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Diferença salarial

Não é sobre ser mulher, é sobre ter filhos: estudo revela impacto da maternidade na renda

Economistas comentam pesquisa que revela como a diferença de renda entre mulheres surge após o nascimento do primeiro filho
Economistas comentam pesquisa que revela como a diferença de renda entre mulheres surge após o nascimento do primeiro filho (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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O que aconteceria com a história profissional de uma mulher que descobre, desde jovem, que não pode ter filhos? Como seria sua trajetória, na comparação com outras? Em outras palavras, o que tem mais impacto para a carreira feminina, o gênero ou a maternidade?

Desenvolvida por cinco pesquisadores de instituições europeias (da Inglaterra, da Suécia e da Holanda), uma pesquisa em andamento busca responder a essas perguntas.

O ponto de partida é uma amostragem de 152 mulheres que moram na Suécia e são portadoras da síndrome de Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser (MRKH) tipo 1, uma condição congênita rara que afeta o sistema reprodutivo feminino e causa ausência ou subdesenvolvimento do útero.

A doença, no entanto, não altera outros aspectos, como saúde ou desempenho cognitivo, de forma que a trajetória educacional das pacientes pode ser sustentada. Além disso, costuma ser identificada na adolescência, e geralmente a partir da ausência de menstruação.

As conclusões preliminares apontam que essa amostragem específica não registra diferenças significativas em termos de educação, escolha de carreira, desempenho escolar ou primeiras decisões ocupacionais.

Indicam também que estas profissionais compartilham sua condição de saúde com amigos, mas evitam comunicar o diagnóstico a colegas de trabalho e chefes — e, quando o fazem, tendem a alcançar renda superior à média das mulheres.

Em outras palavras, o gênero tem impacto sobre as decisões em relação à formação e à área de trabalho escolhida — mulheres que não podem ter filhos fazem, em geral, escolhas semelhantes às feitas pelas demais. A maternidade tem maior impacto na renda, no longo prazo.

Momento decisivo

“Este trabalho é inovador, produzido por uma equipe muito capaz e que conta com dados sólidos. A estratégia é criativa”, avalia a economista Ursula Mattioli Mello, professora do Insper, onde é também coordenadora do Observatório de Desigualdades no Ensino Superior e Mercado de Trabalho.

“É um estudo em fase preliminar, que demanda cautela na análise, mas indica que estas mulheres que sabem, ainda na adolescência, que não terão filhos biológicos, escolhem cursos similares ao da média e não entram em maior proporção em ocupações tradicionalmente consideradas masculinas. Nem começam a carreira com salários maiores. O que muda nas trajetórias profissionais é o momento em que as demais mulheres têm filhos”, diz a economista.

O levantamento sugere ainda que existe uma penalidade econômica, que se manifesta no momento do nascimento do primeiro filho.

“Para o estudo, a maternidade provocaria uma queda grande e persistente na renda e na participação laboral, enquanto as mulheres com MRKH permaneceriam em trajetórias profissionais mais contínuas. Não aparecem diferenças relevantes, o que, em tese, sugeriria que a penalidade econômica está associada ao cuidado infantil e à reorganização da vida familiar, não a fatores prévios”, analisa Allan A. Gallo, professor de economia na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

“O que impacta as escolhas é o gênero, mas a maternidade tem efeito na renda”, sintetiza a economista Lorena Hakak, professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) e presidente da Sociedade de Economia da Família e do Gênero (GeFam).

Reorganização temporária

O trabalho se insere no contexto da produção de uma série de estudos que analisam a “penalidade pelo filho”, ou child penalty, uma expressão que faz referência ao impacto negativo na carreira de uma mulher após a chegada dos filhos, em comparação com os homens.

Um dos pesquisadores, Camille Landais, professor da London School of Economics, é também coautor do Child Penalty Atlas, um levantamento que compara a queda média na renda das mulheres, por país, a partir do momento em que elas têm filhos.

O trabalho desenvolvido com a as mulheres suecas portadoras de MRKH indica que esse fenômeno pode ser decorrente da necessidade de reduzir a dedicação à carreira por alguns anos, assim que os filhos nascem. Na leitura de Allan A. Gallo, o estudo aponta para outros aspectos importantes a respeito da trajetória profissional das mulheres no longo prazo.

“O diagnóstico de MRKH normalmente surge no final da adolescência, e mesmo assim as mulheres afetadas seguem exatamente os mesmos padrões educacionais e ocupacionais das demais. Elas não escolhem profissões diferentes, não buscam setores mais masculinos e não aceleram sua carreira mais cedo. Isso sugere que a maior parte das decisões de investimento em capital humano é tomada por razões internas, como aptidão, vocação, estilo de vida, criação, valores e não por cálculos sobre maternidade futura”, afirma Gallo.

Essas constatações também confirmam, diz ele, que “as pessoas fazem escolhas de longo prazo com base em talento, propósito e oportunidade, não em cenários hipotéticos. E confirma também que a maternidade não ‘desqualifica’ ninguém; ela apenas cria uma reorganização temporal que impacta ritmos profissionais específicos”.

Liberdade para escolher

Em outras palavras, o fator decisivo não é o gênero em si, mas o modelo de organização familiar e o peso real do cuidado infantil que pode recair mais na mulher ou não.

“Numa sociedade saudável que leva a sério a responsabilidade, a família e o trabalho, isso não é tratado como um problema a ser eliminado, mas como uma característica a ser levada em conta na formulação de políticas e contratos, porque essas diferenças são naturais e não desaparecem na canetada”, afirma o professor do Mackenzie.

Esse equilíbrio pode ser alcançado com a maior participação dos pais na formação dos filhos pequenos.

“A licença maternidade, no Brasil, é curta, mas ela se apoia no dilema: se for mais longa, a criança tem acesso aos cuidados maternos por mais tempo, inclusive a amamentação, mas a pausa na carreira pode se tornar o retorno ainda mais difícil”, aponta Hakak.

Para ela, o aumento da licença paternidade no Brasil, aprovado na Câmara dos Deputados, mas que ainda precisa tramitar no Senado e passar por sanção presidencial, é positivo.

“Com a divisão mais igualitária entre mães e pais, a tendência é a penalidade profissional ser reduzida para as mulheres”, diz a economista.

Foi o que se viu na Espanha, onde a licença paternidade foi ampliada em 2007. E já há estudos que apontam para os benefícios dessa medida.

“Precisamos de crianças, é importante que as mulheres sejam acolhidas em suas decisões de terem filhos. E elas têm deixado este momento para idades mais avançadas principalmente para reduzir o impacto sobre a carreira profissional”, afirma a economista.

Em outras palavras, como diz Gallo, a maternidade não é uma desvantagem moral ou intelectual, mas uma redistribuição temporária de prioridades que pode contar com suporte da sociedade e do mercado de trabalho.

“O desafio das instituições modernas é não punir essa escolha, mas também não negar que ela existe. Criar condições para que mulheres que desejarem continuem suas carreiras não significa homogeneizar todos os caminhos, e sim permitir que cada família encontre o equilíbrio que faz sentido para sua realidade”, afirma.

O caminho, conclui ele, não é desestimular a maternidade, “mas criar condições reais para que ela coexista com a vida profissional. A continuidade da sociedade depende justamente dessa harmonização responsável entre família e trabalho”.

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