Ouça este conteúdo
A guerra sangrenta que marcou o regime militar tem episódios ainda nebulosos e que talvez nunca sejam esclarecidos. Este não é o caso da prisão e da morte de Rubens Paiva, em 1971.
Ainda não se sabe o que foi feito com o cadáver do ex-deputado. Mas é possível saber, para além de qualquer dúvida razoável, o que aconteceu com ele desde o momento em que foi retirado da sua casa no Leblon por militares da Aeronáutica, na manhã de 20 de janeiro.
O episódio ocupa um papel central na trama de "Ainda Estou Aqui", indicado a três categorias do Oscar, e foi descrito em detalhes por testemunhas diretas.
A história começa com uma carta interceptada e termina com um carro incendiado em circunstâncias misteriosas.
Filho de família rica, membro do Partido Socialista Brasileiro
Rubens Beyrodt Paiva nasceu em Santos (SP), em dezembro de 1929. Ele vinha de uma uma família rica: o pai era empresário e ganhou dinheiro com as exportações de produtos agrícolas brasileiros. O futuro deputado federal se formou em Engenharia na Universidade Mackenzie, em São Paulo, e teve cinco filhos com Eunice Facciolla Paiva — que é interpretada por Fernanda Torres em "Ainda Estou Aqui". Os dois haviam se conhecido no colégio.
Ainda no Mackenzie, Rubens Paiva se envolveu no movimento estudantil. Assim como o pai, ele se filiou ao Partido Socialista Brasileiro, que — ao contrário do Partido Comunista — buscava a implementação do socialismo de forma gradual, usando a estrutura institucional da democracia.
Em 1955, Rubens Paiva abriu a S/A Paiva Construtora. Com engenheiro, ele integrou um dos times que apresentaram projetos para o plano urbanístico de Brasília. Embora não tenham obtido sucesso (a equipe de Lúcio Costa seria a escolhida), Rubens Paiva e seus colegas participaram da construção de nove viadutos na capital e de empreendimentos como o Hotel Vila Rica, em São Paulo.
Paiva sacou arma para agentes do DOPS
Rubens Paiva foi eleito deputado federal pelo PTB em 1962, na primeira experiência como candidato. Ele deixara o PSB para aumentar suas chances de sucesso eleitoral.
Aos 34 anos, o jovem parlamentar tomou posse no ano seguinte. Seu momento de maior destaque foi a participação na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apurava o envio de recursos do governo americano para desestabilizar o governo João Goulart por meio do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad).
Rubens Paiva tinha temperamento forte.
Em fevereiro de 1964, ele foi uma das duas mil pessoas presentes ao lançamento da Frente de Mobilização Popular, em São Paulo. O grupo pretendia reunir forças de esquerda para resistir ao que chamava de “ameaça golpista”.
Durante um tumulto ao fim do evento agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) levaram preso um professor da USP e sua mulher. Rubens Paiva subiu no capô da viatura para impedir que eles fossem levados. “Sou deputado federal! Soltem o casal que está nessa perua! Essa prisão é ilegal!”, ele gritava.
Os militares hesitaram e fizeram contato com os superiores pelo rádio. Eles receberam ordens de tirar Rubens Paiva do capô “a tapa”. Mas o deputado sacou o revólver que carregava, o que colocou fim à situação: sem querer criar um incidente sangrento com uma autoridade da República, os militares libertaram o casal.
A história é contada pelo premiado biógrafo Jason Tércio, em um livro publicado pela Câmara dos Deputados em 2014.
Mandato cassado em 1964
O mandato do deputado socialista durou pouco. Logo depois que os militares assumiram o poder, em abril de 1964, ele foi cassado e se exilou na Iugoslávia até novembro. Em 1966, mudou-se de São Paulo para o Rio de Janeiro. Lá, ele foi diretor da Machado da Costa, uma grande empresa de engenharia. Quatro anos depois, passou a trabalhar para a Geobrás Engenharia e Fundações.
Não há registro de que Rubens Paiva tenha feito parte de grupos armados. Assim como Fernando Henrique Cardoso, de quem era amigo, o ex-deputado acreditava que o conflito direto era uma estratégia infrutífera.
Ao mesmo tempo, é verdade que Paiva prestou apoio, inclusive financeiro, para que Helena Bocayuva, integrante do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de outubro), deixasse o Brasil rumo ao Uruguai.
