A Guerra do Iraque foi o evento que despertou em mim a consciência política na minha adolescência. Lembro-me de estar na aula de biologia quando o professor nos deixou debater a invasão iminente dos Estados Unidos ao país do Oriente Médio. Eu me incomodava com as justificativas dadas para a guerra, mas tinha uma séria desvantagem: quase todo mundo na sala sentia que a motivação do presidente George W. Bush era sólida. Assisti ao caos subsequente na tela da televisão e compareci a marchas enormes contra a guerra, gritando a plenos pulmões que o conflito não fazia sentido. É provável que eu nunca tenha me sentido tão politicamente impotente na vida.
Nos anos seguintes, a guerra e suas consequências lançaram uma grande sombra no meu pensamento. Fiz parte de uma geração de jovens que viram a política externa americana no seu pior momento — com uma guerra desnecessária no Iraque e uma guerra mal administrada no Afeganistão.
Uma pesquisa do Conselho de Assuntos Públicos de Chicago publicada em 2018 revela a mudança entre as gerações. O levantamento descobriu que 72% dos boomers [nascidos entre 1946 e 1964] acreditam que foi melhor os EUA terem assumido um papel ativo no mundo, mas só 51% dos millenials [nascidos entre 1981 e 1996] concordaram com isso. Essas atitudes podem refletir uma opinião mais negativa dos EUA em geral. Quando perguntados se os EUA são “o melhor país do mundo” ou se “não são melhores que outras nações”, 72% dos boomers disseram que eram o melhor país do mundo, enquanto só 50% dos millenials concordaram. Essa cisão foi encontrada em todas as grandes áreas abordadas pela pesquisa: os millenials apoiavam bem menos a liderança americana global.
À medida que amadurecia, mudei a forma de pensar sobre o assunto. Percebi que olhar somente para os pecados de um país era uma forma ruim de avaliar a história dele. Eu precisava analisar o panorama mais amplo. Qual é a aparência do mundo sem a ordem liderada pelos americanos?
O conflito na Ucrânia abre uma janela para esse mundo. A tecnologia moderna permitiu que testemunhássemos a invasão da Rússia. Graças a ucranianos com celulares, qualquer pessoa com acesso à Internet pode ver qual é a cara de um ato bélico de agressão, .
É compreensível que muitos americanos estejam perplexos com a Rússia atacando o país vizinho, ataque que representa uma escalada do conflito que começou em 2014, com a anexação da Crimeia e uma guerra civil na Ucrânia oriental instigada pela Rússia. Por que Putin começou essa guerra?
A maioria dos nossos líderes políticos aceitaram uma explicação simples: a liderança russa vê no controle da Ucrânia um objetivo de interesse nacional. A visão dominante em política externa e as ideologias de extrema-esquerda adotadas por muitos millenials concordam com isso. Ambas defendem que a Rússia vê a Ucrânia como um tampão contra o Ocidente e que a primeira deseja controlar politicamente a última. Ao falhar nisso por outros meios, a Rússia está disposta a usar o poderio militar para atingir os seus objetivos.
A diferença entre a visão dominante e as opiniões de extrema-esquerda diz respeito à questão de quem é o culpado. A maior parte da visão dominante americana em política externa culpa a própria Rússia, enquanto alguns intelectuais de esquerda têm uma opinião diferente. Por exemplo, Freddie deBoer, um famoso blogueiro marxista, defende que a guerra é ao menos em parte uma “consequência do imperialismo americano”.
Ele diz que “a Rússia não tem vontade nenhuma de ter soldados americanos estacionados ao lado (...) Deixar a Ucrânia fazer parte da OTAN poderia resultar em soldados americanos posicionados bem à porta da Rússia”. Ele encerra seu texto com uma citação do Ministério das Relações Exteriores chinês: “Quando os EUA estimularam cinco ondas de expansão da OTAN para o leste até à porta da Rússia e empregaram armas avançadas de estratégia ofensiva que violam os seus compromissos com a Rússia, pensaram alguma vez nas consequências de encurralar um país grande?”
À parte a questão de esse argumento sobre provocar a Rússia ter mérito ou não, é na seção de comentários abaixo do artigo que deBoer revela sua visão de mundo mais ampla. “Os Estados Unidos são a maior fonte de maldade e destruição desde a queda do Terceiro Reich”, disse ele. “Pergunte aos iraquianos, iranianos, congoleses, hondurenhos, vietnamitas, laosianos, cambojanos, nicaraguenses”. Quando um comentarista retrucou, ele reiterou essa opinião: “Esta é, de fato, talvez minha crença política mais fundamental, e sempre foi”.
Mas e se perguntássemos ao mundo o que ele pensa dos Estados Unidos? O caso é que muitas pessoas ligadas aos institutos de pesquisa já fizeram isso. A Pew Research perguntou a 25 países se eles preferem os EUA ou a China como o maior poder do mundo. Para esses países, uma “média de 63% dizem que preferem um mundo onde os EUA são a maior potência, enquanto só 19% defendem um mundo com a liderança da China”. E não é o caso que os pesquisadores estivessem perguntando só a países com histórico de relações amigáveis com os Estados Unidos.
No Japão, onde foram jogadas (pelos Estados Unidos) as únicas bombas atômicas já usadas em período de guerra, 81% preferiam os EUA à China. Porém, evidentemente, o Japão tem uma animosidade histórica com relação à China. E quanto ao Brasil, então, onde no auge da Guerra Fria, os Estados Unidos ajudaram num golpe de Estado em 1964? Até lá, 51% dos respondentes disseram que preferem os EUA; só 28% preferiam a China. Quase o dobro de indonésios, que sofreram abusos a seus direitos humanos sob o regime do ditador Suharto, apoiado pelos EUA, preferiam os Estados Unidos à China. Na África do Sul, onde governos americanos já apoiaram o governo do Apartheid, os Estados Unidos também são preferíveis à China.
