Desconfiança, aproximação e rompimento: o roteiro da relação conturbada entre o PT e os evangélicos

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Com a popularidade em queda, o governo Lula enfim percebeu que precisa do apoio dos evangélicos. Mas talvez seja tarde demais.

Uma nova pesquisa do Datafolha mostra que 43% dos adeptos desse segmento religioso consideram a gestão “ruim ou péssima”. Já o último levantamento Genial/Quest traz dados ainda mais preocupantes para o PT – 48% dos entrevistados avaliam o trabalho do presidente de forma negativa, segundo os institutos.

O Partido dos Trabalhadores agora corre para tentar reverter esse quadro negativo.

Fez acordos no Congresso para ampliar a imunidade tributária a igrejas, designou um representante cristão (Jorge Messias, o “Bessias”, advogado-geral da União) como interlocutor com a bancada evangélica e até se prepara para lançar um núcleo de estudos “das diversas fés” (por meio da Fundação Perseu Abramo, seu braço programático).

Os petistas de proa, no entanto, parecem ainda não entender a complexidade do público religioso. Vide a entrevista concedida recentemente pela presidente da legenda, a deputada federal Gleisi Hoffman (PR), ao programa ‘Dando a Real com Demori’, da emissora estatal TV Brasil.

Questionada pelo jornalista Leandro Demori acerca da rejeição dos evangélicos ao PT, ela primeiro disse que o problema pode ser resolvido apenas com uma boa comunicação. “Temos de mostrar para o povo evangélico os projetos e programas que nós fazemos.”

Logo em seguida, se entregou numa fala altamente simbólica – e considerada problemática pelos especialistas no tema. “Não dá para tratar os evangélicos como uma categoria religiosa. Tem de tratar como uma categoria social.”

Para o historiador e analista político Victor Missiato, essa parte específica do depoimento expõe um “despreparo para estabelecer as pontes necessárias com o segmento evangélico”.

“Ao tratar como grupo social, e não religioso, ela usa a metodologia dos movimentos políticos dos quais o PT está próximo para se relacionar com um estrato importante da sociedade brasileira que não coaduna com esse tipo de visão. É um erro de método mesmo, e isso vai afastando cada vez mais o PT das bases evangélicas”, afirma o professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, em São Paulo.

Já o pastor e teólogo Guilherme de Carvalho, colunista da Gazeta do Povo, acredita que a fala de Gleisi revela as verdadeiras intenções do Partido dos Trabalhadores: usar o conceito de Estado laico para evitar os temas caros aos religiosos – tornando-se, nas palavras dele, uma “seita paracristã” e de poderes hegemônicos.

Lideranças evangélicas levaram mais de dez anos para iniciar um diálogo com os petistas 

Tanto Missiato quanto Carvalho dividem a relação dos evangélicos com o PT em três momentos. O primeiro, segundo eles, compreende o período anterior à primeira eleição de Lula à presidência da República.

“Lembro que, quando eu era adolescente, no final da década 1980, o PT era visto na minha igreja como um grupo de bardeneiros. Os líderes religiosos tinham uma posição majoritária pró-ordem e contra o comunismo, então viam o partido como uma ‘coisa do mal’”, diz Guilherme Carvalho.

De acordo com Victor Missiato, o distanciamento inicial tinha outra motivação bem clara: a ligação dos petistas com os católicos, principalmente por meio dos adeptos da Teologia da Libertação. “Havia uma desconfiança muito grande por parte dos evangélicos”, afirma.

Aos poucos, lideranças evangélicas de diferentes denominações – e com posicionamentos ligeiramente mais progressistas – estabeleceram um diálogo com o Partido dos Trabalhadores.

Nesse cenário, ainda nos anos 1980, destacam-se figuras como o bispo anglicano Robson Cavalcanti (1944-2012) e o sociólogo e professor de origem britânica Paul Freston.

Mais tarde, já na década seguinte, outro nome se colocaria à frente no movimento de aproximação com a esquerda: Caio Fábio, na época um dos maiores líderes presbiterianos do país.

Para quem não está associando o nome à pessoa, Fábio foi um dos principais intermediadores do Dossiê Cayman, um documento comprovadamente falso que denunciava a existência de contas e empresas secretas de propriedade do então presidente Fernando Henrique Cardoso e outros políticos do PSDB em um paraíso fiscal do Caribe.

