Talvez você já saiba que aquela história sobre Dom Pedro I e o brado da independência não foi bem como contam na escola. Mas além de uma dor de barriga imperial antes do Grito do Ipiranga e os burros (não eram cavalos) que acompanhavam o então Príncipe Regente, Portugal não engoliu bem esse negócio, levando a uma das Guerras Esquecidas do Brasil: a da Independência.
Alguns historiadores a chamam de Guerras da Independência do Brasil, no plural. Afinal, foi um combo: Independência da Bahia, Batalha do Jenipapo e conflitos no Maranhão, Grão-Pará e Província Cisplatina.
Os preparativos para uma guerra começaram antes mesmo do grito da independência, que por sinal aconteceu quando D. Pedro recebeu um decreto de Independência já assinado pela Princesa Leopoldina, que ficou no Rio de Janeiro “tocando o barco” enquanto o então príncipe regente foi a São Paulo resolver uns perrengues locais. Afinal, os membros da junta do governo provisório paulista vinham se desentendendo – algo que Pedro conseguiu contornar.
Antes mesmo do famoso Dia do Fico (quando D. Pedro contrariou ordens da Coroa para voltar a Lisboa, em 9 de janeiro de 1822), estava claro que as províncias buscariam independência. Portugal já tinha até mesmo esboçado um plano de recolonização, com interferências diretas na administração brasileira, fiscalização e garantia de tropas. Havia tropas especialmente nas províncias ao Norte prontas para “abraçarem a causa portuguesa”.
Por que não estudamos as Guerras da Independência do Brasil
Por outro lado, o surto nacionalista aumentava no Sudeste e Sul. Após o Fico e com a Constituição jurada, as forças portuguesas não tinham muito o que fazer em Rio, Minas, São Paulo e Rio Grande do Sul. O regente mandou as tropas portuguesas “darem no pé”. Inclusive, geralmente esse é o máximo que aprendemos nas escolas, em grande parte do Brasil.
“Houve um esforço institucional muito grande no Rio de Janeiro e em São Paulo de celebrar a independência a partir dos fatos ocorridos no Sudeste. A partir da década de 1880, é feito um investimento muito grande de dinheiro da Província de São Paulo, e do próprio governo monárquico no Rio de Janeiro para o reforço dessa identificação da independência com São Paulo e depois, claro, em decorrência disso, a construção de uma sede de poder da Corte no Rio de Janeiro”, afirmou à Gazeta do Povo o chefe da divisão de acervo e curadoria do Museu do Ipiranga, Paulo Garcês.
O problema é que mais ao Norte, com o perdão do paradoxo, o “buraco foi mais embaixo”. A ideia de Portugal, durante o início da década de 1820, era se fortalecer no hoje Nordeste (especialmente Salvador) e Norte (Grão-Pará) para, depois, recolonizar o Brasil.
2 de julho: A Independência da Bahia
O fato é que os portugueses estavam firmes por aquelas bandas, especialmente em Salvador. Afinal, a Cidade da Bahia (como era conhecida naquele tempo) era um local estratégico e uma das cidades mais importantes das Américas.
Além disso, a Bahia nunca gostou muito de ser governada pelo Rio de Janeiro durante o Reino de Brasil, Portugal e Algarves nos anos que antecederam a independência. Inclusive, quando a Revolução Liberal do Porto, iniciada em 1820, exigiu a volta da Corte do Rei Dom João VI do Rio para Lisboa, a notícia foi bem recebida e a Bahia foi a segunda província a aderir ao movimento liberal do Porto, e a primeira a se desligar à subordinação do Rio de Janeiro em junho de 1821.
