No filme Tropa de Elite, dirigido por José Padilha, há uma cena memorável, que expõe o dilema dos profissionais de segurança pública nos espaços de formação, pesquisa e difusão de conhecimento no Brasil. O policial André Matias, numa turma do curso de Direito de uma universidade carioca, está num grupo de alunos responsáveis por apresentar um seminário sobre a obra Vigiar e Punir, de Michel Foucault. Durante o debate na sala de aula, os alunos expõem o rol de preconceitos ideológicos comuns nos espaços de formação do país: a polícia é apresentada como uma instituição de controle perversa e corrupta, que reproduz padrões de dominação de classe.
Após ouvir uma série de colocações absurdas, o policial, único negro numa sala de aula majoritariamente branca, tenta colocar o debate sob outra perspectiva, defendendo o trabalho dos policiais honestos, ao mesmo tempo em que aponta para o problema do uso de drogas, que financia o crime organizado, responsável pela morte de tantas pessoas nas favelas e fora delas. Matias, que havia ingenuamente ingressado no curso de Direito por acreditar que poderia incrementar o seu trabalho na polícia, logo se vê acuado por um público extremamente hostil, incluindo colegas de classe e professor, que procura desmerecer sua opinião com argumentos toscos de autoridade e toda sorte de afirmações contaminadas de preconceito ideológico.
O filme é de 2007, quando não havia ainda nenhuma graduação em segurança pública ou ciências policiais no Brasil. Quase duas décadas depois do seu lançamento, pelo menos quatro instituições federais de ensino oferecem algum tipo de graduação na área, sem contar com vários cursos em instituições privadas e alguns tantos de natureza técnica, criados na última década. O panorama parece apontar para uma evolução do pensamento social brasileiro quanto ao tema, tendo em vista não só esse incremento institucional, como a multiplicação de teses, dissertações de mestrado, monografias e artigos científicos publicados todos os anos.
Para quem frequenta esses ambientes, entretanto, fica evidente que o problema retratado no filme continua sendo uma constante: espaços de ensino e pesquisa dominados por ideologias progressistas ou francamente socialistas, que não são realmente abertos para os policiais com vivência prática, ou, pelo menos, não para incorporar de fato essas vivências e perspectivas sem a imposição de agendas ideológicas.
As consequências de negligenciar os estudos policiais
Mas quais as consequências disso? Apesar da queda na taxa de homicídio entre 2017 e 2022, de 64 mil para cerca de 47,3 mil homicídios/ano, o Brasil é nacional e internacionalmente conhecido pela violência criminal. Impunidade, insegurança, domínio do crime organizado, tráfico de drogas e alta vitimologia policial impõem sua marca na sociedade há décadas. O resumo do país nesse sentido é o próprio Rio de Janeiro, que, em 2023, pode ter perdido 33 bilhões de reais em turismo por conta da sensação de insegurança.
Em 2022, 173 policiais da ativa foram assassinados no Brasil. Outros 82 perderam a vida praticando suicídio.
Os custos dessa disfunção são ainda mais elevados para aqueles que têm a segurança pública como trabalho. Em 2022, 173 policiais da ativa foram assassinados no Brasil. Outros 82 perderam a vida praticando suicídio. A índole violenta é uma tônica nas ações criminosas, com risco de vida para vítimas e agentes. A pressão e a fadiga são constantes na vida cotidiana das corporações. Para piorar, no Brasil vigora a carência de protocolos e medidas protetivas ao exercício da função policial, o que contribui para o aumento da insegurança jurídica, do estresse e do risco de vitimização.
Por exemplo, quando um agente deve efetuar um disparo de arma de fogo, diante de um perigo iminente? Sem resposta clara, sem confiança e condições para o profissional de segurança pública agir, qualquer medida pode ser posta em xeque pela ignorância ou pelo preconceito ideológico dos burocratas de plantão na gestão pública, nas instituições de controle externo ou mesmo no Poder Judiciário. Como num caso de setembro de 2017, quando um policial rodoviário federal do Distrito Federal foi denunciado pelo Ministério Público Federal por crime de homicídio doloso, depois de ter matado um assaltante em fuga. O procurador pretendeu deslegitimar o uso da arma de fogo, porque lhe parecia “desproporcional à motivação” (sic).
