No começo da década de 2000, o jornalista americano Larry Rother – correspondente do New York Times na América Latina – cunhou o termo “maré rosa” para definir o avanço político da esquerda na região.
Quase 25 anos depois, essa influência não apenas cresceu como se consolidou na forma de uma grande articulação entre governos, partidos e outras organizações que se apresentam como defensoras da democracia, mas mantêm uma agenda radical e autoritária.
Atento a essa movimentação, o cientista político alemão Sebastian Grundberger, um estudioso da política latino-americana, criou outra expressão para se referir a essa teia internacional, agora ampliada: Galáxia Rosa.
Este também é o nome de um livro em que ele explica o conceito e revela os principais “atores” envolvidos – dos membros do Foro de São Paulo aos governos da Rússia e da China.
Grundberger atualmente comanda o escritório uruguaio da Fundação Konrad Adenauer, entidade alemã ligada ao partido União Democrata Cristão do país, de centro-direita.
“Apoiamos projetos em todo o mundo para fortalecer as instituições democráticas e fomentar o diálogo político”, afirma o acadêmico, que concedeu uma entrevista exclusiva para a Gazeta do Povo.
Em que a Galáxia Rosa difere da “maré rosa”?
No início dos anos 2000, e até um pouco antes, vivenciamos um fenômeno de crescentes vitórias eleitorais da esquerda na América Latina, rapidamente denominado de “maré rosa”. Esse termo engloba atores da esquerda moderada – como a ex-presidente chilena Michelle Bachelet ou o ex-presidente uruguaio Tabaré Vázquez – e regimes com uma clara inclinação autoritária, como o de Hugo Chávez na Venezuela, de Rafael Correa no Equador e de Evo Morales na Bolívia.
De alguma forma, o termo contém uma ambiguidade em sua qualidade democrática. E essa ambiguidade é o que hoje vemos em um conjunto de atores internacionais formado tanto por pessoas ou instituições com trajetória democrática quanto por organizações que são claramente autoritárias. Por isso chamo esse novo espaço de Galáxia Rosa, porque ele foi alçado a uma dimensão ampliada.
Qual a importância do Foro de São Paulo para esse movimento da esquerda latino-americana?
O Foro de São Paulo é, em certo sentido, a origem desse fenômeno. Em 1990, Fidel Castro e Luiz Inácio Lula da Silva – um ditador e uma pessoa que atua dentro do processo democrático brasileiro – uniram-se para fundar esse espaço de movimentos e partidos políticos.
Nesse fórum, convergem desde o partido comunista cubano, na época o único participante no poder, até o Partido Socialista Unido da Venezuela, passando pela Frente Sandinista de Libertação Nacional, do ditador nicaraguense Daniel Ortega, legendas como o Morena [Movimento Regeneração Nacional], do México, e o MAS [Movimento ao Socialismo], da Bolívia, até forças moderadas como o Partido Socialista Chileno e o Partido Revolucionário Democrático do Panamá.
Hoje, legendas do Foro de São Paulo governam 13 países da região. Nesse grupo, distintas formas de esquerda, da mais ditatorial à mais social-democrata, se unem com um propósito em comum. E todos apoiam as estrelas mais autoritárias, como Cuba, Nicarágua e Venezuela.
O senhor afirma que o Grupo de Puebla (fórum mundial de esquerda, fundado em 2019 na cidade mexicana homônima) se disfarça de democrático, mas busca legitimar regimes autoritários como os de Cuba, Venezuela e Nicarágua. Poderia explicar como essa contradição se manifesta nas ações e discursos da entidade?
O Grupo de Puebla está muito relacionado ao Foro de São Paulo em dois aspectos: a união entre pessoas autoritárias e democráticas e seus alinhamentos ideológicos. Mas, ao contrário do Foro de São Paulo, que é formado por partidos, o Grupo de Puebla é uma organização de pessoas.