“Inicialmente houve uma recepção da notícia na Bahia com bons olhos pelo cunho liberal e constitucionalista. Por outro lado, começou a se aprofundar uma diferença de perspectiva política de dois grupos, que a gente pode chamar hoje de grandes comerciantes e os proprietários de terras. Eles vão se configurar depois entre portugueses e brasileiros, mas naquele momento não tinham essa conotação nacional”, explicou à Gazeta o professor doutor Sérgio Diniz Guerra, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
E isso não era uma mera questão política: também era econômica. A conexão comercial mais importante da Bahia era com Portugal. Ainda que as províncias do Brasil tenham passado a ter condições iguais a Lisboa quando foi oficializado o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, em 1815, a nova constituinte ameaçava essa liberdade comercial nos territórios brasileiros.
Naquela época, Salvador acabou virando uma capital de província polarizada, como revelou Francisco de Sierra y Mariscal, testemunha ocular dos fatos, em uma publicação de Lisboa em 1823. Havia um grupo (grande) de defensores de Lisboa. Outro grupo da “aristocracia” que defendia um estado brasileiro. E uma “terceira via” que queria governos provinciais independentes.
“Embora seja difícil detectar o momento exato em que a política reformista e de conciliação da Coroa de Bragança tenham perdido a hegemonia entre as classes dominantes da capitania, essa viragem aconteceu”, relata o historiador Argemiro Ribeiro de Souza Filho, em sua tese de doutorado.
Isso porque a tensão entre a “primeira e segunda via” foi aumentando ao longo dos anos.
A Bahia era uma de certa forma acostumada ao sangue de insurreições de escravizados nos anos anteriores por conta da ampliação da economia canavieira, aumento do tráfico negreiro e ampliação de portugueses europeus na Bahia, o que incluiu a transferência de tropas lusitanas para a capital baiana. Soldados e oficiais, aliás, que tinham tratamento diferenciado em comparação aos nascidos por essas bandas.
“Criou-se uma Assembleia Constituinte, e as cortes gerais foram escrever uma constituição para esse Reino Unido. A questão é que quando essa constituição começa a ser escrita, surgem as divergências políticas entre os grandes comerciantes, em sua maioria nascidos na Europa, e os grandes proprietários, em sua maioria nascidos na América”, afirma Sergio Guerra.
Mercadores e militares brasileiros, magistrados e classes sociais intermediárias viam naquele momento uma ameaça. E o início dos confrontos estourou em fevereiro de 1822, quando veio a ordem de troca do governador das armas da província. A corte de Portugal mandou substituir o brigadeiro Manuel Pedro de Freitas, inclinado à causa baiana, pelo general português Inácio Luís Madeira de Melo.
Vereadores de Salvador tentaram impedir a posse. Militares brasileiros também. Como não houve transição pacífica, tiros e gritos foram sons comuns por algumas semanas. Era o início de uma guerra civil na Bahia, com centenas de mortos (não há um dado preciso), decretando o início das Guerras da Independência do Brasil.
“A elite baiana se agrega a um conselho interino de governo, que não aceita o poder do general Madeira de Melo. Eles criam uma capital em Cachoeira enquanto Salvador continua uma capital portuguesa, e criam o governo. Eram senhores de terra e de escravos que dominavam esse cenário político, e fizeram muita questão de aderir ao projeto independentista de D. Pedro porque essa seria uma opção de segurança da elite baiana para manutenção do seu status quo, o que inclui a escravidão, privilégios de monopólio e também do latifúndio”, destaca o professor da UFRB.
Para se ter uma ideia, em 19 de fevereiro de 1822, Salvador virou palco de guerra, com confrontos no Forte de São Pedro, nas Mercês, no Campo da Pólvora e na Praça da Piedade. Historiadores contam que tropas portuguesas invadiram edifícios, chegando ao Convento de Nossa Senhora da Conceição da Lapa. Foi quando a Madre Joanna Angélica se postou em frente aos portugueses. Reza a lenda que ela disse:
“Para trás, bandidos! Respeitai a casa de Deus! Só entrarão passando por cima do meu cadáver!”
