No mês que vem, a pandemia de Covid-19 completará seu quarto aniversário. Há três anos e dois meses é aplicada a vacina de mRNA da Pfizer-BioNTech para a doença, desde a sua primeira aprovação de uso de emergência nos Estados Unidos. Como o Brasil é o único país no mundo que continua a obrigar crianças pequenas a serem vacinadas contra a doença, o tempo é propício para a publicação de um novo estudo com quase 100 milhões de pessoas que faz um panorama geral dos eventos adversos e efeitos colaterais das vacinas contra Covid. A análise, que incluiu oito países da Europa, Américas do Norte e Sul e Oceania, confirmou suspeitas anteriores relacionadas à inflamação do coração (miocardite) e seu revestimento (pericardite), síndrome de Guillain-Barré (problema nos nervos da face) e trombose cerebral em uma minoria de vacinados.
O estudo foi publicado no dia 12 de fevereiro na revista científica Vaccine, e conta com 35 autores distribuídos pelo globo, com primeira autoria e chefia de pesquisadores da Dinamarca. Seu propósito foi criar uma Rede Global de Dados de Vacina (GVDN, na sigla em inglês) e analisar 13 eventos adversos pós-vacinação selecionados em uma gigantesca amostra de mais de 99 milhões de indivíduos. Foram consideradas 183 milhões de doses da vacina da Pfizer, 36 milhões de doses da vacina da Moderna (também de mRNA) e 23 milhões de doses da vacina AstraZeneca/Oxford, produzida no Brasil pela Fundação Oswaldo Cruz. O termo “evento adverso” significa qualquer resultado negativo observado após a inoculação, sem compromisso com uma relação de causa e consequência.
Nos estudos das vacinas, foram incluídos como eventos adversos uma criança que engoliu uma moeda e um adulto atingido por um raio, por exemplo. Mas esses não seriam eventos adversos de “interesse especial”, como os 13 selecionados, que são aqueles com alguma plausibilidade de relação causal a ser investigada. Uma vez estabelecida a relação causal, os eventos são chamados de “efeitos colaterais”.
O estudo é observacional, ou seja, os cientistas não escolheram por sorteio quem receberia ou não vacina contra Covid, se limitando a buscar saber o que aconteceu com vacinados em condições não experimentais ou controladas. Os resultados foram apresentados principalmente em comparações entre o número observado de eventos de miocardite, por exemplo, e o número esperado do problema de acordo com a média estabelecida anteriormente, conhecida como “incidência de fundo”.
Eventos adversos na categoria de problemas cardiovasculares
Separando os vacinados por número de doses de um a quatro, os cientistas confirmaram um aumento da chance de miocardite e pericardite nas três vacinas. O produto da Pfizer aumentou em mais de 100% acima do esperado o risco da inflamação do músculo cardíaco após cada uma das doses, com mínimo de 106% após a quarta dose e máximo de 186% após a segunda. No caso da inflamação do revestimento cardíaco, essa vacina aumentou o risco entre 19% após a terceira dose e 55% após a quarta.
É importante destacar que esses números, apesar de às vezes dramáticos, são comparações entre números pequenos de afetados e não servem necessariamente para uma avaliação geral de custo-benefício das vacinas, não sem uma comparação com os efeitos da Covid-19 nos não-vacinados.
A vacina da Moderna, que tem mais mRNA que a da Pfizer, mostrou-se em geral mais arriscada para esses problemas cardíacos: o excedente na comparação com o esperado atingiu um máximo de 510% após a segunda dose e um mínimo de 101% após a terceira para miocardite; e entre 39% e 164% após a quarta dose para pericardite.
A vacina da AstraZeneca foi em geral mais segura comparada às duas vacinas de mRNA para o coração, mas com um curioso aumento de 591% de pericardite em sua terceira e última dose, um resultado surpreendente a ser analisado por destoar de uma média de 30% em ambos os problemas para as outras doses.
