Taxas de natalidade em queda, maior expectativa de vida, com consequente envelhecimento populacional, contato humano migrando do real para o virtual, recorde de pessoas que optam por não se casar, vínculos familiares cada vez mais frágeis.
O atual retrato demográfico do planeta traz aspectos determinantes para o aprofundamento de um problema antigo, que vem ganhando contornos de epidemia: a solidão entre os idosos. Estudos internacionais estimam que entre um terço e um quarto das pessoas nessa faixa etária experimentam o isolamento social ou a solidão (e uma parcela menor relata sofrer ambos), o que tem impactos na mortalidade de forma equivalente a fatores de risco como tabagismo, obesidade e inatividade física.
De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, enquanto o isolamento social (caracterizado pela falta de conexões sociais) é associado a um aumento de 50% no risco de demência e de outras condições médicas graves entre idosos, a solidão (sensação de estar sozinho, independentemente do nível de contato social) tem ligação com taxas mais altas de depressão, ansiedade e suicídio. Em pacientes com comorbidades, como insuficiência cardíaca, por exemplo, a solidão eleva em quatro vezes o risco de morte, em 68% o de internação e em 57% o de necessidade de atendimentos de emergência.
“Há boas razões para se preocupar com a conexão social em nosso mundo atual. A solidão é uma epidemia de saúde crescente. Vivemos na era mais tecnologicamente conectada da história da civilização, mas as taxas de solidão dobraram desde a década de 1980”, afirmava ainda em 2017 o médico Vivek Murthy, nomeado cirurgião-geral dos EUA (surgeon general, cargo que equivale ao nosso ministro da saúde) nos governos Obama e Biden.
“Durante meus anos cuidando de pacientes, a patologia mais comum que vi não foi doença cardíaca ou diabetes; era solidão. O homem idoso que vinha ao nosso hospital a cada poucas semanas em busca de alívio para a dor crônica também procurava uma conexão humana: ele estava sozinho”, escreveu o médico, que relata ele próprio ter passado por essa sensação de desconexão com o mundo após negligenciar aspectos da vida pessoal e social por causa do trabalho.
O que gera a solidão
Embora seja um problema de saúde anterior à pandemia, as imposições de isolamento social durante a emergência da Covid-19 tiveram impacto na solidão de idosos, gerando maior ansiedade de morte, sobretudo entre alguns grupos específicos. “Idosos que não tinham conhecimento suficiente sobre a pandemia, não tinham hobby em casa, não se comunicavam com parentes e tinham alta preocupação com a pandemia apresentaram maior ansiedade de morte”, afirma um estudo publicado por pesquisadores da Turquia, em 2021.
Uma revisão bibliográfica do mesmo ano, assinada pela enfermeira norte-americana Joan Somes, aponta que o fator de risco mais associado ao isolamento e à solidão é a morte de um cônjuge ou de uma pessoa próxima, especialmente quando exercia algum tipo de apoio prático ou emocional. “Outros fatores de risco incluem a perda do envolvimento familiar quando os filhos crescem, saem de casa e se ocupam com suas próprias vidas, ou uma perda da rede de amigos da vizinhança que ocorre durante o processo de mudança para uma casa menor, condomínio ou lar de idosos. A aposentadoria também pode levar à perda da interação diária com colegas de trabalho e amigos, levando à solidão”, completa.
Somes recorda que “a perda da capacidade de fazer networking pode levar ao aumento do estresse e à liberação de cortisol, o que leva a uma resposta inflamatória no corpo e às consequências associadas”.
Além dos idosos que moram sozinhos e têm baixa interação com filhos e amigos, a solidão também é frequentemente mais alta entre os que não se envolvem com trabalhos voluntários, atividades religiosas ou comunitárias. A prevalência também é maior para indivíduos mais próximos da morte (indo de 18% quatro anos antes do óbito para 27% entre os três meses anteriores e o dia da morte).
Brasil tem cada vez mais idosos sozinhos
Dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a população do país está envelhecendo e morando mais sozinha. Em 2022, os brasileiros com mais de 60 anos eram 15,1%, enquanto dez anos antes o percentual era de 11,3%.
Dos 74,1 milhões de domicílios estimados no último censo, 15,9% eram unipessoais, o que representa um crescimento em relação às coletas anteriores do dado pelo IBGE: 14% em 2017 e 12,2% em 2012. Entre a população idosa, 57,5% das mulheres moravam sozinhas em 2022, enquanto 29,2% dos homens com mais de 60 anos viviam sem companhia em casa. Nas faixas etárias inferiores, os homens superam as mulheres em domicílios unipessoais.
Somos seres para a relação
A psicóloga Roseana Barone Marx reforça que o sentimento de solidão pode ter muitas razões, como a incompatibilidade de pensamentos e posicionamentos (“ninguém pensa como eu”), o que explica que uma pessoa se sinta sozinha, mesmo não estando isolada socialmente. No caso dos idosos, ela acrescenta que a experiência pode ter ligação com a necessidade de uma observação mais profunda do sentido da existência e da missão pessoal de cada um.
“No livro ‘Aceitação de si mesmo - as idades da vida’, Romano Guardini fala que há duas formas de envelhecer. Lutar pelo que foi e não volta mais é equivalente a envelhecer de maneira senil: as pessoas vão se afastando de mim, e eu vou me afastando de Deus, do transcendente. Quando entendo a vida em caráter de missão, envelheço na senectude: é como se subisse uma escada bem alta, chegasse à ponta do trampolim, balançasse e pulasse para o braço de Deus”, diz.
Nesse sentido, Roseana reforça que “o que foi serve para iluminar, trazer prudência, ajudar a fazer outras escolhas hoje”. Vencer a solidão, portanto, passa por viver no presente, “sair de si mesmo em busca do outro, ter uma interdependência do outro”. “A vida não tem macro respostas, só podemos viver o dia: o que a vida pede de mim hoje? Posso, por exemplo, oferecer essa dor que sinto por um amigo que está triste”, exemplifica.
Psicóloga especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), Ana Lucia Fiebrantz Pinto completa que a interação intergeracional tem beneficiado muitos idosos solitários, trazendo novos propósitos de vida por meio de atividades como cuidar dos netos.
“Com a saída da mulher para o mercado de trabalho, diminuiu o apoio social para os idosos, e muitos deles passaram a ser essa estrutura de apoio familiar. Isso acaba contribuindo contra o impacto de estar só”, explica.
Outros caminhos cada vez mais buscados contra a solidão consistem em ter uma agenda cheia, participar de atividades culturais em grupo, de voluntariados (sobretudo intergeracionais, como contação de histórias) e até mesmo retornar ao mercado de trabalho.
“A maior gratificação que os idosos recebem é fazer algo pelo próximo, isso gera um sentimento de autoestima. Nossa estrutura corporal é feita para buscar relações”, recorda Ana Lucia.
Se por um lado os novos arranjos familiares, com famílias menores e menos crianças, exacerbam o problema da solidão entre idosos, mesmo famílias numerosas correm esse risco, com a ascensão das tecnologias. “No consultório, percebemos que as pessoas estão preocupadas com se sentir excluídas, e esse sentimento tem crescido com a digitalização da sociedade. Mesmo em famílias grandes, em um almoço, os idosos podem ficar à margem das telinhas dos celulares”, alerta a especialista.
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