Foi o que os soldados fizeram. Mataram a madre a golpes de baioneta e Joana Angélica hoje é uma das mártires da Independência.
Estima-se que entre os dias 18 e 21 de fevereiro ocorreram até 200 mortes, somando ambos os lados, com resultado favorável para os portugueses, obrigando os soldados baianos-brasileiros a se retirarem para o Recôncavo Baiano, seguidos por cidadãos e famílias da cidade, segundo Sérgio Guerra.
Foi a chance de organizar uma nova resistência. A vila de Santo Amaro da Purificação foi a primeira a declarar lealdade a D. Pedro, em 14 de junho, seguido pela vizinha Cachoeira, no dia 25. Como resposta, imediatamente uma tropa portuguesa no Rio Paraguaçu atacou Cachoeira, em um tiroteio de 72 horas, até que os portugueses bateram em retirada.
Ciente das notícias, D. Pedro mandou Madeira de Melo embarcar para Portugal, e foi desobedecido. Afinal, ele tinha ao seu lado reforços de outras tropas que haviam sido expulsas do Sul e Sudeste.
“Muitas tropas saídas do Rio e da Cisplatina acabam ficando em Salvador, na cidade da Bahia, por esforço de Madeira e do corpo de comércio que arrecada fundos para pagar os soldos daquelas tropas que deveriam voltar para Portugal, e que eles acabam mantendo em Salvador a partir dessa movimentação. Quando saem das províncias, saem com a rota de retorno a Portugal. Mas aquelas que fazem alguma parada na Bahia recebem esse convite para permanecer”, diz Sérgio Guerra.
Mesmo assim, os rebeldes baianos conseguiram iniciar um cerco em Salvador, fechando dois dos principais acessos à cidade, segundo o professor. Além disso, o Príncipe Regente optou então por organizar um exército liderado por um general mercenário Francês: Pierre Labatut, que partiu do Rio para a Bahia com quase 300 militares mais armamentos.
Só tinha um problema: perto de Salvador haviam muitos navios portugueses e Labatut optou por desviar a rota até Maceió. “Muitas vezes as expedições tinham planos A, B e C”, explica o professor, que destaca ainda que, com essa opção por Alagoas, Labatut pode ainda verificar a lealdade de outras províncias ao projeto e pacificar a movimentação de portugueses.
De lá, ele rumou por três meses marchando até a Bahia, engrossando a tropa com escravizados, libertos, índios, entre outros novos soldados de classes mais pobres em Pernambuco, Sergipe, Alagoas e, claro, Bahia. Voluntários esses que, junto com as tropas que se formaram na própria Bahia anteriormente, mais tarde seriam representados pela figura do Caboclo nas comemorações da independência baiana.
Foram mais de dez meses de combates e os brasileiros cercaram Salvador por terra, mas no mar os lusos ainda tinham o domínio. O jogo virou a favor mesmo dos brasileiros graças a outro mercenário: o escocês almirante Thomas Cochrane cercou a saída marítima em maio de 1822.
Porém, a guerra continuou com batalhas decisivas, dignas de filme. A Batalha do Pirajá, em 8 de novembro de 1822, foi uma delas, marcada por envolver mais de 10 mil combatentes de ambos os lados e pela martirização de Maria Quitéria de Jesus, que se disfarçou de homem para combater ao lado dos brasileiros.
A figura de Maria Quitéria, inclusive, é uma das poucas das Guerras da Independência do Brasil vistas no Museu do Ipiranga, segundo Paulo Garcês. “É uma heroína que está ali na parede com a Imperatriz Leopoldina, cercada dos filhos. Mas não é efetivamente o combate sangrento, a morte, a guerra, que caracteriza vários desses combates nas capitanias do Norte. Nada disso é representado visualmente no museu”, pontua o historiador.
Aliás, na mesma batalha, um outro personagem chamado corneteiro Luís Lopes recebeu ordens para dar o sinal de recuar tropas, e resolveu fazer justamente o oposto: ordenou “avançar e degolar”. De alguma forma deu certo e os portugueses bateram em retirada.