Sim, os Estados Unidos são profundamente impopulares no Iraque, por motivos compreensíveis. Aquela guerra talvez tenha sido o pior erro dos EUA no século XXI. Mas a Pew também descobriu que a maioria das pessoas El Salvador, Nicarágua e Chile — todos locais de intervenções apoiadas pelos EUA nos anos 1970 e 1980 — agora tem opiniões positivas sobre os Estados Unidos. Três quartos dos vietnamitas, que antes lutaram para expulsar soldados americanos do país, tinham opiniões positivas sobre os Estados Unidos, de acordo com uma pesquisa de 2014.
Seria justo perguntar se estou selecionando um espantalho ao destacar deBoer. Afinal, praticamente o Congresso inteiro, do Bernie Sanders na esquerda a Lindsey Graham na direita, consideram Vladimir Putin o maior responsável pela carnificina na Ucrânia. Mas uma das principais consequências da recusa da intelligentsia progressista em aceitar a ideia de que o poder americano pode ser uma força para o bem é que cede espaço a proponentes de outras ideologias.
Por décadas, os progressistas basicamente não tiveram nenhuma política externa própria porque não acreditam na possibilidade de usar o poder americano para o bem fora do país. Por essa razão, as crenças de um político democrata médio a respeito da política externa tipicamente ficam em algum lugar entre a visão dominante centrista e a da direita. A esquerda simplesmente não é representada, e isso é lamentável, pois de outra forma ela poderia ter algo a acrescentar aos debates de política externa.
Os progressistas muitas vezes têm razão ao defender que os Estados Unidos são rápidos demais no uso do poderio militar ou propensos demais a fazer vista grossa para abusos cometidos por governos amigos de Washington. Mas devem resistir à tentação de serem meramente reacionários — defendendo que os Estados Unidos sempre têm a culpa por tudo o que acontece de errado no mundo, e que sempre estaremos melhor não fazendo nada.
Progressistas culturais estão errados ao defender que as pessoas brancas são os únicos agentes da sociedade americana e que as minorias são meramente vítimas virtuosas. Da mesma forma, esquerdistas estão errados ao negar que outros países além dos Estados Unidos e seus aliados têm agência, e que às vezes os Estados Unidos devem confrontá-los quando se comportam de forma perigosa.
Este não é apenas um argumento teórico. Conforme o mundo paga o preço pela catástrofe humanitária e econômica criada pela invasão da Ucrânia pela Rússia, muitos voltaram a atenção à China, que até o momento se recusou a condenar a guerra. Historicamente, a China praticou uma política externa de lavar as mãos. Mas a China era até recentemente um país pobre. Assim como a sua economia cresceu, também cresceram as suas ambições.
Agora, como o “segundo maior exportador de peças” do mundo, a China começou a usar seu poder econômico para intimidar países mais fracos. Pequim recentemente disse ao Paraguai que ele deve desistir de reconhecer diplomaticamente Taiwan (um de só 15 países que ainda o fazem) se quisesse comprar doses da vacina para COVID-19 da China. A jogada da China acabou fracassando porque a Índia, Taiwan e o Departamento de Estado dos EUA intervieram para ajudar.
Por mais que tenha defeitos, os Estados Unidos ainda são um Estado democrático capaz de mudar para melhor. Mudanças da opinião pública americana ajudaram a voltar o Congresso contra o Apartheid da África do Sul, levando a sanções que ajudaram a lhe dar um fim. Na Rússia e na China, dissidentes antigoverno são acossados, presos ou até mortos.
Por causa de sua riqueza e poder, os Estados Unidos são um dos poucos países que conseguem enfrentar autocratas poderosos que mandam em Pequim e Moscou. Até mesmo democracias de maioria muçulmana recusaram-se a protestar contra a repressão brutal da China aos uigures muçulmanos da longínqua província ocidental de Xinjiang. O Paquistão, de onde emigraram os meus pais, chegou a defender publicamente a conduta da China.
Não é difícil entender o porquê: o Paquistão tem laços econômicos profundos com a China, o que provavelmente também explica por que ficou neutro no conflito Rússia-Ucrânia. Em um de seus momentos mais sinceros, o primeiro-ministro paquistanês Imran Khan confessou que estava chocado com o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi pelo governo saudita, mas acrescentou que o Paquistão não poderia se dar ao luxo de desagradar Riad, considerando as dificuldades econômicas de seu país. “Estamos desesperados neste momento”, disse ele.
O Paquistão não pode se dar ao luxo de enfrentar esses valentões — mas os Estados Unidos podem. Ultimamente, não me vejo tanto mais na retórica inflamada antiamericana das marchas contra a guerra das quais participei em 2003. Em vez disso, penso em um dos meus melhores amigos na universidade, um refugiado bósnio cuja família veio parar nos Estados Unidos durante a guerra local. Os Estados Unidos não só aceitaram de braços abertos milhares de refugiados como ele, mas também agiram em pareceria com seus aliados europeus para parar a limpeza étnica nos Bálcãs.
DeBoer e aqueles que pensam como ele se enganam. Os Estados Unidos não são uma fonte de maldade e destruição. Sim, cometemos erros, e caros, mas também continuamos sendo a melhor chance do mundo para a paz e segurança duradouras. Grande parte do mundo prefere uma ordem chefiada pelos americanos por uma boa razão. Eles viram e muitas vezes viveram as alternativas.
Zaid Jilani é jornalista e trabalhou para o Greater Good Science Center da Universidade da Califórnia.
©2022 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês
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