Estados Unidos, 1970. A propaganda pró-aborto, nascida no calor da Revolução Sexual, ganhava tamanha aceitação que cerca de 40% dos americanos rejeitavam qualquer restrição à prática. Termos como "liberdade", "autonomia" e "privacidade" dominavam o discurso que angariava cada vez mais apoio em uma sociedade majoritariamente cristã.
As novas faces do movimento feminista ganhavam protagonismo no debate: em 1967, a Organização Nacional para as Mulheres (NOW) endossou os “direitos” ao aborto. Dois anos depois, Betty Friedan, tida como fundadora da segunda onda do feminismo, fez um influente discurso retratando o direito à interrupção da gravidez como uma parte essencial e inegociável da agenda feminista.
Até aquele momento, o movimento pró-vida americano, majoritariamente liderado por homens, focava seus esforços na defesa biológica e jurídica do embrião, com argumentos sustentados por médicos e advogados. No entanto, quando a legalização do aborto parecia iminente no estado da Pensilvânia, uma jovem mãe católica decidiu dar uma nova direção à luta pró-vida, destacando um aspecto até então pouco explorado: os interesses das mulheres.
Casada e mãe de sete filhos, Mary Winter se identificava como uma "feminista pró-vida". Compartilhava das bandeiras feministas em favor da igualdade de gênero e do fim da discriminação moral e cultural contra as mulheres, mas não conseguia entender como tantas militantes apoiavam o aborto. Estava convencida de que a legalização do aborto beneficiaria principalmente a ganância dos médicos abortistas, além de permitir que homens escapassem das consequências da exploração sexual das mulheres.
"É inacreditável ver as feministas contemporâneas, os tecnocratas do controle populacional e exploradores como a Playboy Foundation colaborando entre si para promover seus interesses escusos", dizia Winter. "As líderes do movimento feminista pró-aborto estão dispostas a fazer alianças com homens que exploram sexualmente as mulheres, em troca do dinheiro e do poder que eles oferecem para promover a causa."
O feminismo em defesa da maternidade
Segundo o historiador Daniel K. Williams, embora o feminismo da segunda onda tenha se consolidado como um movimento pró-aborto, “sempre houve feministas que acreditavam que a defesa da vida dos nascituros era coerente com a luta pelos direitos das mulheres”. “Elas viam o aborto como um ataque à maternidade e argumentavam que o verdadeiro feminismo deveria proteger as mulheres em sua totalidade, incluindo seu papel como mães", afirma o especialista, em entrevista à Gazeta do Povo.
Além de Winter, outras mulheres no movimento pró-vida também aderiram ao título de feministas, atribuindo-lhe um novo significado e representando uma ruptura no estereótipo conservador e republicano que se impunha sobre a militância pró-vida. Católica progressista que se opunha à pena de morte e às guerras travadas pelos Estados Unidos, Sidney Callahan, uma das líderes feministas pró-vida da época, via a luta contra o aborto como parte de uma campanha mais ampla por justiça social. "As mulheres não precisam se identificar com a sexualidade masculina, a agressividade masculina e os estilos de vida masculinos sem útero para conquistar igualdade social", dizia.
Nesse sentido, as feministas pró-vida apoiavam legislações que promoviam a igualdade salarial e os direitos das mulheres no ambiente de trabalho, mas também defendiam leis calcadas nas diferenças biológicas entre os sexos que protegessem mulheres vulneráveis.
“As feministas pró-vida estavam unidas pela crença de que os nascituros mereciam proteção legal. Muitas vezes, argumentavam que a Revolução Sexual — e, por extensão, a indústria do aborto — desrespeitava as mulheres ao tratá-las como objetos sexuais e ao incentivá-las a abortar seus filhos”, explica Williams. “O verdadeiro caminho para a libertação feminina, argumentavam, começava com o reconhecimento das diferenças biológicas entre homens e mulheres e com a valorização das capacidades reprodutivas únicas das mulheres”.
Irmã de John F. Kennedy era feminista e contra o aborto
Um dos movimentos que se destacou nessa luta foi o Birthright, criado em Boston em 1973 e cuja primeira convenção internacional teve como principal palestrante Eunice Kennedy Shriver. Irmã mais nova do presidente John F. Kennedy e esposa do político democrata Sargent Shriver, ela era conhecida por suas políticas progressistas e sua defesa das pessoas com deficiência, além de seu trabalho pró-vida. "A adoção, e não o aborto, é a resposta para gestações indesejadas", defendia Shriver.
O Birthright apregoava que o apoio social às mulheres grávidas seria a melhor forma de reduzir a taxa de abortos, atraindo muitas voluntárias que se identificavam com políticas mais à esquerda. Anne McCraken, ex-voluntária do Peace Corps e firmemente contrária à Guerra do Vietnã, era uma das vozes no movimento. "De repente percebi, ‘aqui estou protestando contra guerras e mortes, enquanto 25.000 bebês foram abortados em Nova York’. Que taxa de mortalidade!", escreveu.
Foi apenas com a decisão da Suprema Corte Americana pela descriminalização do aborto, no famoso caso Roe versus Wade, que a aliança entre feminismo, progressismo e defesa da vida foi relegada ao esquecimento. Meio século depois, revertida a histórica canetada abortista nos Estados Unidos, Williams o futuro do movimento pró-vida engendra novas pontes com as primitivas pautas feministas.
"O movimento pró-vida moderno está aprendendo que a causa deve ser holística. Não se trata apenas de banir o aborto, mas de criar uma cultura de vida que honre a dignidade feminina, defendendo políticas como melhorias no atendimento de saúde materna e licenças parentais mais robustas, oferecendo os recursos necessários para que as mulheres possam escolher a vida e, ao mesmo tempo, buscar seus próprios objetivos", avalia. Um nobre caminho a ser trilhado, desde que calcado na clareza do que, afinal, constitui uma mulher.
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