A outra batalha decisiva foi em 7 de janeiro de 1823, quando tropas lusas tentaram romper o cerco buscando dominar a Ilha de Itaparica. Após três dias, saíram derrotados e, ainda que tenham tentado alguma reorganização, no dia 2 julho de 1823 os baianos amanheceram com uma surpresa: pela madrugada, Madeira de Melo tomou finalmente o rumo de casa e levou na bagagem mais de 10 mil portugueses.
Foi selado assim o novo dia da Independência do Brasil, ou melhor, da Bahia: a data, além de feriado estadual, é o tema do hino do estado e as festas de caboclos e caboclas são formas de contar essa história e reafirmar a história popular nessa guerra.
Batalha do Jenipapo: o massacre que impediu outros massacres
Enquanto acontecia a Guerra Civil na Bahia, outro movimento tão importante quanto aquele era organizado na província do Piauí. Movimento, aliás, por décadas negligenciado por grande parte da historiografia.
A província, que antes havia sido parte do Maranhão, se tornou peça chave na independência brasileira por diversos motivos. Um dos mais fortes era a carne. Isso mesmo, o Piauí era o maior produtor de gado do Brasil, enviando alimento tanto para Portugal quanto para outros locais estratégicos do território, como Goyaz (era assim que se escrevia), Minas Gerais, e outros territórios, como explicou o professor doutor Johny Santana de Araújo, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), e sócio de membro do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), em entrevista à Gazeta do Povo.
Além da maior proximidade de Maranhão, Grão-Pará e Rio Negro (hoje Amazonas) com Lisboa, as fazendas de gado piauienses seriam estratégicas em um plano de recolonização do Brasil por Portugal, pensado desde 1821, ou pelo menos em uma eventual divisão do território: se o Brasil ficasse independente, Portugal queria pelo menos manter o Norte em suas mãos. E isso incluía manter estrategicamente o Piauí (hoje Nordeste) sob sua tutela.
Aliás, o atual estado tinha uma particularidade. “A colonização da capitania foi do interior para fora”, disse Araújo. E isso pesa muito no lugar que a província ocuparia no processo da independência, já que a capital era Oeiras, hoje a 600 km do litoral. Foi para lá que foi enviado um dos melhores militares portugueses: João José da Cunha Fidié, nomeado em 9 de dezembro de 1821 governador das armas, chegando por lá em 9 de agosto de 1822.
O envio não foi à toa. Fidié lutou nas Guerras Napoleônicas lado a lado com o britânico Duque de Wellington, ganhando lugar de destaque nas Guerras da Independência do Brasil.
A meta era segurar uma virtual onda independentista na província piauiense. Ordem expressada pessoalmente por Dom João VI a Fidié, que escreveu em sua biografia:
“Sua Magestade [D. João VI] me ordenou muito positivamente, que me mantivesse, dizendo-me - 'mantenha-se! Mantenha-se!"
(p.s: grafia da época)
A onda veio e, com o perdão do trocadilho, começou na praia: na vila de Parnaíba, organizada principalmente pelo comerciante e coronel de milícias Simplício Dias da Silva. “Ele tinha um pensamento liberal e não via com bons olhos o projeto de recolonização”, comenta Johny.
Quando as notícias do Ipiranga chegaram à Parnaíba, já no dia 19 de outubro (para a época foi bem rápido), Simplício convoca a câmara e elite local para aclamar D. Pedro como imperador do Brasil. Isso levou Fidié a iniciar uma marcha com 1,5 mil soldados com “sangue nos olhos” para a cidade, deixando algumas tropas na capital nas mãos do brigadeiro Joaquim de Sousa Martins, presidente da Junta local, e Manoel Sousa Martins, ex-presidente da junta.
