Com o desenvolvimento contínuo da inteligência artificial (IA) e a disseminação crescente de suas aplicações em diversas atividades humanas, a demanda por energia atinge níveis inéditos. Hoje, estima-se que o conjunto de grandes computadores, data centers e as chamadas “nuvens”, que são centros gigantescos de armazenamento e processamento de dados, seja responsável por 1,5% do total de energia consumida no mundo.
Diante desse quadro, a “reabilitação” da energia nuclear começa a aparecer como uma solução possível. Nessa linha, a Microsoft, por exemplo, pretende reativar a usina nuclear de Three Mile Island — palco de um acidente em 1979.
Os números não deixam dúvidas quanto a esse alto consumo de energia da IA. Um estudo realizado em 2019 por Emma Strubell, Ananya Ganesh e Andrew McCallum mostrou que o treinamento completo do modelo BERT [do inglês Bidirectional Encoder Representations from Transformers, um modelo de inteligência artificial criado pelo Google para entender a linguagem humana] consumiu cerca de 310 MWh, equivalente ao consumo de energia de uma residência média no Brasil durante aproximadamente 170 anos, considerando que o consumo médio anual de uma casa no país é de 1.826,4 kWh.
O consumo de energia para treinar o modelo chatGPT-3, que possui 175 bilhões de parâmetros, foi maior ainda. Segundo pesquisador Gustavo Macedo, especialista em tecnologias digitais do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), treinar um modelo como o chatGPT pode consumir 1.287 gigawatt/hora, mais energia do que 120 casas consumiriam em um ano ou o que uma residência média no Brasil necessitaria durante aproximadamente 705 anos. “Outro exemplo é a IA do Google, que em 2021 consumiu, segundo estimativas, 18,3 terawatts/hora, o equivalente a 15% do consumo total da companhia em um ano”, acrescenta.
Capacidade cresce, consumo de energia também
Macedo explica que a demanda por energia pela IA é alimentada por dois fatores principais: processamento e manutenção. Essa tecnologia processa uma quantidade gigantesca de dados, o que requer enorme capacidade computacional. “Quanto mais dados processados em menor espaço de tempo, mais eficiente é a tecnologia”, explica. “Contudo, essa ‘eficiência’ não leva em consideração o consumo energético. Ou seja, quanto mais poderosa a tecnologia de processamento de dados mais ela consome energia.”
Como a capacidade de processamento dos microprocessadores tem crescido exponencialmente nos últimos anos, o consumo energético também cresce na mesma proporção. “Se levarmos em consideração que a cada dia temos mais superprocessadores sendo utilizados por mais empresas, então percebemos que a demanda energética é imensa e vai crescer exponencialmente nos próximos anos”, diz Macedo. “Outro ponto que ajuda a explicar o aumento do consumo energético é a manutenção desses equipamentos.”
Ele afirma que os data centers onde ficam esses processadores são grandes instalações que consomem uma quantidade imensa de energia para mantê-los funcionando 24 horas por dia, 365 dias por ano. Além disso, a grande concentração de processadores significa o aumento da temperatura dessas instalações, que precisam ser permanentemente resfriadas. Uma falha, ainda que momentânea, em qualquer uma das etapas acima poderia ser catastrófica para as empresas que dependem dessa tecnologia.
Não é de estranhar, portanto, que a crescente utilização de IA, que leva o consumo energético a uma curva de crescimento exponencial, esteja forçando uma reflexão sobre as fontes capazes de fornecer energia suficiente sem prejudicar o meio ambiente. Embora fontes renováveis, como eólica e solar, sejam fundamentais na transição energética global, elas ainda enfrentam limitações significativas. A variabilidade delas torna difícil garantir um fornecimento constante, algo crucial para as empresas que dependem de IA em larga escala.
Reabilitação da energia nuclear
Para o físico Johnny Ferraz Dias, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), as fontes sustentáveis como a hidrelétrica e eólica até poderiam prover a energia requerida pela IA. “Mas a nuclear também é considerada limpa pois não emite gases de efeito estufa”, observa. “Mas podemos comparar o tamanho de uma usina hidrelétrica com um parque eólico e com uma usina termonuclear. A primeira, quando considerado o reservatório de água criado, é enorme. E a potência gerada a partir do vento é grande mas não como o de uma usina termonuclear. Por exemplo, o Parque Eólico de Osório, no Rio Grande do Sul, possui uma energia instalada de aproximadamente 400 MW, enquanto que uma unidade da usina termonuclear de Three Mile Island produzia aproximadamente o dobro dessa potência.”
