Laurentino Gomes está confuso. O que é compreensível. Escravidão, seu livro mais recente e best-seller antes mesmo do lançamento, trata de uma das mais dolorosas feridas históricas da história do Brasil. Ou melhor, da história mundial. E, em tempos de redes sociais, de políticas identitárias, de guerra cultural e mazelas do mesmo calibre, escrever uma trilogia abrangente sobre a escravidão africana é como se lambuzar no mel cercado por abelhas furiosas.
Para quem leu os agradáveis e divertidos 1808, 1822 e 1889, Escravidão é uma surpresa estranha. O tom leve e quase debochado que marca os primeiros livros dá lugar a um tom soturno e receoso. Já na introdução, tem-se a impressão de que Gomes está pedindo desculpas por ser ele, um branco, a explorar (sem trocadilho) um tema tão sensível. O jornalista e (por que não?) historiador nega o receio, embora assuma que decidiu adiantar suas explicações a quaisquer questionamentos.
Ao longo do livro, Laurentino Gomes procura fazer um relato desapaixonado do primeiro século da escravidão africana, se desviando das controvérsias maiores e pulando sobre os obstáculos criados pelo revisionismo histórico. Fiel às fontes primárias a que teve acesso, ele deixa claro, por exemplo, que os portugueses temiam adentrar o continente africano, ao menos nesses primeiros anos, restringindo-se a receber escravos de atravessadores negros. Mas na entrevista abaixo ele afirma que esse fato histórico está sendo usado de forma racista.
Mesmo dizendo que a escravidão ocorreu porque era uma consequência lógica de um período que desconhecia o conceito de mão de obra assalariada e mesmo negando qualquer análise anacrônica dessa prática que hoje todas as pessoas em sã consciência consideram abjeta, Gomes defende pautas controversas, associadas ao ressentimento histórico, como cotas raciais e, nas palavras dele, “políticas públicas que ofereçam oportunidades iguais a essa população afrodescendente brasileira”.
A despeito desse apego às pautas atuais, Escravidão lança luz sobre alguns fatos desconhecidos da maioria do público que recentemente lotou a Bienal do Rio de Janeiro para pegar o autógrafo do autor. Como, por exemplo, o fato de a escravidão ter estado sempre presente na história da Humanidade e de ter vitimado, ao longo dos séculos, seres humanos de todas as cores. Inclusive os eslavos brancos de olhos azuis, cuja etnia serve de base para a palavra “escravo” em várias línguas.
Fugindo do confronto e tentando expressar uma visão otimista mesmo com todo o ruído que cerca o tema sobre o qual se propôs a escrever, Laurentino Gomes deu a seguinte entrevista à Gazeta do Povo:
Na introdução ao seu livro, notei que o senhor expressa certo receio por ser um homem banco escrevendo sobre um assunto dos negros. Você de alguma forma se sentiu intimidado?
Não. Ao pesquisar e escrever sobre assunto, percebi claramente que este é um terreno minado. Política e ideologicamente. É um território que tem “donos”, tanto à direita quanto à esquerda. E percebi que provavelmente seria questionado por esses detentores de territórios, do chamado espaço de fala. E, assim, não há nada de errado nisso. É correto que as pessoas reivindiquem espaço de fala e procurem defender narrativa que esteja de acordo com sua visão. Isso é normal em qualquer democracia do mundo. Respeito, entendo, mas decidi adiantar minhas explicações antes de ser questionado. E foi o que eu fiz. Eu não fiz isso como uma atitude de defesa prévia, que não era o caso, e sim em respeito às várias interpretações, narrativas que envolvem o problema. E a acolhida a essa minha atitude tem sido muito boa. Todos os agentes entenderam meu propósito e respeitaram minha atitude de fala ou de escrita. O resultado tem sido uma conversa muito madura.
Isso é surpreendente. Porque, quando li essa introdução nesse tom, comentei que os ataques viriam de qualquer jeito, “pedindo desculpas” ou não.
Mas o intuito não era pedir desculpas. A ideia era reconhecer que existem diferentes interpretações e me enquadrar nesse espaço. Era me inserir na questão em vez de pedir licença por estar invadindo um território que eu julgava que não fosse meu.
Mas é um território bastante hostil, né? Agora mesmo os militantes estão reclamando que o espetáculo A Cor Púrpura, que fala da segregação racial nos Estados Unidos, é dirigido por um branco...