Condenado a quatro anos de prisão pelo envolvimento no episódio, ele passou apenas quatro dias preso e teve sua sentença anulada. Anos depois, acusou o PT de pressioná-lo para divulgar o dossiê – mesmo assim, declarou votar em Lula nas eleições de 2022.

Caso de polícia à parte, Guilherme Carvalho faz questão de apontar que a geração de Cavalcanti, Freston e Fábio (e de nomes como Valdir Steuernagel e Ed René Kivitz) tinha uma inclinação para o progressismo, porém jamais flertou com radicalismos.

Sua aproximação com a esquerda era baseada, acima de tudo, nas pautas da distribuição de renda e da inclusão econômica. “Mas todos eles sempre foram firmes nas posições típicas de um evangélico”, diz.

Quanto a Benedita da Silva, ele explica que a deputada carioca é uma representante da comunidade envagélica na esquerda, no entanto não pode ser considerada uma liderança do segmento.

Do casamento ao divórcio: esquerda e evangélicos viveram em “paz” por dez anos 

A segunda fase dessa “saga” marca uma conexão mais profunda entre as duas partes. Principalmente graças ao apoio de grupos neopentecostais à primeira eleição de Lula.

“Isso fez com que os evangélicos ascendessem muito em alguns poderes institucionais durante os três primeiros governos do PT. E, por consequência, favoreceu a divulgação de suas ideias por todo o Brasil”, afirma Missiato.

Em 2003, recém-empossado presidente, Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma alteração no Código Civil que definia as entidades religiosas como pessoas jurídicas de direito privado, desobrigando-as de se registrarem como associações.

O governo também foi generoso em suas concessões de rádios e tevês para organizações evangélicas – o sistema Record, comandado pelo bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, teve seu maior crescimento durante os dois primeiros mandatos do petista. Chegou a superar a Globo, líder de audiência, no recebimento de verbas publicitárias oficiais.

Outro bispo/político da Universal, Marcelo Crivela, chegou a ser ministro da Pesca entre 2012 e 2014, na gestão de Dilma Roussef.

E até o pastor Silas Malafaia, que nesta semana trocou farpas publicamente com Lula, fez parte do chamado Conselhão (grupo formado pelo presidente para debater os grandes temas nacionais com empresários, sindicalistas e outros representantes de classe).

Em 2013, Dilma foi reeleita ainda com a ajuda de boa parte dos evangélicos – porém sob acusações de corrupção e incompetência.

“Os escândalos de corrupção, que inclusive envolveram alguns políticos neopentecostais, tornaram muito problemática a relação do governo com a igreja, um espaço onde prevalece a ética e moral”, afirma Missiato.

Mas a relação “azedou” mesmo por causa de outro fator: a adesão do PT às políticas identitárias, incompatíveis com os valores cristãos.

O rompimento se consolidou com o surgimento, em 2018, de um candidato que, segundo o historiador, “defendeu os valores evangélicos de forma centralizada, sem a dubiedade do PT, que adota pautas progressistas e retrocede só durante as eleições para agradar ao público religioso”.

Ele está falando, é claro, de Jair Bolsonaro – que não mudou de posição após chegar à presidência. “Bolsonaro assumiu e estabeleceu essa perspectiva conservadora. Algo que no brasil ainda não havia acontecido na Nova República.”

Ainda em curso, o terceiro período da relação entre o PT e os evangélicos ganhou novos contornos desde o início do governo Lula 3. Especialmente após a posição assumida pelo presidente e o partido diante da guerra no Oriente Médio.

“Na formação do crente típico, os israelenses são um povo de Deus. Podem não ter aceitado Jesus, mas vão mudar de ideia quando Ele voltar”, diz, em tom bem-humorado, o pastor Guilherme Carvalho.

De acordo com Victor Missiato, questões controversas como a simpatia dos petistas pelo Hamas fazem parte de um conjunto de contradições que o partido não consegue mais resolver.

“Embora o lulismo seja uma força de união entre visões progressistas, moderadas e até conservadoras, seu envelhecimento obriga o PT a mostrar para a militância uma visão mais radical, em nome da continuidade de sua linha ideológica.”

Para o historiador, esse radicalismo se confronta com as crenças de uma base social que não para de crescer na sociedade brasileira: justamente aquela formada pelas igrejas evangélicas.