No emaranhado de tendências e facções que formam o tecido da esquerda brasileira, uma escola de pensamento se destaca por sua grande influência e adeptos famosos: o trotskismo.
E não estamos falando de um movimento do passado. Estima-se que hoje, no país, há mais de 30 grupos “oficiais” organizados nesse sentido. Nesta lista constam desde correntes participantes de partidos políticos a coletivos independentes, passando por legendas registradas no Tribunal Superior Eleitoral cujas propostas são inteiramente baseadas nas ideias difundidas por Leon Trotsky (1879-1940).
Uma das tendências internas mais antigas do PT, por exemplo, é formada por militantes trotskistas – O Trabalho, responsável pelo jornal de mesmo nome, editado desde o final dos anos 1970. O PCO e o PSTU (lembrados pelo grande público a cada quatro anos, quando lançam candidaturas radicais à Presidência da República) também seguem essa linha do marxismo. Sem falar no PSOL, fundado, entre outros grupos, pelo Movimento Esquerda Socialista (MSE, organização ligada ao trotskismo e surgida de uma cisão com o Partido dos Trabalhadores).
Aliás, os psolistas cultores de Trotsky protagonizaram um vexame no começo deste mês, quando partiram para a briga com colegas do próprio partido durante a convenção que elegeu a historiadora Paula Coradi presidente da legenda até 2026. Coradi faz parte da ala do deputado federal Guilherme Boulos (SP), que defende o apoio irrestrito ao governo do presidente Lula. Já o MSE se coloca “à esquerda da esquerda”, e tem como membros mais proeminentes nomes como Luciana Genro, Sâmia Bonfim e Fernanda Melchionna.
Enfim: o trotskismo no Brasil é composto por tantas siglas, células e subdivisões que nem a própria militância se entende direito. Seu único norte é o próprio Trotsky – defensor da ideia de que a revolução comunista deveria ser permanente e internacionalizada, rival de Stalin, crítico da burocracia, organizador do brutal Exército Vermelho. Mas por que seu ideário atraiu tanta gente por aqui?
Em linhas gerais, os pesquisadores apontam dois motivos principais, começando pelo pioneirismo. Afinal, os comunistas brasileiros estão entre os primeiros situados fora da Europa a se interessar pelo trotskismo.
Ainda na década de 1930, figuras como Mário Pedrosa, João Costa Pimenta (avô de Rui Costa Pimenta, líder do PCO), Lívio Xavier, Hilcar Leite, Fúlvio Abramo (irmão da atriz Lélia Abramo e do jornalista Cláudio Abramo) e até a escritora Rachel de Queiroz já participavam de grupos e publicações dedicados à corrente.
“Eu era comunista, depois briguei com eles. Descobri os trotskistas, porque os comunistas eram muito burros, muito certos, muito fechadinhos, muito apertadinhos. E os trotskistas tinham uma visão mais ampla”, disse Queiroz em 2000, em uma entrevista para um projeto memorialista da Câmara dos Deputados (mais tarde, na década de 1960, ela apoiaria o regime militar – inclusive era parente do ex-presidente Humberto Castello Branco).
Um texto veiculado no jornal Luta de Classes, editado entre 1930 e 1939 por uma facção trotskista chamada Grupo Comunista Lenin, também ilustra bem as diferenças entre o grupo e os stalinistas. “Jamais combateremos o Partido Comunista Brasileiro. Combateremos, sim, a direção do partido, única responsável pela orientação política errada, que vai aos poucos liquidando o partido e separando-o da pequena parte do proletariado que ainda o acompanha”, diz um trecho do artigo.
O segundo fator de encantamento é a ligação de Leon Trotsky com as artes e o pensamento de vanguarda. Ao mesmo tempo em que ordenava assassinatos em massa, ele era um intelectual que incentivava a cultura e registrava seus pensamentos em textos elogiados até pelos detratores. Essa suposta sofisticação seduzia os mais jovens – e preocupava os comunistas pragmáticos.
Em seu livro ‘Trotsky – Uma Biografia’ (publicado no Brasil em 2017, pela editora Record), o pesquisador britânico Robert Service, professor de História Russa da Universidade de Oxford, comenta que mesmo o visual do revolucionário era um elemento importante na construção de sua lenda pessoal (para o bem e para o mal). “Até a elegância refinada de suas roupas era incômoda [para os stalinistas]”, afirma o biógrafo.
Estudantes da USP criaram um “trotskismo pop” na década de 1970
Corta para o final dos anos 1970. Frustrada com o fracasso da luta armada, a esquerda brasileira buscava novos caminhos para enfrentar, dessa vez por vias pacíficas, o regime militar. Era o auge do desbunde tardio tupiniquim, e uma turma de alunos da Universidade de São Paulo ficou conhecida por abraçar o trotskismo e transformá-lo, sem querer, em um movimento pop: os chamados “libelus”, membros da tendência Liberdade e Luta.
Não que o pensamento de Trotsky estivesse em decadência dentro da esquerda naquela altura do campeonato. A semente plantada por Mário Pedrosa e companhia durante o Estado Novo germinou e se alastrou na forma de inúmeras organizações, de curta e longa duração. Muitas delas trocaram de nome, adaptaram suas propostas aos períodos históricos posteriores e estão por aí até os dias de hoje.
Mas nenhuma delas teve tanta influência na política e na imprensa brasileira atuais quanto a Liberdade e Luta. Braço estudantil da Organização Internacional Socialista – movimento clandestino trotskista que criticava a estratégia guerrilheira e propunha um trabalho de base junto às “massas” –, o grupo surgiu em 1976, ano da primeira eleição para o Diretório Central dos Estudantes da USP.