Foi aí que começaram os primeiros problemas para Fidié. Chegando em Parnaíba, os revoltosos já não estavam mais por lá. “Ele inclusive coloca em suas cartas que esse tivesse chegado a tempo teria enforcado todos”, comenta o professor da UFPI.
Os insurretos fugiram para Granja, no Ceará, buscar apoio para o movimento. Inclusive, a Câmara do Ceará aprovou uma moção de apoio à formação de um Exército Libertador no Ceará e Piauí.
Enquanto isso, em Oeiras, o brigadeiro Joaquim de Sousa Martins “virou a casaca”, e conclamou a independência do Piauí em 24 de janeiro de 1823. Ele abraçou o movimento por um motivo, um bocado, inusitado. Como explica o professor Araújo, o brigadeiro Sousa Martins foi alijado da eleição da presidência da junta em 1821, ainda que o clã dele continuasse no poder com o irmão: “Pragmaticamente falando, ele guardou aquilo como uma forma de vingança”.
Fidié então se viu obrigado a dar meia volta e, com mais reforços vindos da corte portuguesa, buscar retomar Oeiras. Mas lembra aquele pessoal que foi para o Ceará?
No meio do caminho, uma das duas colunas do Exército Libertador, liderada pelo capitão Luiz Rodrigues Chaves, soube que Fidié estava se aproximando da cidade de Campo Maior, ao lado do Rio Jenipapo, que à época estava seco por conta da estiagem. Parecia algo bom para os insurretos usarem de trincheira e atacar as tropas de Fidié. Mas não era.
Enquanto o exército português era um exército de primeira linha, a coluna que resolveu confrontar Fidié era de milícias (segunda linha) e ordenanças (terceira linha). Para piorar, a maioria era de pessoas sem experiência em combates. E foram eles que deram início a essa luta: a Batalha do Jenipapo.
O exército independentista era formado por vaqueiros, escravos, índios, agregados, pessoas humildes que foram convencidas à causa e foram literalmente de peito aberto para a guerra, com facões, machados e outros equipamentos nada eficientes, como dois canhões velhos que falharam nos primeiros tiros.
“[Os soldados] foram de bom grado e morreram. Foi uma perda muito grande”, afirma o professor, revelando ainda que há fontes como cartas de um sujeito chamado Capitão Caminha mostrando o desejo de enviar filhos (isso mesmo), vaqueiros, munições, e cavalos sendo espontaneamente enviados ao exército libertador.
No dia 13 de março, esse pessoal liderado por Chaves busca atacar a cavalaria de Fidié, sem saber que as tropas portuguesas se dividiram em duas frentes. Ao saber do ataque, Fidié atravessou o rio Jenipapo, construiu uma barricada, montou artilharia, distribuiu armas pesadas, e armou 11 canhões. Cearenses e piauienses eram o alvo. “Foi um massacre. O campo ficou coalhado de mortos. A batalha durou das 8h às 14h”, diz Santana de Araújo.
Ao final, Fidié perdeu entre 20 e 30 homens de seus quase 2 mil soldados. Do lado brasileiro, algumas fontes citam pouco mais de 200 mortes, outras 400 e outras até 500. Sem contar que Fidié afirma ter feito cerca de 500 prisioneiros (algo que ainda precisa ser estudado).
“Acontece que uma unidade mais preparada do projeto independentista capturou a bagagem de Fidié, o que hoje no Exército a gente chamaria de Logística: além de dinheiro para pagamento das tropas, capturaram ouro, munição, comida. Sem isso, ele não pôde dar continuidade [a novas batalhas]”, explica o professor. “Ele nunca se perdoou por isso”, completa.
O exército independentista debandou, mas conseguiu reagrupar. Já Fidié se refugiou em uma fazenda próxima: Tombador. Sem armas nem equipamentos, várias incursões aconteceram contra Fidié, inclusive com o apoio de tropas vindas de outras províncias como Bahia e Pernambuco. E o experiente combatente foi recuando até a vila de Caxias, já no Maranhão, onde foi sufocado por tropas enviadas pelos irmãos Sousa Martins. Fidié então se rende, é enviado ao Rio de Janeiro e depois deportado a Portugal, onde – por incrível que pareça – foi recebido com todas as honrarias.