O grupo de maior risco para a miocardite vacinal é o dos homens jovens, entre 16 e 24 anos. Em outro estudo com 23 milhões de escandinavos, a incidência foi de quatro a sete casos a cada 100 mil vacinados com duas doses da vacina da Pfizer e nove a 28 casos para 100 mil vacinados com o produto da Moderna.
Em se tratando de problemas circulatórios, como a formação de coágulos com poucas plaquetas (trombose com trombocitopenia, problema que matou o jovem brasileiro Bruno Graf), contudo, a AstraZeneca foi a campeã dos eventos adversos após a primeira dose. Foi de 223% acima do esperado o número de casos de coágulos sanguíneos formados em veias do cérebro — para reiterar que este número é uma comparação de baixas proporções de pessoas, este problema foi observado em um excesso de 2,5 pessoas para cada 100 mil na Escandinávia: “raro, mas preocupante”, como colocaram os autores do estudo. O aumento para outros tipos de trombose foi mais reduzido, entre 7% e 40%. Três doses dessa vacina aumentaram em 88% os casos de embolismo pulmonar.
As vacinas de mRNA não ficaram livres das complicações vasculares, que em geral foram mais observadas após a primeira dose, com o sinal estatístico tendendo a desaparecer nas doses seguintes, exceto após a quarta dose, em que os imunizantes da Pfizer e Moderna apresentaram 30% e 53% mais casos que o esperado, respectivamente, de trombose das veias que drenam o sangue dos intestinos, baço, pâncreas e estômago.
Eventos adversos na categoria de problemas neurológicos
Nas três vacinas, foi na primeira dose que os números de afetados mais superaram o que os pesquisadores esperavam, com destaque para a síndrome de Guillain-Barré na AstraZeneca (149% mais que o esperado) e uma condição de inflamação autoimune do revestimento dos neurônios do cérebro e da medula espinhal conhecida como “encefalomielite disseminada aguda” na vacina da Moderna (278% mais que o esperado).
A primeira dose da vacina da AstraZeneca/Oxford também aumentou em 90% na comparação com o esperado a chance de inflamação do revestimento dos neurônios da medula espinhal, condição chamada “mielite transversa”, e em 123% o risco de encefalomielite disseminada aguda. Uma inoculação do imunizante da Moderna também aumentou em 25% a chance de paralisia facial (paralisia de Bell), 36% as convulsões com febre e 15% as convulsões em geral.
A mais segura em primeira dose para problemas neurológicos foi a vacina da Pfizer, com único sinal detectado de aumento do risco de paralisia facial em 5% na comparação com o esperado.
Na segunda dose, os pesquisadores encontraram apenas na vacina da Moderna um aumento de 44% da chance de convulsões febris. Na terceira dose, para as três vacinas, não encontraram aumento de risco dos eventos neurológicos que fosse estatisticamente importante; e na quarta dose (que não ocorreu no caso da AstraZeneca) somente o imunizante da Pfizer mostrou um aumento de 9% em convulsões.
Discutindo esses resultados, os autores do estudo observam que alguns desses potenciais efeitos colaterais já eram conhecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), Agência Medicinal Europeia (EMA) e a Administração de Bens Terapêuticos da Austrália (TGA), como é o caso da síndrome de Guillain-Barré, geralmente uma paralisia temporária da face por problemas nos nervos locais, mas que pode em alguns casos afetar outros músculos do corpo dependentes do sistema nervoso periférico, chegando a arriscar vidas afetando a respiração.
Os cientistas apontaram algumas limitações de sua análise como a variação de qualidade dos dados de país para país, as potenciais diferenças entre eles no perfil de risco genético e comportamental para cada evento relatado, além de problemas de saúde pré-existentes não levados em conta. Uma das forças do estudo é que ele é mais generalizável que outros, além da qualidade estatística conferida pela enorme amostra. “Mais investigações são bem-vindas para confirmar as associações” entre as vacinas e os eventos, concluíram, especialmente as que introduzam elementos experimentais não presentes em estudos observacionais como este.
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