O MR-8 participou do sequestro do embaixador americano no Brasil, Charles Elbrick, em 1969.
Jason Tércio conta, sucintamente, outro favor de Rubens Paiva ao grupo: “Um dia ele entregou a Marco Antônio um caixote com armas, para que desse um sumiço ou fizesse o que considerasse mais adequado”.
O interlocutor era Marco Antônio Costa, ex-deputado federal e integrante do Partido Comunista Brasileiro. “O PCB era contra a guerrilha, e Marco Antônio repassou o caixote a seus colegas de clandestinidade, que o jogaram no mar pelo penhasco da avenida Niemeyer”, afirma Tércio.
Carta interceptada levou militares a buscarem Rubens Paiva
O episódio da prisão de Rubens Paiva está indiretamente ligado ao sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher pela VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), em 1970.
O casal Luiz e Jane Viveiros de Castro estava entre os 70 presos libertados em troca da soltura do diplomata. Eles rumaram para o exílio no Chile.
Em janeiro do ano seguinte, a mãe de Luiz, Cecília Viveiros de Castro, e a irmã de Jane, Marilene Corona Franco, foram visitar o casal. Elas voltaram juntas ao Brasil em 20 de janeiro de 1970. Escondidas sob a roupa, a dupla trazia consigo cartas dos exilados a familiares e amigos em território brasileiro.
As duas foram abordadas por militares assim que desembarcaram no aeroporto. Não demorou para que as cartas fossem encontradas.
O informe do SNI (Serviço Nacional de Inteligência), produzido à época, registrou que “ao ser interrogada, Marilene declarou que as cartas que conduzia deveriam ser entregues no Rio, a um Sr. por nome RUBENS, que as faria chegar aos destinatários”. Ligado ao MR-8, Carlos Alberto Muniz seria o destinatário final da carta.
Na denúncia que ofereceu contra os acusados de matar Rubens Paiva, em 2014, o Ministério Público Federal afirma que o material incluía "papéis com conteúdo político".
Não há consenso sobre o conteúdo da carta. Uma das versões afirma que o conteúdo tinha material para ser usado em publicações (clandestinas) do MR-8. Outra, defendida pelo historiador Luís Mir, de que havia “documentos” para o grupo guerrilheiro. Ao mesmo tempo, Mir afirma que a decisão de usar Paiva como intermediário da correspondência foi tomada por Helena Bocayuva e Luiz Viveiros de Castro “sem consulta a outros responsáveis da organização”.
Presa, Marilene foi obrigada a ligar para Rubens Paiva e avisar sobre a carta. A conversa estava sendo gravada pelos policiais, que buscavam confirmar se o ex-deputado estava em casa.
Ele estava.
A prisão
Rubens havia voltado da praia e jogava gamão com Eunice quando militares da Aeronáutica bateram à sua porta. Marcelo Rubens Paiva, filho mais novo do ex-deputado e futuro escritor, ainda dormia.
Sem que o ex-deputado resistisse, os agentes o conduziram a uma unidade da Aeronáutica — a III Zona Aérea (atual Comar 3), ao lado do aeroporto Santos Dumont. Cecília e Marilene já estavam presas na mesma unidade. Anos depois, elas afirmariam ter ouvido Rubens Paiva ser espancado numa sala.
Ele também foi colocado frente a frente com Marilene para uma acareação. Segundo ela, só então ela associou o nome de Rubens Paiva a um rosto: por acaso, ela era professora do Colégio Sion, onde os filhos dele estudavam. A entrega da carta a ele seria um mero favor, comum entre familiares e amigos de militantes de esquerda.
Da unidade da Aeronáutica, Rubens Paiva foi levado (assim como Cecília e Marilene) para DOI-CODI. No carro, Marilene disse ter visto Rubens Paiva com hematomas no rosto e na camisa suja de sangue. No DOI-CODI, elas ouviram mais berros do ex-deputado. Paiva dizia que não tinha contato com Marilene e não sabia sobre cartas vindas do Chile. Ele também era interrogado sobre Jane e Luiz Rodolfo (os exilados que haviam sido libertados após o sequestro do embaixador suíço), e afirmava que não os conhecia.
Outro preso, Edson de Medeiros, confirmou que observou Rubens Paiva ser levado para ser torturado.