Mas acho que, assim, no Brasil de hoje, se você procurar confronto vai encontrar confronto. E tem gente que estimula o confronto para parecer polêmico, para atrair mais audiência, mais leitores. Eu fujo disso. Ao contrário. Eu quero é entendimento. Quero diálogo. E acho que o livro chega com esse propósito e felizmente está sendo reconhecido assim.
Outra escolha editorial que me intrigou foram as notas do Alberto da Costa e Silva. Houve uma preocupação em expor as notas de rodapé para dar certo respaldo acadêmico ao livro?
Não porque não é novidade. Alberto da Costa e Silva já tinha feito a correção do meu livro 1822, lá em 2010. No 1822 eu incorporei as observações dele na forma de correção e revisão dentro do meu próprio texto. No caso do Escravidão, a contribuição dele foi tão diferenciada que achei que, além de incorporar as correções, decidi botar as notas de rodapé porque entendi que isso daria um valor extra ao livro, pelo fato de ele ser um africanista.
Não quero estimular o confronto, mas existe certo embate entre o seu trabalho e o trabalho acadêmico dos historiadores.
Você sabe que não? Eu acho que isso é coisa de jornalista. Isso tem sido perguntado para mim há 12 anos. Desde que lancei o 1808 as pessoas ficam perguntando “o que os historiadores acham do seu trabalho?” Eu não sei. O que eu sei é que existe uma legião de professores de história no Brasil que são muito gratos ao meu trabalho. Agora, se tem um ou outro que não gosta do meu trabalho, isso é natural na produção literária. Você não escreve um livro e fica imune à crítica. Pelo contrário, a produção intelectual é por natureza permeável à crítica. E é bom que seja. Livro que não presta, que não tem importância, ninguém critica.
Seu livro reafirma algumas coisas, como o genocídio indígena perpetrado pelos portugueses, que foram contestadas pelo seu colega Leandro Narloch no Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil...
Eu não li o Leandro Narloch, eu não vou contestar o Leandro Narloch. Eu escrevo o que eu pesquisei. Se o Narloch escreveu de outra forma, aí tem que perguntar para ele. Não sou eu que vou confrontar o Narloch.
Mudando de assunto, no seu livro o senhor deixa claro que a expansão do Islã se apoiou na escravidão. Mas por que só o catolicismo parece ser cobrado por essa ferida histórica?
Escravidão sempre houve. Onde houve ser humano, houve escravidão. Na China, na Índia, na Europa, África, América. Acho que o Catolicismo é cobrado no Ocidente, porque existe uma contradição filosófica, doutrinária entre o Evangelho da misericórdia, do amor, do perdão e a participação da igreja no tráfico de escravos. E essa contradição, pelo que eu sei, não está presente no Islã. E o Ocidente não é muçulmano, por isso não há essa cobrança.
Por que é tão difícil afirmar categoricamente que os negros foram escravizados por negros e traficados por brancos?
Isso é um argumento racista que está sendo usado hoje. O de que os negros foram culpados pela própria escravidão. É um argumento que está nas redes sociais, entre as altas autoridades da República. E tem o propósito muito claro de culpar os afrodescendentes pela escravidão e combater políticas públicas destinadas a enfrentar o legado da escravidão no Brasil. O que mostro no meu livro é que a escravidão existia, sim, na África. Não há novidade alguma nisso. O problema é o uso político desse argumento hoje.
O capítulo 10 do livro, intitulado Cicatriz, parece ser um acerto de contas com as redes sociais. Qual você imagina que será o papel das redes sociais na historiografia daqui para frente?
Acho que as redes sociais não vão ter relevância. Elas servem para chamar a atenção para os temas. Que bom que as pessoas estão até brigando em torno de temas sensíveis, como violência, desigualdade social, a questão ambiental... Isso é bom, um sinal muito saudável da democracia brasileira. Mas não acho as redes sociais ditam tendência na historiografia porque a história é construída tipicamente no meio acadêmico, num processo muito disciplinado, metódico de investigação e validação do conhecimento.
O senhor não acha que as redes sociais têm força para, no futuro, impor uma narrativa?
Acho que é o contrário. A narrativa era imposta no passado, quando você não tinha as redes sociais com um poder tão grande de disseminar informações e promover o debate. Quando você pega o Estado Novo, Getúlio Vargas, era um governo autoritário impondo pontos de vista sem que houvesse contestação. No Império também foi assim. No Regime Militar idem. Mas acho que num ambiente de rede social é muito difícil uma narrativa se impor, porque ela é imediatamente contestada. A tendência é tornar a historiografia algo mais ponderada, mais centrada, cientificamente mais bem alicerçada. Até para se defender de fake news, da propagação de narrativas falsas.