É preciso fazer a universidade da polícia.
Este fato é sintomático e deveria levar a uma preocupação às polícias: a urgente busca por espaços de debate, pesquisa, aperfeiçoamento, defesa, e, sobretudo, formação de conteúdo e difusão de conhecimento. Algo que vá além do trabalho das academias de formação, civis e militares, que seja capaz de envolver produção acadêmica com pleno desenvolvimento científico. Não basta levar a polícia à universidade, como uma quebra de preconceitos, é preciso fazer a universidade da polícia.
Esse pode ser o verdadeiro ponto de equilíbrio dessas instituições. Sem deixar de corresponder às agendas de governo, é fazer com que a polícia progrida em técnica, inteligência e ciência, para assim atuar dentro da lei, de forma razoável e natural. Robert Reiner, em A política da polícia (EDUSP, 2000), demarcou um ideal para as polícias, a partir da leitura sobre a trajetória da polícia inglesa desde o século XIX: o distanciamento possível da política. Mas o próprio autor reconhece a impossibilidade dessa sina. Alternativamente, desenvolver as Ciências Policiais através das polícias é possivelmente o melhor traçado para essas instituições navegarem.
Polícia está sendo contaminada pela agenda identitária
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), dentre outras instituições análogas, realizam um trabalho de compilação de dados, desenvolvimento de pesquisa e diálogo entre instituições do campo. Também promovem um amplo encontro anual, que, em 2023, chegou a sua 17ª edição, realizado em Belém do Pará. Mas apesar do sucesso e enraizamento do FBSP, sobretudo pela elaboração de um Anuário, a iniciativa recai – propositadamente – num problema comum: a intenção de adequar as polícias às suas agendas, que são progressistas, fortemente alinhadas com a agenda identitária que contaminou todo esse espectro na última década.
A ideologia não entra necessariamente como uma doutrinação, mas na seleção conveniente das perguntas.
Misoginia online, violência contra as mulheres, violências socioambientais, questões raciais, de gênero, clima e segurança, gênero e justiça penal, dentre outros, acabam sendo temas transversais e onipresentes. O drama das drogas e a violência nas cidades; como lidar com menor infrator e o apelo da sociedade pela redução da maioridade penal; vitimologia policial, questões técnicas do trabalho policial; o campo das operações policiais; o domínio de cidades; a “mexicanização” do Brasil; e outros assuntos, diríamos, mais cruentos, não recebem o mesmo destaque nesses ambientes. A adoção de câmeras acopladas às fardas dos policiais (body cams) também exemplifica como instituições de matriz progressista ou francamente socialista atuam. A proposta vem como agenda de fora, sem comprovação científica real, mas é vendida como se tivesse. Ao mesmo tempo, há uma série de problemas levantados pelos policiais da ponta que são negligenciados. As perguntas que eles fazem (apreensão gerada pelas câmeras, medo de uso político, vulnerabilidade etc.) não são incorporadas aos métodos de pesquisa. A ideologia, ao contrário do que se costuma dizer, não entra necessariamente como uma doutrinação ou uma distorção do dado, mas na seleção conveniente das perguntas que se faz ao campo, deixando de lado tudo aquilo que poderia ser importante segundo perspectivas alternativas a respeito do problema. Nesse processo, a polícia permanece mais como objeto de reflexão externa do que ator da reflexão.
Burocracia acadêmica atrai diplomados com má vontade para com o trabalho policial
Para completar, existe um problema constitutivo da burocracia acadêmica brasileira, que tem marcado a reprodução de um modelo de ensino e pesquisa alienado do trabalho policial, mesmo depois dos primeiros investimentos na área a partir de meados dos anos 2000. Ele pode ser resumido numa equação simples: a criação de cursos universitários exige doutores formados, que, por sua vez, na área de segurança pública, saem prioritariamente dos departamentos de ciências humanas. Esses departamentos se encontram cada vez mais contaminados por agendas ideológicas progressistas, de tendência não raro diretamente contrária à atividade policial, na maior parte das vezes alienadas do conhecimento prático. Consequentemente, os policiais que desejam ensinar nessas instituições precisam se submeter aos parâmetros de controle ideológico desses mesmos departamentos.
