Aos 82 anos, o médico e cientista novaiorquino Anthony Stephen Fauci continua atraindo devassas de sua vida e carreira, especialmente pela atuação controversa no combate à pandemia de Covid-19 nos governos Trump e Biden. À frente do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID) dos EUA por 38 anos, ele também foi a face pública do enfrentamento à AIDS e surtos de Ebola e gripe asiática. Agora, fora dos holofotes desde o fim do ano passado, quando se aposentou, várias de suas ações passam por um pente fino, fazendo com que seu legado, antes quase uma unanimidade entre setores progressistas e formadores de opinião, passasse a ser questionado com severidade.
Talvez o auge de sua popularidade tenha se dado em outubro de 2021, quando a Disney+ lançou um documentário sobre a carreira de Fauci que beirava a hagiografia. Mas algo ali já mostrava o divórcio entre a opinião sobre Fauci entre a grande mídia e a população comum. O filme de John Hoffman e Janet Tobias, produzido pela National Geographic, ganhou aprovação de 86% dos críticos profissionais no site de resenhas cinematográficas Rotten Tomatoes, mas apenas 2% do público. Fauci foi bastante “sensível” quanto a manter a filmagem em segredo para não chamar a atenção do então presidente Donald Trump, contou antes do lançamento Carolyn Berstein, executiva da National Geographic, ao site Deadline. O jornal New York Times chamou o documentário de “retrato simpático” do cientista.
No mesmo mês, o site The Hill encomendou uma pesquisa que perguntou aos americanos “Você acha que Anthony Fauci deveria renunciar?” Entre os eleitores democratas, 68% responderam “não”, enquanto 75% dos republicanos responderam “sim”. O público em geral e os eleitores sem partido se dividiram aproximadamente em metade para cada lado. Era uma evidência de que a popularidade de Fauci seguia a polarização entre direita e esquerda.
A pesquisa serve como ponto central na tendência observada nas pesquisas de opinião feitas pela Fundação da Família Kaiser (KFF), que perguntou, em dezembro de 2020 e abril de 2022, se os americanos tinham muita ou substancial confiança em Fauci para dar informações precisas a respeito das vacinas contra Covid-19. No público amplo, a confiança caiu de 68% em 2020 para 53% em 2022. Os democratas mantiveram um altíssimo nível de confiança no diretor do NIAID, mas houve uma leve queda de 90% para 86%. Mais dramática foi a perda da confiança dos republicanos: 47% para 25%.
O que Fauci fez para perder confiança?
O experiente burocrata pareceu mudar de posição por razões obscuras, ou até políticas, em diversos temas sensíveis da pandemia: das máscaras à origem do vírus e à qualidade das vacinas de mRNA.
Em 11 de maio de 2021, em uma audiência no Senado e sob intenso escrutínio do senador republicano libertário Rand Paul, Fauci afirmou que “não financiamos pesquisa de ganho de função para ser conduzida no Instituto de Virologia de Wuhan”. Proponentes da hipótese da origem da Covid em vazamento laboratorial suspeitam, por causa de sinais moleculares do vírus, que ele foi submetido a pesquisas que alteram seu material genético para aumentar seu poder infeccioso em tecidos humanos, o que é chamado de “ganho de função”. No mesmo mês em que o documentário da Disney foi posto no ar, o diretor interino dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, dos quais o NIAID faz parte), Lawrence Tabak, admitiu que o governo americano financiou pesquisa do tipo em Wuhan, tendo como intermediária de verbas a ONG EcoHealth Alliance.
O site The Intercept, na época, processou os NIH para obter documentos que descreviam pesquisas em que vírus híbridos eram criados para ter sua infecciosidade testada em ratos modificados para ter pulmões mais similares aos humanos — o que deve ter servido de incentivo para Tabak compartilhar a informação com o Congresso. Uma moratória sobre o financiamento de pesquisa com ganho de função havia sido estabelecida no governo Obama. Um vídeo de Fauci, de janeiro de 2018, mostra-o discutindo com certo otimismo o fim da moratória no mês anterior.
No mês passado, Fauci, em entrevista à TV respondendo a um congressista que disse que ele “trabalhou duro” a favor apenas da hipótese da origem natural do vírus e contra a possível origem laboratorial, comentou que “quase tenho que rir disso, é totalmente bizarro, eu não estava tendendo para uma posição ou outra, eu sempre mantive a mente aberta”. No começo da pandemia, em 9 de fevereiro de 2020, contudo, ele disse no podcast do conservador Newt Gingrich que “sabemos que essas coisas vêm de um reservatório animal, eu ouvi essas teorias da conspiração [de origem laboratorial], Newt, e, como todas as teorias da conspiração, são só teorias da conspiração”.
E-mails obtidos por lei de acesso à informação revelam que, oito dias antes da entrevista no podcast, Fauci sugeriu procurar o FBI em resposta ao virologista Kristian Andersen, do Instituto Scripps, que declarou que “algumas das características [do vírus] (potencialmente) parecem produto de engenharia”. Quatro dias depois, contudo, ambos os cientistas deram uma volta completa em sua posição e passaram a ridicularizar a hipótese da origem laboratorial.