A energia renovável, por mais promissora que seja, ainda não conseguiu oferecer, no entanto, a estabilidade que a IA exige, especialmente em grandes volumes. Por isso, a nuclear ressurge como uma solução em potencial, oferecendo a capacidade de fornecer energia constante e em grande escala. Segundo Macedo, há uma “tendência” de reabilitação dela, na mesma medida em que há uma busca desenfreada por 'qualquer' fonte de energia ao redor do mundo. “É preciso entender que a economia digital não está desassociada das demais atividades econômicas tradicionais”, diz.
Ou seja, se a indústria tecnológica passar a comprar uma grande quantidade da energia disponível no mercado, as outras atividades econômicas terão de encontrar fontes disponíveis rápidas e baratas, como os combustíveis fósseis. “Portanto, corremos o sério risco de presenciarmos uma corrida global por energia que terá um impacto catastrófico no meio ambiente.”
Liderando essa tendência pela reabilitação da energia nuclear, Bill Gates, um dos seus maiores defensores, tem investido significativamente em tecnologias mais seguras e eficientes para a produção de energia nuclear. Influenciado pelo cientista e escritor Václav Smil, Gates acredita que a energia nuclear pode desempenhar um papel central no suprimento das demandas energéticas crescentes. Ele investe em projetos de reatores nucleares menores e mais modernos, conhecidos como Small Modular Reactors (SMR), que prometem ser mais seguros e produzir menos resíduos radioativos.
Segundo a engenheira civil e doutora em energia Sonia Seger Mercedes, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), esses novos reatores têm sido uma aposta para reabilitar a energia nuclear no cenário global. “É fato que, sobretudo após Fukushima, cientistas que se dedicam à geração nuclear de eletricidade têm trabalhado no mundo todo nas novas e novíssimas gerações de reatores, a fim de enfrentar os problemas ambientais e de segurança, incluindo técnicas para o reaproveitamento de rejeitos no próprio processo de geração”, explica.
Muito desse trabalho ainda se encontra, no entanto, em estágios não comerciais, e outros, para os quais se busca rápida aplicação prática e expansão, como os Small Modular Reactors (SMR), têm custos proibitivos. “Assim, se o uso de eletricidade de base nuclear se tornar uma situação do tipo sine qua non, creio, particularmente, que haverá outros tantos custos sociais que deverão ser ponderados, em comparação aos que hoje enfrentamos, com a economia de base fóssil.”
Para Dias, essa tendência de reabilitação da energia nuclear não está muito clara. “O planeta está passando por mudanças profundas e a demanda energética está tendendo para fontes limpas e renováveis”, explica. “Mas, na minha opinião, nenhuma matriz de produção de energia deve ser negligenciada. Eu considero que a energia nuclear ainda terá um papel importante na matriz energética do planeta por muito tempo, mas não é claro qual a sua tendência de uso no futuro próximo. Por exemplo, a China investe pesadamente em energia nuclear, com diversas centrais nucleares em pleno funcionamento.”
Segurança e rejeitos representam grandes desafios
Apesar dos avanços, a energia nuclear ainda enfrenta desafios significativos. Além da questão de segurança, sempre presente devido ao risco de acidentes como Chernobyl e Fukushima, a gestão dos resíduos radioativos e a proliferação de armas nucleares são preocupações centrais. “Quem domina a tecnologia de produção de energia nuclear está a um passo de dominar a produção de armas nucleares”, alerta Dias. “Portanto, uma proliferação de centrais nucleares pode estimular diversos países para uma corrida armamentista. Uma segunda desvantagem é o lixo radioativo que, além de ser tóxico, deve ser armazenado por milhares de anos.”
Entretanto, os benefícios da energia nuclear não podem ser ignorados. Ela tem uma densidade energética muito maior do que outras fontes de energia, o que a torna uma solução potencial para as demandas gigantescas da IA. Além disso, enquanto as fontes fósseis emitem grandes quantidades de gases poluentes, a energia nuclear é considerada limpa em termos de emissões atmosféricas, o que a coloca como uma alternativa viável na luta contra as mudanças climáticas.
A reabilitação da energia nuclear para atender à demanda energética da IA ainda está em seus estágios iniciais, mas os sinais são claros: com o crescimento exponencial da IA e a incapacidade das fontes renováveis de suprir sozinhas essa demanda, a energia nuclear volta ao debate. A Microsoft, ao optar pela reativação de Three Mile Island, destaca o potencial dessa fonte energética para as grandes empresas de tecnologia.
A transição para o uso de energia nuclear em larga escala não será, no entanto, sem custos sociais e ambientais. Novas tecnologias estão em desenvolvimento, mas ainda há um longo caminho a percorrer antes que a energia nuclear possa, de fato, se consolidar como a solução ideal para o futuro energético da IA. “Para resumir, não há milagre na produção de energia”, diz Dias. “Todas as fontes possuem vantagens e desvantagens. Não existe uma perfeita. O ideal é ter uma matriz energética diversificada, que possa prover energia com um certo grau de segurança e com responsabilidade ambiental.”
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