Anos depois, o coronel Armando Avólio Filho também admitiu que, depois de ter visto o que considerava uma violência excessiva no tratamento dado a Rubens Paiva, procurou o seu superior, José Antônio Nogueira Belham, para alertá-lo sobre a situação e o risco de que o ex-deputado morresse.
Médico constatou que Rubens Paiva estava em estado grave na prisão
Chamado às pressas na madrugada de 21 de janeiro, um médico do Exército, Amílcar Lobo, encontrou Rubens Paiva em uma situação crítica. Ele se queixava de dores no abdômen e tinha sinais de hemorragia interna — talvez por ruptura hepática. As marcas de lesão estavam por todo o corpo. O médico disse que, se não fosse levado ao hospital, o preso (que ele não reconheceu) tinha poucas chances de sobreviver. O coronel Ney Fernandes desprezou o conselho.
Quando o mesmo médico chegou no expediente, às 7h30 do dia seguinte, foi informado de que o preso havia morrido.
Em um depoimento dado voluntariamente à Polícia Federal em 1986, Lobo confirmou a história e usou a palavra "tortura" sem ressalvas.
Em 25 de janeiro de 1971, ainda sem saber da morte, o advogado Lino Machado pediu ao Superior Tribunal Militar um habeas corpus em favor de Paiva.
Depois de ficar sob o poder dos militares na própria casa durante algumas horas, Eunice Paiva foi detida e permaneceu 12 dias atrás das grades. A filha Eliana, de 15 anos, passou um dia presa.
Elas não sabiam o que havia acontecido com o pai.
A versão da fuga
No dia seguinte à morte de Rubens Paiva, um capitão do Exército escreveu um ofício ao chefe do DOI-CODI com um relato surpreendente: o ex-deputado na verdade havia sido resgatado por um grupo de guerrilheiros que abrira fogo contra uma viatura. A história dizia que, quando o ataque ocorreu, Paiva estava sendo levado para mostrar a casa de alguém que havia trazido cartas dos exilados no Chile.
A libertação de Rubens Paiva à força teria acontecido de madrugada, em uma estrada sinuosa no Alto da Boa Vista.
Numa atitude incomum, os militares divulgaram um comunicado sobre o incidente e chamaram a imprensa para fotografar o carro e dar visibilidade a um episódio que, do ponto de vista das Forças Armadas, poderia ser interpretado como uma humilhação. Segundo a versão apresentada, um dos tiros disparado pelos terroristas atingiu o tanque de gasolina e incendiou a viatura.
O informe original, assinado pelo militar Raymundo Ronaldo Campos, dizia: “Na pista de descida ao Alto da Boa Vista, lado da Usina, o Volks da equipe do DOI foi interceptado por dois Volks, um branco e outro verde ou azul-claro, que violentamente contornaram a frente do carro do DOI disparando armas de fogo.“
O relato também trazia detalhes da suposta fuga do ex-deputado. “O Sr Rubem (sic) saiu pela porta esquerda, atravessou a rua refugiando-se atrás de um poste enquanto elementos desconhecidos, provavelmente terroristas, pelo tipo de ação desencadeada, disparavam de atrás dos carros sobre o nosso carro, ele corria para dentro de um dos carros os quais logo partiam em alta velocidade”.
De forma geral, a imprensa reproduziu a versão oficial sem colocá-la em xeque.
No Jornal do Brasil, a chamada era “Terroristas metralham automóvel da polícia e resgatam subversivo”. “Terror resgatou preso em operação-comando”, anunciava a capa da Tribuna da Imprensa.
A capa de O Globo trazia uma foto do Fusca incinerado e a manchete "Terror liberta subversivo de um carro dos federais".
A história também foi repetida na tribuna da Câmara dos Deputados pelo deputado Nina Ribeiro, da Arena.
“A versão que se tem, veraz, do acontecido, foi a de uma colisão com o automóvel em que se encontrava Rubens Paiva. Por que houve o ataque a essa viatura? Por que desapareceu ele? É algo que V.Exa. não pode exigir do governo, no momento. O governo não é um ser ciclópico, onímodo, onipresente, capaz de mergulhar até nos desvãos, nos porões sombrios da subversão", ele disse. Ribeiro se dirigia ao colega Marcos Freire, do MDB, que mencionara a prisão de Paiva.
A versão da fuga, sustentada pelo Exército no julgamento do habeas corpus no Superior Tribunal Militar, foi usada para que o pedido fosse negado. Se Rubens Paiva fugira, não havia preso a libertar.