Surgiu a partir de um documentário chamado ‘Al Fondo a la Izquierda [‘No fundo à Esquerda’], em que o político e cineasta chileno Marco Enríquez-Ominami entrevistou líderes tanto da esquerda autoritária quanto da democrática, como Pepe Mujica, Dilma Rousseff, Nicolás Maduro, Rafael Correa e Evo Morales. Todos eles, exceto Maduro, acabaram entrando no Grupo de Puebla.
Em suas declarações, a entidade exige um novo tipo de democracia, mais radical e participativa, que não é uma democracia pluralista e liberal. Eles defendem o regime cubano contra o que chamam de intromissão e intervenção dos Estados Unidos, sem criticar os atropelos aos direitos humanos. E têm uma proximidade com o regime de Nicolás Maduro, exigindo sua incorporação nos espaços internacionais e legitimando-o.
Qual a relação entre o Grupo de Puebla e o Conselho Latino-Americano de Justiça e Democracia (Clajud)?
Um está muito relacionado com o outro. O Grupo de Puebla tem uma obsessão com o conceito de lawfare [“guerra jurídica”, estratégia em que se usa a lei como arma política contra os adversários], que acreditam ser usado para perseguir líderes “progressistas”.
Figuras como Rafael Correa, Ernesto Samper, Cristina Kirchner, Marco Enríquez-Ominami, Baltasar Garzón e Evo Morales veem uma perseguição jurídica vinda da direita contra eles. Mas não mencionam, nem criticam, os atropelos aos direitos e liberdades em Cuba, Venezuela e Nicarágua.
Formaram o Clajud como uma espécie de observatório jurídico para detectar o lawfare na região e emitir declarações conjuntas. Baltasar Garzón, o ex-juiz espanhol conhecido por suas acusações contra Augusto Pinochet e inabilitado pela justiça espanhola por usar escutas ilegais, é a principal pessoa articuladora do conselho. Ele também trabalha como advogado para pessoas relacionadas ao regime venezuelano.
O Clajud é um espaço de ativismo político que deslegitima a Justiça nos países quando pessoas do entorno do Grupo de Puebla são investigadas.
O que é o Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso)? E por que o considera mais uma organização política e ideológica do que uma entidade acadêmica?
Fundado como uma organização acadêmica em 1957, o Clacso foi tomado nas últimas décadas como o braço acadêmico da Galáxia Rosa. Hoje agrupa quase 900 centros de pesquisa social na América Latina.
No entanto, transformou-se num espaço de apoio às ditaduras, especialmente a de Cuba, sem qualquer crítica. Isso perverte seu objetivo original de servir e fortalecer a democracia. O Clacso emite comunicados com um forte toque anti-imperialista e antidemocrático, e suas publicações carecem de pluralismo acadêmico.
Apesar de sua proximidade com espaços autoritários, recebe fundos da cooperação europeia, o que o torna particularmente poderoso. Sua sede está em Buenos Aires, na Argentina, e seu staff é composto por gente conhecida da Galáxia Rosa
Como se originou a Internacional Progressista e quais são seus vínculos com a América Latina, especialmente Cuba?
A Internacional Progressista surgiu na mesma época em que o Grupo de Puebla foi fundado. É formada por pessoas próximas ao Instituto Sanders, vinculado ao senador [democrata] americano Bernie Sanders, e a Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia. Varoufakis é conhecido por suas posições radicais, inclusive antissemitas, o que levou a Alemanha a proibi-lo de falar publicamente no país.
A entidade foi criada para contrariar a direita autoritária, promover uma revolução e erradicar o capitalismo. Sua declaração de princípios é muito radical, e chama a atenção que muitas pessoas de uma esquerda mais moderada se associem a essa organização.
Eles têm vínculos com a ala mais radical do Partido Democrata nos Estados Unidos, os Socialistas Democratas da América, e estão muito ativos na América Latina, com um coordenador geral que fala espanhol.