Entre seus membros estavam futuros professores, políticos, artistas e, principalmente, jornalistas: Demétrio Magnoli, Reinaldo Azevedo, Paulo Moreira Leite, José Arbex Jr., Laura Capriglione, Cleusa Turra, Markus Sokol, Cadão Volpato, Eugênio Bucci, Renata Rangel, Alex Antunes. Todos eles dão depoimentos no documentário ‘Libelu: Abaixo a Ditadura’ (2020), dirigido por Diógenes Muniz, distribuído pela Globo Filmes e vencedor do festival É Tudo Verdade.
“Eles são jovens, elegantes, iconoclastas, bem-nutridos e talvez um tanto mal-humorados”, definiu o jornalista Mino Carta, em seu programa na extinta TV Tupi, em 1979 (esse trecho abre o longa de Muniz). Na ocasião, ele entrevistou dois “libelus” que depois seguiriam carreira na imprensa nacional – os irmãos Ricardo, ex-presidente da Empresa Brasileira de Comunicação (nomeado por Dilma Roussef), e Josimar Melo, crítico gastronômico da Folha de S. Paulo.
E como surgiu o termo “libelu”, que acabou pegando e entrando para a cultura? Como explica a jornalista Laura Capriglione, ele foi criado para ser uma espécie de xingamento: “Era um apelido jocoso que os comunistas que se consideravam sérios e responsáveis deram para a gente, os esquerdistas loucos e, para eles, infantiloides”.
Libelu foi o Tropicalismo da juventude comunista brasileira
É possível dizer a Liberdade e Luta foi a Tropicália da política estudantil, no sentido do hedonismo e da liberdade artística – enquanto a esquerda tradicional defendia comportamentos mais rígidos e o nacionalismo cultural.
“Ouvíamos tanto música brasileira quanto estrangeira. Éramos os ‘internacionalistas’, diz o Demétrio Magnoli, mais conhecido como comentarista da GloboNews (e único entrevistado do documentário que hoje se posiciona mais à direita dos demais). “Nós ridicularizávamos muito qualquer sentimento de nacionalidade exacerbado”, afirma o economista Eduardo Gianetti da Fonseca.
Reinaldo Azevedo, jornalista que cunhou o termo “petralhas” antes de se converter ao lulismo, brinca com a fama de rebelde da turma: “Diziam que os libelus se drogavam e organizavam surubas. Mas para suruba ninguém nunca me chamou”.
“Chegou um momento em que os homens se cumprimentavam dando selinho na boca um dos outros”, diz o músico e jornalista Alex Antunes. “Dávamos as melhores festas do movimento estudantil”, afirma José Arbex Jr., ex-editor da revista de esquerda Caros Amigos.
O filme ainda mostra um antigo membro da tendência que militava em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo: Antônio Palocci. Cumprindo prisão domiciliar por corrupção, o ex-ministro dos governos Lula e Dilma aceitou receber a produção – e sua entrevista acabou girando mais em torno dos desvios de sua trajetória política.
“Me arrependo de ter feito isso”, diz, referindo-se à prática de caixa-dois em campanhas eleitorais. “Minha fraqueza foi não ter insistido em ser minoria, mas resolvi dançar conforme a música. Se não fizesse isso, poderia nunca ter sido eleito. Mas hoje talvez fosse uma pessoa melhor”, afirma.
Em 1978, após vencer a eleição para o DCE da USP e participar de passeatas em São Paulo, a Liberdade e Luta explodiu nacionalmente. Foi assunto de reportagens em jornais, revistas e programas tevê, além de ser citada em músicas, filmes e novelas.
Uma charge histórica da revista IstoÉ, publicada em 1979 e intitulada “Aprenda a ser um libelu”, trazia o desenho de um jovem com todas as características dos militantes – “cabelo grande”, “camisa Fiorucci”, “jeans levemente puídos”, “paletó de veludo preto, furado na manga”.
Na mesma época, o poeta curitibano Paulo Leminski dedicou um poema ao grupo. “Me enterrem com os trotskistas / na cova comum dos idealistas / onde jazem aqueles / que o poder não corrompeu”, dizem os primeiros versos (que, obviamente, não valem para Palocci).
Trotskistas compõem quadros importantes dentro do PT
A abertura política acabou dispersando os libelus, mas alguns de seus quadros foram fundamentais na fundação do Partido dos Trabalhadores (como Markus Sokol, membro da Comissão Executiva Nacional e ainda hoje líder da corrente O Trabalho dentro da legenda).
O PT ainda conta, em suas fileiras, com vários trotskistas que ocupam ou ocuparam cargos públicos e internos – boa tarde deles ligada à tendência Democracia Socialista, uma das maiores do partido. Juntos com militantes que em algum momento já seguiram a cartilha do revolucionário marxista, eles formam uma lista enorme.
Miguel Rossetto, Clara Ant, Luiz Gushiken, Carlos Minc, Luis Favre, Sérgio Rosa, Marcelo Sereno são apenas alguns dos nomes que fazem parte dessa relação. Mesmo a ex-presidente Dilma Roussef, atualmente à frente do Novo Banco de Desenvolvimento (o “Banco dos Brics”), teve sua fase trotskista quando integrou o grupo armado Comando de Libertação Nacional (Colina).
Ou seja: eles ainda estão por todos os todos lados. Então é melhor tomar cuidado, pois pode ter um discípulo de Trotsky agora mesmo olhando para você.
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