Fauci também “solicitou”, por admissão de Andersen em um e-mail para a revista científica Nature Medicine, que fosse escrito um artigo científico que refutasse o vazamento laboratorial. O artigo foi publicado em março de 2020. Am abril, Fauci apareceu em uma coletiva de imprensa na Casa Branca junto ao presidente Donald Trump. Quando repórteres perguntaram a respeito da plausibilidade do vazamento, ele mencionou o artigo, mas mentiu dizendo que não conhecia os autores.
Quanto às medidas de proteção, o cientista disse em 2020 que “não há motivo para andar com máscara”. Em fevereiro de 2021, ele disse que ele próprio estava usando duas máscaras. Em maio, Fauci disse que “as chances de eu me infectar num ambiente fechado são extremamente baixas, e é por isso que em ambientes fechados, agora, estou confortável em não usar máscara, pois tenho a vacinação completa”. Em agosto de 2022, mudou a recomendação mais uma vez: “em espaço fechado, use máscara” — na ocasião, já estava claro que a vacinação não impedia contágio e transmissão. A eficácia mais alta em evitar transmissão é de 40%, mas em conjunção com a imunidade adquirida com infecção prévia, tipo de proteção que o cientista ignorou ou diminuiu.
Anthony Fauci também pareceu se contradizer quanto ao lockdown e confinamento. Em julho de 2022, ele disse à revista Newsweek que “em primeiro lugar, não recomendei trancar nada”. Mas a Foundation for Economic Education documenta ao menos seis vezes em que ele recomendou o fechamento de escolas. Em abril de 2020, o New York Times noticiou que o prefeito de Nova York “falou com o dr. Fauci e ele concordou com sua decisão de manter as escolas fechadas”. No mesmo mês, o médico criticou o governador da Flórida Ron DeSantis por manter as escolas abertas.
Uma das frases mais famosas de Fauci na pandemia foi dita em 2021, contra seus críticos: eles estariam “na verdade criticando a ciência, porque eu represento a ciência”.
Até tu, New York Times?
De orientação e leitorado mais progressista, o NYT, um dos maiores jornais do mundo, parece ter aberto mais o seu espaço para colunistas que questionam o legado de Fauci. Em agosto passado, o colunista de ciência e tecnologia Ari Schulman escreveu que “por mais que haja verdade na história de que o dr. Fauci foi vítima da nossa era polarizada e do ambiente midiático disfuncional, ela é também parcial e simplista”.
Schulman citou as incongruências acima, acrescentando que o cientista também disse que estávamos “fora da fase da pandemia” em um dia e que “ainda estamos passando por uma pandemia” no dia seguinte. O colunista não acredita que essas contradições resultam de mudanças no estado das evidências, e que o mantra “siga a ciência” (no Brasil, “acredite na ciência” foi mais comum) tornou-se “uma falha em liderar, um modo de tirar o ônus da responsabilidade de presidentes, do Congresso, de autoridades de saúde e conselhos escolares e jogar no público”.
O establishment de saúde pública vai ter que engolir um remédio amargo, argumenta Schulman: “rotular como um fracasso o legado da Covid de Fauci e a abordagem que ele representou”. O colunista pensa que a visão de ciência utilizada pelo aposentado precisa se aposentar junto com ele. “Devemos ver a ciência como algo que as pessoas fazem: como um modo de resolver problemas, um projeto (...) cujas falhas terríveis ele deve assumir junto com seus triunfos”.
No mês passado, foi a vez da colunista Megan Stack de criticar o legado de Fauci nas páginas do NYT. Ela usa o próprio Newt Gingrich como exemplo: ele foi de chamar o cientista de “um tesouro nacional” naquele podcast a condená-lo como “uma das pessoas mais destrutivas e perigosas da história americana” mais tarde. Stack não concorda com a hipérbole, mas propõe que Fauci deveria ter “contado muito mais” para Gingrich. Que vazamentos laboratoriais de vírus não são incomuns, por exemplo.
Stack teve a oportunidade de entrevistar Fauci a respeito das contradições, mas não saiu muito convencida. Ele “me disse que não tem certeza se dedicou tempo a ler o artigo”, menciona a autora quanto ao artigo da Nature Medicine. A incerteza é estranha, dado que agora temos um e-mail de 8 de março de 2020 em que ele diz a Kristian Andersen “Bom trabalho no artigo”.
Incerteza parece ter virado um problema constante para o recém-aposentado nos últimos tempos. Em depoimento no mês passado em uma comissão da Câmara dos Deputados dos EUA a respeito do uso do governo federal como arma política, John Sauer, Procurador-Geral Adjunto Especial da Luisiana que colheu depoimento de Fauci, relatou que “ele disse ‘não me recordo’ ou variações disso 174 vezes, e variações de ‘não me lembro’ ao menos 212 vezes. Ele não conseguia se lembrar nem de coisas que disse à imprensa nacional. Já colhi dezenas de depoimentos, nunca vi nada parecido, nem entre outros depoentes do governo federal”.
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