cada experiência. Acho que isso nos tornou — e a nossos filhos — menos resilientes, menos pacientes e menos dispostos a lidar com a complexidade e o tédio”.

Mesmo diante das considerações, Demurget é impassível em seu argumento: “Costumo ouvir que os nativos digitais sabem ‘de maneira diferente’. A ideia é que embora apresentem déficits linguísticos, de atenção e de conhecimento, são muito bons em ‘outras coisa’. A questão está na definição dessas "outras coisas".

"Estudos também indicam que eles não são muito eficientes no processamento e entendimento da vasta quantidade de informações disponíveis na internet. Então, o que resta? Eles são obviamente bons para usar aplicativos digitais básicos, comprar produtos online, baixar músicas e filmes, etc”.

O legado das telas

Ainda que a tese de Demurget sobre QI ainda seja alvo de questionamentos, os maiores especialistas em saúde mental, cognição e tecnologia concordam que as telas e smartphones deixarão, sim, um legado para a geração Z.

“O cérebro multitarefa é um mito e a tendência é que ninguém consiga um emprego se não for multitarefa. O problema é que apenas 2,5% da população consegue fazer isso de verdade. Toda vez que você troca de tarefa — seja para checar as redes sociais, responder um e-mail ou olhar as notícias —, recebe uma ‘injeção’ de cortisol, o hormônio do estresse. E, em média, as pessoas levam 23 minutos para se concentrar de verdade em outra coisa. Na prática, só estamos perdendo tempo”, explica Lustig.

Os efeitos do cortisol, o hormônio do estresse, e da dopamina, o hormônio da recompensa, no cérebro são parte da especialidade de Robert Lustig.

“Há cinco doenças crônicas que estão crescendo entre as crianças: dependência, depressão, ansiedade, falta de atenção e ódio. Cada uma está localizada em uma área diferente do cérebro. E a região que controla tudo isso é o córtex pré-frontal, a área responsável pela razão, pela previsão do futuro e cálculo das consequências. Quando o córtex não funciona bem, você literalmente se torna suas emoções. E uma das funções do hormônio do estresse é colocar o córtex para dormir, de modo que é muito difícil racionalizar nessas situações”, explica o endocrinologista.

Quanto maior o estresse, maior a necessidade de dopamina para a obtenção do bem-estar; processo que, nessas condições, escapa ao controle do córtex. Some-se a isto à redução da sensação de saciedade, também aplacada pelo cortisol. O resultado é um ciclo vicioso de consumo desenfreado de tecnologia — tal como acontece com o açúcar e outras substâncias viciantes. “É tudo sobre o botão de 'curtir'”, avalia Lustig.

Tudo isso está explícito no documentário "O Dilema das Redes", da Netflix, para o qual endocrinologista conta que chegou a ser entrevistado — ele aparece nos vídeos que estão disponíveis na própria plataforma, como cenas "extras" do documentário.

Nada de telas para crianças

Outro ferrenho defensor da ideia de que as redes sociais estão causando prejuízos terríveis à geração Z é o psicólogo americano Jonathan Haidt. Entrevistado pelo serviço de streaming para o referido documentário, Haidt ratifica a relação entre uso massivo de celulares e o aumento substancial dos índices de ansiedade e depressão.

Embora não fale explicitamente de QI, em seu famoso livro "The Coddling of American Mind" ("Mimando a Mente Americana", sem tradução para o português), escrito em parceria com o psicólogo Greg Lukianoff, Haidt relaciona os altos índices de ansiedade e — conforme explicado pelo professor Lustig — a chancela incondicional às emoções, impulsionada pelo vício em recompensa imediata, medo e necessidade de proteção à cultura do cancelamento emergente nos campi universitários e à radicalização política à esquerda e à direita.

Quer o QI, especificamente, faça ou não parte da equação, os outros fatores são suficientemente relevantes: uma geração com severa dificuldade de pensar com profundidade — ainda que seja extremamente criativa e capaz de se engajar em causas nobres — e viciada em ouvir apenas aos próprios sentimentos, dificilmente será capaz de aplacar os próprios ânimos "canceladores".

Contudo, se os esperançosos defensores da geração Z estiverem corretos, ainda há tempo de ajustar o leme. O próprio Michel Desmurget é signatário desta tese, uma vez que os efeitos desta epidemia de transtornos mentais razoavelmente evitáveis estão sendo sentidos por pais e professores. "Uma campanha de informação justa sobre o impacto das telas no desenvolvimento com diretrizes claras seria um bom começo: nada de telas para crianças de até seis anos de idade e não mais do que 30-60 minutos por dia".

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