E aqui há dois detalhes importantes apontados pelo professor da UFPI:
Se Fidié não tivesse cometido o erro tático que levou à perda logística, a guerra se estenderia. Seria muito mais sangrenta e, talvez, o Brasil não tivesse em seu território a maioria dos estados do Norte, nem Maranhão (estes mais alinhados à causa portuguesa), nem Piauí.
O outro ponto é que Fidié ficou em Caxias à espera da chegada de reforços de Portugal que desembarcariam em São Luís do Maranhão. Reforços que nunca chegaram por conta do avanço das colunas independentistas que cercaram a capital maranhense e, de certa forma, novamente por uma parcela de culpa de Cochrane (aquele mesmo que cercou a Bahia de todos os Santos). Só que isso é um spoiler da história que veremos nas próximas linhas.
Entre o Maranhão e o Grão-Pará: as províncias que não queriam ser brasileiras
Ainda que o projeto de Dom Pedro I tenha tido sucesso - na base do gogó ou da pancada - contra os portugueses em locais como Piauí, Ceará, Pernambuco e Bahia, ainda restava convencer (ou conquistar) o resto do Norte da América Portuguesa.
Maranhão e Grão-Pará eram muito mais pró-Lisboa, tanto pelo histórico de exportações quanto por aderirem rapidamente à Revolução Liberal do Porto (que comentamos aqui no trecho da Bahia), do que pró-Rio de Janeiro. Aliás, eram praticamente anti-Rio.
“As primeiras notícias do Rio e de Lisboa de que estavam havendo rusgas começam a chegar aqui no final de 1821, quando as cortes mandam D. Pedro voltar e ele se recusa, com o ato formal depois no Dia do Fico. Desde este momento o que a gente tem aqui, mesmo no pessoal que era oposição, é sempre a defesa de que o Rio de Janeiro não deveria ser o centro de poder”, explica à Gazeta do Povo Marcelo Cheche Galves, autor do livro ‘Ao público sincero e imparcial: imprensa e independência do Maranhão (1821-1826)’ e organizador do livro ‘O Maranhão Oitocentista’, além de professor doutor da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
Essa indisposição como o Rio de Janeiro era mais comum do que se pensa. “As rupturas intensas da formação brasileira têm origem obviamente no estilhaçamento das capitanias que Portugal promoveu durante o período colonial. Não havia grandes conexões internas. Nós só vamos nos sentir próximos do ponto de vista cultural a partir do século 20, com a construção de uma memória nacional que passa a trazer as capitanias do Norte antigas, e as províncias, para a narração do Brasil. Ou seja, se Pernambuco, Ceará, e as capitanias anexas muitas vezes eram associadas a uma ideia de separatismo”, destaca Paulo Garcês, do Museu da Independência.
“O centro de poder no Rio significava tributação maior e deslocar o poder para um lugar para onde nossos comerciantes não tinham qualquer relação. Nossos comerciantes negociavam com Lisboa e Porto e nossa produção de algodão ia toda para Londres. Então, não havia conexões com o Rio de Janeiro em nenhum sentido. O principal jornal daqui [à época], O Conciliador, dizia: ‘Os polos do Rio de Janeiro são apenas nossos contemporâneos’”, completa o especialista Cheche Galves.
Não foi à toa, portanto, que o Maranhão simplesmente ignorou o grito de Dom Pedro até 1823. Tanto que a província até mesmo elegeu deputados para a segunda legislatura das cortes de Portugal em janeiro de 1823.
“A coisa começa a se modificar a partir do momento que Piauí e Ceará declaram suas independências”, destaca o professor.