Para Bolsonaro, Paiva foi morto por militantes de esquerda
A versão de que Rubens Paiva fugira (ou fora levado à força) por guerrilheiros permaneceu popular em certos grupos pró-regime militar.
Em 2012, o então deputado Jair Bolsonaro afirmou, em um discurso na Câmara, que Paiva havia sido morto pelo grupo de Carlos Lamarca. Mas, na interpretação de Bolsonaro, Paiva na verdade havia sido libertado pelos militares — e não retirado da viatura pelos terroristas.
“O grupo do Lamarca suspeitou que Rubens Paiva o havia denunciado. E esperaram o momento certo. Quando o Rubens Paiva foi detido pelo Exército, posto em liberdade, com toda a certeza, foi capturado e justiçado pelo bando do Lamarca e pelo bando da Esquerda, da VPR. E aí a culpa recai sobre as Forças Armadas”, discursou o futuro presidente da República.
De acordo com Bolsonaro, Lamarca tinha o apoio logístico do ex-deputado: “O Lamarca usava aquela região, indicada por Rubens Paiva, e bancado, financeiramente, por Rubens Paiva.”
Dois anos depois, Bolsonaro insistiu na tese e apresentou uma explicação mais detalhada: ele afirmou que Paiva havia cedido uma propriedade rural para Lamarca e seus comparsas se instalarem, e que foi morto para não contar o que sabia aos militares.
“Do topo da cidade de Eldorado Paulista, cidade bastante pequena, via-se a chácara de Rubens Paiva, a montante do Rio Ribeira de Iguape, Fazenda Palmital, área de guerrilha, área onde Lamarca mobilizou. E fornecida por quem? Está na cara: Rubens Paiva deu a área de guerrilha para Lamarca", afirmou Bolsonaro.
O deputado, então no PP, prosseguiu: “Interessava ao Grupo VPR, de Dilma Rousseff, executar Rubens Paiva. Ele, que seria o delator, deveria ser justiçado.”
Coronel admite farsa para ocultar morte de Rubens Paiva
De fato, o pai de Rubens Paiva tinha 5 mil alqueires de terra em Eldorado Paulista ainda em 1941. Mas o uso da área para atividade de guerrilha não aparece nos relatórios das Forças Armadas sobre a prisão do ex-deputado.
A versão apresentada por Bolsonaro, que foi criado em Eldorado Paulista e morava na cidade quando o grupo de Lamarca passou por lá, não parece ser referendada pelos militares que investigaram Rubens Paiva.
O informe do SNI, datado de 25 de janeiro, registra a prisão de Rubens Paiva e fala das cartas vindas do Chile, mas não menciona a suposta fuga.
A reviravolta definitiva na versão oficial aconteceu apenas em novembro de 2013. Em depoimento à Comissão da Verdade do Estado do Rio de Janeiro, o coronel reformado Raymundo Ronaldo Campos admitiu que a cena foi montada de forma intencional, depois da morte de Rubens Paiva.
Ele contou que ele e outros dois militares foram de viatura até o Alto da Boa Vista. Então, eles dispararam contra o carro e atearam fogo no veículo. A ordem para a encenação teria partido do major Francisco Demiurgo Santos Cardoso com o objetivo acobertar a morte de Rubens Paiva.
Destino do corpo continua desconhecido
Ao longo dos anos, surgiram diferentes versões sobre o destino do corpo de Rubens Paiva: lançado ao mar, jogado em um rio, sepultado como indigente no Cemitério do Caju, enterrado em uma área de mata no Alto da Boa Vista.
A ausência de um cadáver atrasou a emissão do atestado de óbito, que só foi emitido em 1996. Na última quinta-feira (23), o documento foi alterado para incluir a informação de que ele foi morto violentamente pelo Estado brasileiro.
Em 2014, o Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra cinco militares acusados de envolvimento no assassinato do ex-deputado: José Antônio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Raymundo Ronaldo Campos, Jurandyr Ochsendorf e Souza e Jacy Ochsendorf e Souza.
Outros quatro militares que já haviam morrido à época da denúncia também são citados como responsáveis pela morte: Antonio Fernando Hughes de Carvalho (que teria sido o principal torturador de Rubens Paiva), Freddie Perdigão Pereira, Ney Fernandes Antunes e João Paulo Burnier.
Depois de idas e vindas, o processo tramita atualmente no STF (Supremo Tribunal Federal).