São extremamente próximos ao regime cubano e até vendem adesivos de Fidel Castro e Che Guevara em sua loja online. Também realizaram dois congressos em Havana, com a participação dos líderes da ditadura cubana, encabeçada por Miguel Díaz-Canel.
A veneração a Cuba tem quase um caráter religioso. Para eles, e todos os outros atores da Galáxia Rosa, Havana é uma espécie de Vaticano socialista cujos dogmas não são questionados.
No livro, o senhor menciona que a Internacional Progressista ajudou o presidente colombiano Gustavo Petro quando ele foi acusado de envolvimento com o narcotráfico. Como vê o papel da organização em crises políticas como essa?
Houve uma declaração assinada por 400 líderes de esquerda em apoio a Gustavo Petro quando ele foi vinculado ao narcodinero [dinheiro obtido com o tráfico de drogas] em sua campanha. Esse documento foi orquestrado pela Internacional Progressista, outro ator da Galáxia Rosa que ganha cada vez mais importância.
Recentemente, na eleição de Claudia Sheinbaum no México, enviaram uma delegação de observadores eleitorais, assim como o Grupo de Puebla. Foi assim que Evo Morales chegou ao México, como "observador" em um processo democrático, apesar de ter sido acusado de fraude eleitoral na Bolívia pela OEA [Organização dos Estados Americanos].
A mencionada carta de apoio a Petro conseguiu a assinatura de muitos personagens da Galáxia Rosa, confirmando a tese do meu livro de que estamos falando de uma estrutura articulada com diferentes espaços que convergem nela.
Qual é o papel da China e da Rússia na Galáxia Rosa e como esses países influenciam a política e a ideologia na América Latina?
A Rússia é muito importante como parceira da Galáxia Rosa. Líderes como Evo Morales e Rafael Correa usam a RT [Russia Today, rede de televisão internacional financiada pelo governo russo] ativamente para difundir suas narrativas de desinformação. A RT também apoia candidaturas, como a de Claudia Sheinbaum no México.
Os meios de comunicação da Galáxia Rosa adotam narrativas russas, como a luta contra supostos neonazistas na Ucrânia e a defesa da Venezuela como uma democracia popular ameaçada pelos Estados Unidos.
No âmbito acadêmico, o Clacso realizou encontros com a Universidade de São Petersburgo e a agência [de notícias] Sputnik, entoando a melodia geopolítica do Kremlin. Também houve um encontro parlamentar Rússia-América Latina em 2023, em que mais de 120 parlamentares da Galáxia Rosa elogiaram Vladimir Putin
A China, por sua vez, promove seu modelo de partido único como superior aos modelos ocidentais. Nicolás Maduro Junior [filho do ditador venezuelano], por exemplo, já elogiou esse modelo publicamente. É uma ideia atraente para regimes que buscam governar autoritariamente.
A China e a Galáxia Rosa têm em comum a oposição aos Estados Unidos e ao Ocidente em geral, à democracia liberal, ao pluralismo e à economia de mercado.
Como os brasileiros podem evitar a ameaça autoritária representada pela Galáxia Rosa?
Lula, como fundador do Foro de São Paulo, é um dos ideólogos da Galáxia Rosa. Embora ele tenha sido um governante pragmático dentro das regras democráticas, no âmbito internacional manteve uma radicalidade nas suas relações com espaços autoritários.
O Partido dos Trabalhadores se vê como uma parte fundamental dessas estratégias. O Foro tem sua sede em São Paulo e sua secretária geral, Mônica Valente, é uma pessoa de confiança de Lula.
É importante pressionar o governo brasileiro e o PT para que se distanciem dos espaços autoritários e mostrem que a população rechaça esse ativismo autoritário. Isso inclui a proximidade do Brasil com a Rússia, que é vergonhosa para muitas pessoas em nível internacional – especialmente quando Lula coloca em dúvida a responsabilidade de Putin na morte do opositor Alexei Navalny.
O governo brasileiro e o Partido dos Trabalhadores devem sentir que a população está preocupada com essas atitudes para que as mudem.
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