Mas isso não acontece por vontade maranhense. Acontece porque as regiões mais aderentes à independência no litoral do Piauí e Ceará, respectivamente em Parnaíba e Granja, formam os primeiros contingentes de tropas que marcham em direção ao Maranhão. “Estamos falando de tropas irregulares, de escravizados, de libertos, financiadas por proprietários da região que tinham interesse na independência”, afirma Marcelo Cheche.
Se o exército era, digamos, amador, pelo menos o roteiro era inteligente: o grupo segue pela faixa próxima ao litoral. Enquanto isso, no interior, “as tropas portuguesas expulsas no Piauí vão para o Maranhão e se concentram na vila de Caxias, que é a principal vila do interior do Maranhão”, recorda o professor. Lembra do Fidié, que falamos no trecho do Piauí? Assim as tropas brasileiras evitavam o confronto no interior.
O problema [para os portugueses] é que já tinha algum tempo que os lusos de São Luís também aguardavam reforços. E é aqui que o Grão-Pará (hoje dividido em mais estados) entra no jogo.
“Desde janeiro, o Maranhão aguardava que chegassem tropas de Portugal ou de algum lugar, quando começa esse movimento no Piauí e no Ceará. E o Grão-Pará aprova em janeiro de 1823 o envio de tropas para o Maranhão para ajudar. Porque eles sabiam que se o Maranhão caísse, cairia o Grão-Pará na sequência. Então, o governador das armas do Grão Pará, brigadeiro José Maria de Moura, aceita encaminhar contingentes que vão se concentrar exatamente nessa divisa do Piauí para tentar conter esse avanço”, explica o historiador.
Ele completa dizendo que se, por um lado, não acontecem especificamente Guerras da Independência do Brasil no Grão-Pará, existem essas tropas grão-paraenses deslocadas para combate na divisa do Maranhão com o Piauí. Mas não foram o suficiente para segurar a turma vinda das outras províncias dispostas a lutar as Guerras da Independência do Brasil: a primeira vitória brasileira em solo maranhense acontece na vila de São Bernardo, em maio de 1823.
Enquanto os derrotados vão batendo em retirada para Caxias, os vencedores avançam até a região de Itapecuru, grande produtora de algodão. Lá eles encontram uma figura chamada José Felix Pereira de Burgos, comandante das armas local, de família rica e produtora. Um homem que personaliza bem o que aconteceu com os produtores de algodão da região.
“Quando essas tropas independentistas chegam no Itapecuru, os grandes proprietários ficam temerosos que os escravizados pudessem atribuir um outro sentido à ideia de independência, de que isso significasse abolição e liberdade”, explica Cheche. E adivinha quem foi um desses proprietários? Ele mesmo: José Burgos. “Eles aderem à independência. Por isso, não há conflitos, como os que aconteceram mais perto da divisa com o Piauí”, diz o professor.
O historiador opina que, quando essas tropas chegaram à região, a elite que ocupava cargos e patentes, e jamais haviam manifestado qualquer desejo de ser Brasil, aderem à Independência como uma forma de amenizar qualquer impacto de transformação. “E a partir do momento em que isso acontece, acabou [para Portugal]”, diz. Afinal, as tropas engrossaram com essas novas adesões dos fazendeiros e cercam a capital São Luís em junho de 1823.
“Esse cerco significa que o algodão não chega para ser exportado, nem o arroz, nem a carne fresca que antes vinha do Piauí. Então você tem um último mês bastante tenso em que a questão da independência vai se tornando eminente”, aponta.
Caso o leitor esteja se perguntando se ainda não haveria uma saída via marítima para os portugueses, a resposta é sim: os líderes portugueses ainda esperavam reforços no porto. Porém, os únicos que chegaram foram os perdedores da Guerra na Bahia. A chegada aconteceu dia 14 de julho, como explica o professor Cheche: “Isso no máximo acaba por adiar a decisão das autoridades daqui de aderir à Independência”.