Levando em consideração a mentalidade da época, a escravidão poderia não ter acontecido?
Acho que não. A escravidão é parte do processo de expansão europeia nos séculos XV e XVI. Primeiro é importante levar em conta o seguinte: a escravidão está no código genético do ser humano. Onde houve história humana houve escravidão. Aí os portugueses chegam na América, encontram um território enorme para ser ocupado, até porque eles dizimaram a população nativa. Os ocupantes originais foram mortos em guerras e com doenças. Eles tinham objetivos de produzir os primeiros grandes bens de consumo de massa, como ao cana, tabaco, algodão e café, além das pedras preciosas. Os indígenas morreram aos milhões e também não havia mão de obra europeia suficiente. Então a solução, do ponto de vista dos colonizadores, foi buscar mão de obra na África, onde já existia um mercado organizado de fornecimento de mão de obra cativa. Então primeiro eles tentaram escravizar os indígenas, não deu certo, e depois recorreram à mão de obra escrava. Até porque na época não havia uma economia organizada de mao de obra assalariada. Em nenhum lugar do mundo, nem na Europa. Claro que, se você olhar do ponto de vista de hoje, claro que podia assalariar todo mundo. Mas essa noção econômica não existia na época. A escravidão foi um processo natural, consequência óbvia e previsível da ocupação de novos territórios pelos europeus.
Não foi uma escolha. Porque hoje muita gente tem a impressão de que foi uma opção até racista, sendo que o racismo é um conceito posterior...
Não, não. Depois é que surgiu uma ideologia racista para justificar a escravidão africana. Isso foi uma consequência do processo de exploração da mão de obra africana. Aí é que surgiram teorias como a Maldição de Cam, que dizia que um dos descendentes de Noé teria sido amaldiçoado a se tornar escravo de seus irmãos e teria ido para a África e se tornado negro. Então haveria um designo divino. Mas isso é posterior. É interessante observar que no começo a escravidão era uma consequência das Cruzadas. Tanto que houve várias bulas papais autorizando os portugueses a ocupar o território e escravizar seus ocupantes. Num primeiro momento, não havia distinção pele branca e negra. No segundo capítulo do livro eu falo que a primeira carga de escravos negociados em Portugal tinha negros e brancos. Aliás, a maioria era de brancos. Só depois é que nasce o racismo, a ideia de que os negros eram candidatos naturais à escravidão.
O senhor acredita que uma pacificação racial é possível no Brasil?
Acho que o que existe hoje é um ambiente de confrontação. O que é natural também. Não me assusta. Afinal, o Brasil produziu muitos mitos a respeito de sua história negra. Mito de que tivemos uma escravidão mais benévola, mais boazinha, mais patriarcal. E o resultado seria uma grande democracia racial. Há pouco você falava de construção de narrativas. Pois essa narrativa é típica de uma época em que o Brasil era um mar de analfabetos, de não-cidadãos. Foi essa a narrativa que se impôs. Agora, na época da democracia, das redes sociais, de uma troca muito rápida e intensa de informações, esses mitos estão sendo confrontados. E o resultado é um clima de enfrentamento. Porque de fato se trata de derrubar mitos longamente construídos e estabelecidos até na psique do brasileiro. Isso está entranhado na nossa forma de pensar, essa ideia de que somos um grande país miscigenado e democrático do ponto de vista racial. Mas continuo sendo uma pessoa otimista. Acho que no futuro teremos uma visão mais madura, crítica e analítica desse problema. Não acho que caminhamos para um clima de confrontação geral como existe nos Estados Unidos. Aqui o confronto que existe vai nos levar a um novo patamar de consciência.
Esse seu otimismo todo se baseia mais numa compensação histórica, no pagamento de uma dívida histórica ou num perdão histórico?
Temos que fazer um grande ajuste de contas. Gosto da sua expressão perdão. Uma reconciliação. Não diria perdão, que é uma coisa assim meio patriarcal. Gosto da ideia de reconciliação. Mas não é apenas um gesto político, todo mundo se dar mão, aquela coisa. A reconciliação tem que vir por meio de políticas públicas que ofereçam oportunidades iguais a essa população afrodescendente brasileira. Por isso defendo cotas, mas não como pagamento de dívida histórica. Acho que tratar isso como dívida histórica atrai preconceito e resistência. Porque o Brasil é um mar de excluídos. Tratar isso como dívida histórica permite que grupos reacionários manipulem uma parte da população que também se julga credora para resistir a cotas e outras políticas públicas que favoreçam a população afrodescendente.
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