Em um país que busca soluções simplistas para questões complexas, um conceito caiu como uma luva para justificar problemas e transferir responsabilidades: o racismo estrutural.
Difundido no Brasil pelo ex-ministro Silvio Almeida, demitido da pasta dos Direitos Humanos após denúncias de agressão sexual, esse pensamento foi apresentado ao grande público há cerca de cinco anos e rapidamente se espalhou por diferentes setores da sociedade.
Do ambiente acadêmico às artes – passando pelo jornalismo, a publicidade, a política e até o meio jurídico –, a ideia de que o racismo está em toda parte, como uma espécie de pano de fundo da vida cotidiana, hoje é encarada como verdade absoluta.
Seu arraigamento é tão profundo que mesmo a queda em desgraça de Almeida não será capaz de enfraquecê-la. Ainda mais por se tratar de um conceito carregado de tintas marxistas e anticapitalistas (e, portanto, abraçado por toda a esquerda).
É o que afirma a socióloga Geisiane Freitas, coautora (com Patrícia Silva) do livro "O que Não te Contaram Sobre o Movimento Antirracista" e apresentadora do programa "Na Veia", da Gazeta do Povo.
“Meu termômetro é sempre a periferia. Moro na periferia e sei que esse termo já é muito usado pelas pessoas de lá. Acho pouco provável que isso retroceda. E a esquerda nunca erra, né? Eles nunca vão admitir que estão errados”, diz Geisiane, que pesquisa as relações raciais e de gênero desde 2014.
O professor de Filosofia Francisco Razzo concorda que a abordagem do racismo estrutural não será abandonada por causa das acusações contra seu divulgador. No entanto, para ele, o escândalo pode mexer com algumas crenças dos esquerdistas, acostumados a fazer um julgamento moral do mundo.
“O caso do Silvio Almeida mostra para a esquerda que teorias se fundamentam em razões que são independentes do caráter. O caráter de alguém não é o fundamento de sua teoria”, afirma o colunista da Gazeta e autor de "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária".
Ele completa: “Para a esquerda, você não pode estudar, por exemplo, um filósofo como o [Martin] Heidegger. Porque era alemão e participou de alguma forma do nazismo. Mas a teoria dele não necessariamente sustenta e legitima o nazismo”.
Segundo Geisiane, o episódio que derrubou o ministro realmente “bugou” o campo progressista, porém por pouco tempo. Afinal, o PT encontrou na figura da deputada estadual mineira Macaé Evaristo, nova ministra dos Direitos Humanos, a saída perfeita para a crise.
“Não foi à toa que colocaram uma mulher negra e gorda no lugar do Silvio Almeida. É para fazer uma sinalização à agenda identitária e passar um pano em cima disso. E vida que segue.”
Ela ainda reforça o perfil controverso tanto de Almeida quanto de Macaé. “Tivemos um ministro dos Direitos Humanos que é acusado de cometer uma das piores violações contra os direitos humanos. E agora temos uma ministra envolvida em um caso de corrupção, de superfaturamento na compra de uniformes escolares.”
Críticos de Almeida dizem que sua tese carece de embasamento científico
Silvio Almeida já trabalhava com o tema do racismo estrutural na academia antes de 2019, influenciado por pensadores negros americanos.
Mas foi naquele ano que o advogado ganhou o status de “guru racial” do progressismo brasileiro – graças ao lançamento de um livro com o nome de sua teoria, incluído na coleção Feminismos Plurais, coordenada pela ativista Djamila Ribeiro.
O problema é que, para alguns pesquisadores (entre eles intelectuais negros e engajados na luta antirracista, como Muniz Sodré, Jessé Souza e Samuel Vida), o trabalho carece de embasamento científico.
De acordo com os críticos do racismo estrutural, Almeida simplesmente não seguiu as regras estabelecidas pela Sociologia em seu estudo. Começando pelo básico: a falta de uma definição para a palavra “estrutura”.
“Os autores estruturalistas [aqueles que, grosso modo, se baseiam na ideia de que os indivíduos são moldados pelas estruturas sociais e culturais] utilizam o termo "estrutura" de maneiras variadas. E cada um deles dá sua definição do que é isso – o que o Silvio não faz”, afirma Geisiane.
“Parece uma chatice, mas a Sociologia trabalha em cima de categorias. Sem essas categorias, é como se um médico cardiologista fosse operar um paciente sem seus instrumentos.”
Ainda segundo a socióloga, outro erro de Silvio Almeida é tratar uma tese – ou seja, uma possibilidade a respeito da realidade – como a realidade em si.
Mas então por que tanta gente, inclusive no meio acadêmico, assimilou esse pensamento praticamente como uma verdade absoluta?
Francisco Razzo destaca “a facilidade quase que intuitiva com que esse conceito não apenas explica, como também justifica, as ações políticas de quem eu não concordo”.
Essa concepção, no entendimento dele, acaba levando à demonização do outro, à vitimização e à transferência de culpa (características comuns da cultura contemporânea, marcada pela busca de bodes expiatórios). A ponto de “aniquilar qualquer senso de complexidade da sociedade”.
Quando o racismo estrutural é usado para se livrar de acusações e vender produtos
Em um dos segmentos de "O que Não te Contaram Sobre o Movimento Antirrascista", as autoras tratam do que chamam de “efeito cortina de fumaça”.
Esse fenômeno acontece quando um indivíduo comete um ato racista, porém se isenta da responsabilidade “jogando a carta”, por assim dizer, do racismo estrutural – como o próprio Silvio Almeida fez ao ser denunciado por agressão sexual.
O livro traz como exemplo uma situação envolvendo a cantora pop Luísa Sonza, acusada de discriminação em 2018.
Ela participava de um evento em Fernando de Noronha quando ordenou uma pessoa negra que a servisse com um copo d’agua. A mulher abordada, no entanto, não trabalhava no local – e, ofendida, processou a artista por danos morais.
Quando o caso veio à tona, em 2022, Luísa divulgou a seguinte retratação em suas redes: “Reconheço que a maneira com que me dirigi à Sra. Isabel Macedo de Jesus traduziu um ato de reprodução do racismo estrutural, o que de maneira nenhuma foi minha intenção”.
Partido dessa premissa, é possível dizer que o “efeito cortina de fumaça” também vem sendo utilizado por empresas e instituições.
Um caso clássico foi a guinada politicamente correta do Nubank, cancelado nas redes sociais quando uma de suas executivas afirmou, durante uma entrevista, ter dificuldade em recrutar negros para cargos de liderança.
Rapidamente, o banco anunciou uma “parceria de conteúdo” com o rapper Emicida, que costuma dizer frases como “A democracia é sabotada pelo racismo todos os dias” e “O Brasil tem um racismo extremamente sofisticado e letal”. E, assim, a marca aliviou sua barra com os progressistas.
Mas não é preciso estar em meio a uma crise de imagem para comprar – ou melhor, vender – a ideia do racismo estrutural.
“Nossas elites financeiras e econômicas viram uma fatia de mercado aí. É só olhar as propagandas. É impressionante como as teorias identitárias, sobretudo a do racismo estrutural, são assimiladas pelo próprio capitalismo”, afirma o professor Francisco Razzo.
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