Em tempo: Michel Foucault, citado no Tropa de Elite, uma das referências obrigatórias nos cursos de segurança pública ministrados no país, jamais escreveu um trabalho sobre a polícia, e mesmo o seu livro sobre a prisão foi escrito sem que o autor jamais adentrasse numa unidade prisional. É sintomático como um autor pode ter se tornado referência na área, denunciando um país que pouco conhece a tradição de pesquisa estabelecida.
Mais ainda, grande parte dos profissionais que têm destaque na sua atuação cotidiana não encontram tempo ou incentivo para frequentar espaços de formação educacional. Por conseguinte, os policiais que procuram se formar na universidade ou são tolhidos para direcionar seu trabalho pelas preferências ideológicas dominantes, ou não tem ânimo de adentrar para debater em ambientes hostis. Assim, os cursos continuam controlados pelos mesmos profissionais de ciências humanas sem qualquer vivência prática, num ciclo vicioso de ignorância e preconceito.
Pensando no futuro, evento reunirá dezenas de especialistas
Como resolver essa contradição? Existe um longo caminho para instituir um ramo de Ciências Policiais que de fato reflita os problemas e buscas de soluções para o trabalho policial, considerando de maneira adequada a experiência da prática profissional. Isso passa por uma reforma ampla do sistema educacional. Começa com movimentos embrionários, iniciados em fóruns de debates especializados. Essa é justamente a proposta do I Fórum Internacional de Segurança Pública (FICP) a ser realizado nos dias 22 e 23 de março de 2024, no Centro do Rio de Janeiro.
O FICP propõe algo alternativo aos apelos progressistas que incutem a desmilitarização, o desarmamento civil e quaisquer outras ideias que esvaziam direitos e o próprio fazer policial. A proposta é constituir um ambiente destinado à troca de ideias e à projeção de uma nova forma de agir sobre as polícias e a segurança pública no país. Mais de 60 palestrantes, entre policiais, militares, pesquisadores, professores, empresários e agentes públicos, levarão ao público reflexões de alto nível sobre os mais variados temas que convergem à Ciência Policial.
Dentre os temas na programação: formação e treinamento policial, vitimologia policial e protocolos de proteção, investigação, inteligência operacional, crimes locais e transnacionais e a soberania brasileira, novas tecnologias e inteligência artificial à atividade policial, evolução dos roubos no Brasil, crimes digitais e as instituições financeiras, segurança pública e municipalidade, segurança nacional e questão indígena, armamento e criminalidade.
O evento foi concebido na Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado do Rio de Janeiro (SECTI-RJ), conta com fomento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ) e apoio científico do Instituto Arrecife. Tem recebido apoios de peso de organizações e empresas comprometidas com a sociedade brasileira, como a Associação Beneficente Heróis do Rio de Janeiro (ABHRJ), CN Filmes, Barra World & Park, N. Engenharia, ADERJ, SINDICARGA, BRINKS, PROSEGUR, Escola Nacional de Concursos e Charque Paraíso. Algumas dessas empresas estão diretamente envolvidas na área, mas outras simplesmente têm aderido à agenda do FICP por perceberem as consequências da desordem, da insegurança e da impunidade.
As polícias brasileiras estão cansadas de tanto cientista social com solução pronta
Iniciativas como essa precisam estar ajustadas a um ecossistema institucional que, de fato, direcione recursos para produção de conhecimento prático, fornecendo balizas técnicas para o incremento da atividade policial no Brasil. É preciso investimento em pesquisa, ensino e debates na área, e isso tem que envolver diretamente o policial que atua na ponta, independentemente de sua titulação acadêmica ou ligação com instituições de pesquisas. As polícias brasileiras estão cansadas de tanto cientista social com solução pronta para reforma da segurança pública e o problema do crime. O país precisa de uma universidade da polícia, pela polícia e para a polícia, para que se possa dar uma resposta consistente para a violência que dinamita as bases de funcionamento da sociedade brasileira.
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Luiz Carlos Ramiro Junior é ex-Presidente da Fundação Biblioteca Nacional, assessor especial da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado do Rio de Janeiro e organizador do I Fórum Internacional de Ciências Policiais.
Eduardo Matos de Alencar é presidente do Instituto Arrecife, doutor em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco e autor do livro 'De Quem é o Comando? O Desafio de Governar uma Prisão no Brasil' (Ed. Record, 2019).
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