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Cena da série “Mad Men”: como o Don Draper da vida real usou o feminismo em prol da indústria tabagista
Cena da série “Mad Men”: como o Don Draper da vida real usou o feminismo em prol da indústria tabagista| Foto: Reprodução

As evidências da conexão causal entre o hábito de fumar e o desenvolvimento de câncer e outros graves problemas de saúde são tão abundantes que, em 2022, há pouca gente que ache razoável que o consumo do cigarro seja sinônimo de poder e elegância. Trata-se, afinal, de um vício mortal - e caro: segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de oito milhões de pessoas morrem de causas relacionadas ao tabagismo no mundo a cada ano; enquanto estimativas dão conta de que parar de fumar pode levar a uma economia de centenas de milhares de reais em uma década.

Cenas de séries como "Peaky Blinders", ambientada nos anos 1920, e "Mad Man", que retrata os anos 1960, são estranhas às gerações que cresceram, no Brasil, sob o slogan "Cigarro faz mal até na propaganda", criado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso no ano 2000 para conscientizar a população dos malefícios do tabaco. Que fumar já tenha sido "chique", hoje, parece o resultado óbvio do marketing agressivo de uma indústria que pouco se importa com o bem-estar de seus clientes. O que nem todo mundo sabe é que um dos principais discursos utilizados para catapultar as vendas do produto, ainda nos anos 1920, foi o tão badalado... Empoderamento feminino. E o responsável pela sacada que transformou o cigarro em objeto de desejo das mulheres foi o publicitário Edward Bernays.

Austríaco radicado nos Estados Unidos, Bernays é considerado o pai das relações públicas, além de ter sido um dos pioneiros no estudo da propaganda. A curiosidade e talento para investigar a natureza humana é de família: sobrinho de Sigmund Freud, já em 1923, Bernays escreveria que "o profissional de relações públicas é, antes de qualquer coisa, um estudante e o seu campo de estudo é a mente pública". Cinco anos antes, o marqueteiro fora convidado pelo presidente Woodrow Wilson para integrar o Creel Comittee, a agência responsável pelo que se entende como a primeira grande operação governamental de propaganda moderna: a mobilização da população norte-americana para apoiar a entrada do país na Primeira Guerra Mundial.

Contratado pela Lucky Strike - sim, a cliente real da fictícia Sterling Cooper em “Mad Men” -, Bernays elevou os lucros da empresa em até 200% em meados de 1925, auxiliando em propagandas que associavam o cigarro ao ideal do corpo esbelto e à feminilidade. Não foi somente com o nome da empresa que a arte imitou a vida do publicitário: os fãs da série de Matthew Weiner devem se lembrar do episódio no qual o personagem Don Draper propõe o slogan “It’s Toasted” (“é torrado”) para um comercial de tabaco. Trata-se de um caso real ocorrido décadas antes, quando o próprio Bernays liderou a campanha marcada também pela frase “Reach for a Lucky instead of a sweet” (“Fume um  Lucky em vez de comer um  doce”).

O anúncio contava com uma imagem da jornalista britânica Lady Grace Drummond Hay, a primeira mulher a viajar pelo mundo de avião. Eis o que dizia o texto do cartaz: “O fato de não ser permitido fumar (...) só aumentava o meu apetite por um Lucky Strike! Oh, quão bom foi o primeiro que provei! Eu estou realmente interessada no Lucky Strike – o sabor torrado é encantador. Eu fumo um Lucky ao invés de comer doces – isso é o que muitos homens vêm fazendo ao longo dos anos. Eu acho que já é tempo de nós mulheres fumarmos Luckies para nos mantermos magras”. Não bastasse a originalidade da campanha, Bernays foi além: enviou fotos de modelos parisienses para repórteres e grandes nomes da indústria da moda, além de solicitar artigos médicos que comprovassem os efeitos negativos do açúcar no corpo, garantindo que o consumo de cigarro seria preferível.

Tochas da liberdade

Graças ao sucesso com a Lucky Strike, o sobrinho de Freud logo entrou na mira da American Tabacoo Corporation. Frente aos movimentos pelo sufrágio universal, o presidente da empresa, George Washington Hill, enxergou no feminismo emergente um mercado poderoso. E, junto com Bernays, arquitetou uma ação histórica realizada durante o tradicional desfile do domingo de Páscoa na Quinta Avenida de Nova York: na edição de 1929, um grupo de mulheres foi às ruas protestar contra a desigualdade de gênero portando cigarros ao invés de cartazes. O ato ganhou as manchetes e pautou o debate público nacional, sob o apelido Torches of Freedom - "Tochas da Liberdade", em inglês, em uma clara comparação com a Estátua da Liberdade para simbolizar a emancipação da mulher moderna.

Não se pode dizer que Edward Bernays não sabia que o público feminino, mais do que ávido consumidor, é também um poderoso agente de transformações sociais - para o bem ou para o mal. Em seu livro “Propaganda”, lançado em 1928, o publicitário afirmou que as mulheres, quando conscientes de sua capacidade de promover grandes mudanças, poderiam alterar os rumos da história. De fato, é curioso que as primeiras ondas do feminismo tenham sido surfadas por empresas lideradas por homens dispostos a torcer a realidade em nome do lucro.

Como que para comprovar a realidade do poder feminino, quando a realidade se sobrepõe aos interesses escusos, seriam as próprias mulheres quem, já no final do século XX, liderariam a oposição ao cigarro: em 1989, a Liga Anticigarro de Chicago foi fundada pela ativista Lucy Page Gaston. Na mesma época, o Conselho Nacional para as Mulheres, também de origem americana, lutava por leis que restringissem a venda de cigarros para este público. Ainda serão necessárias algumas décadas para reverter o estrago da propaganda no mundo: segundo a OMS, o consumo de tabaco continua a aumentar nos países em desenvolvimento. Elas, contudo, se mostram mais conscientes: segundo dados de 2010, a população de fumantes entre os homens chega aos 36,9%, contra 7,4% entre as mulheres.

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