Aqui também entra a participação do almirante Cochrane, que agiu na Bahia poucas semanas antes. Ele desembarcou em São Luís em 26 de julho. “O que ele basicamente faz é estabelecer uma autoridade imperial porque as tropas do Piauí e do Ceará são tropas sem muito comando. Então, a autoridade dele quando chega é começar a negociar a rendição [portuguesa], o que acaba sendo central para instituir essa nova ordem a partir do 28 de julho”, explica o professor.
O objetivo, nessa questão, era mostrar que a independência estava consolidada. Mas Cochrane foi além, sendo muitas vezes visto como mais vilão do que herói. Segundo Cheche, o mercenário manda confiscar até mesmo o dinheiro de brasileiros que deviam para negociantes da praça de Lisboa, com o pensamento de “quem negocia com inimigo é inimigo”. Além disso, ao receber escravizados que se apresentam como voluntários para serem soldados em sua nau Dom Pedro I, ele os “reescraviza”.
E o Grão-Pará, onde fica nas Guerras da Independência do Brasil?
Bom, a situação por lá era muito parecida com o Maranhão. O Brigadeiro Moura tinha situação favorável em Belém, onde tinha meios de repressão, mas não no interior e solicitava recursos de Lisboa para enfrentar “elevado número de dissidências”, como mostra o autor Hélio Franchini Neto em sua tese de doutorado “Independência e Morte - Política e Guerra na Emancipação do Brasil (1821-1823)”.
Houve levantes, como na Ilha de Marajó, em 14 de abril de 1823. “Lá proclamaram, em 28 de maio de 1823, o apoio à causa do Rio de Janeiro. Era a primeira expressão dessa natureza na Província paraense. A reação da Junta foi o envio de força, que se bateu com os aproximadamente 200 rebeldes por mais de quatro horas. A vitória foi dos partidários de Lisboa, que aprisionaram os independentistas e os recolheram para Belém. Em 7 de junho de 1923, dezenas de prisioneiros foram enviados a Lisboa”, escreve o autor.
Ao todo, o militar historiador contemporâneo dos acontecimentos Francisco Adolfo de Varnhagen (1810-1878), o barão de Porto Seguro – mencionado nos trabalhos de Franchini Neto e do historiador José Honório Rodrigues (1913-1987) – os conflitos do processo que culminou com a incorporação do Pará ao Império do Brasil terminou com cerca de 1 mil mortos, antes da incorporação e em alguns tumultos posteriores.
Contudo, a província tinha forte dependência em relação ao Maranhão, como conta o professor da UEMA Marcelo Chece. E isso é refletido até mesmo na aceitação da independência. Poucos dias após Cochrane formalizar a adesão maranhense ao novo império brasileiro, o mercenário envia uma esquadra para o Pará, liderada pelo almirante John Pascoe Grenfell, desembarcando dia 10 de agosto de 1823.
A estratégia em Belém foi bem similar ao feito em São Luís: uma ameaça de bombardear a cidade se não houvesse a rendição, com reforços vindos de novos navios que ”estariam a caminho”. Desconfiado, o Brigadeiro Moura ainda tentaria um último levante de militares. Não deu certo. Ele foi preso e, em 15 de agosto, houve o juramento a D. Pedro.
Só faltava essa...
O Grão-Pará foi a penúltima província a se incorporar ao regime comandado pelo Rio de Janeiro. Restava ainda o atual Uruguai: a Província da Cisplatina.
O território tinha sido incorporado havia pouco tempo ao Reino de Portugal, Brasil e Algarves, mais precisamente em 1816, por D. João VI. Apesar da adesão ao território brasileiro, rapidamente se dissipou e buscou a própria independência, sendo outra das Guerras da Independência do Brasil. Mas isso merece um capítulo à parte, como veremos em uma reportagem específica sobre a Guerra da Cisplatina.
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