Apesar de reprovação no teste de gênero da Associação Internacional do Boxe (IBA, na sigla em inglês) no ano passado, as pugilistas Imane Khelif (Argélia) e Lin Yu-ting (Taiwan) tiveram autorização do Comitê Olímpico Internacional (COI) para lutar nas Olimpíadas de Paris e, até o momento, estão vencendo.
Nas oitavas de final, Khelif derrotou Angela Carini (Itália) em menos de um minuto, na quinta-feira (1º), na categoria até 66kg. Nesta sexta-feira (02), Yu-ting derrotou Sitora Turdibekova (Uzbequistão) nas oitavas de final da categoria até 57 kg. Yu-ting poderá lutar contra a brasileira Jucielen Cerqueira Romeu, se ambas vencerem até as semifinais.
A IBA foi descredenciada pelo COI, que preferiu colocar uma unidade própria para administrar as competições de boxe. Houve um desencontro de informações entre as duas entidades. O COI alegou que Khelif havia sido reprovada no ano passado por causa de níveis de testosterona. Em nota, a AIB afirmou que “as atletas não passaram por exame de testosterona, mas foram submetidas a um teste separado e reconhecido, em que os detalhes específicos continuam confidenciais”.
Rompendo o sigilo da própria organização, o presidente da IBA, Umar Kremlev, disse à imprensa russa que o teste “provou que [as atletas] têm cromossomos XY”, do sexo masculino.
Em uma coletiva de imprensa na sexta, o porta-voz do COI Mark Adams lançou dúvidas sobre o teste da IBA: “Não temos nenhum conhecimento do que foram esses testes. Foram improvisados de última hora, até onde sei, para mudar os resultados” durante o campeonato mundial de boxe.
“O que eu peço é que tentemos tirar a guerra cultural disso e lidemos de verdade com os problemas e pensemos a respeito dos indivíduos e das pessoas afetadas”, disse Adams. “Um estrago de verdade está sendo feito pela desinformação”.
Quais podem ser as condições médicas das atletas?
Sem mais informações diretas, e com base no fato de que a Argélia não permite mudar o sexo no passaporte — documento que o COI afirmou que é a origem da informação sobre o gênero das atletas —, muitos concluíram que elas não são transexuais e poderiam ser casos do fenômeno rotulado com “diferenças de desenvolvimento sexual” (conhecidas pela sigla DSD) ou, mais especificamente, seriam intersexo.
Há uma variedade de raridades do desenvolvimento sexual que são contempladas por esses rótulos, às vezes com controvérsias entre os próprios pesquisadores.
No ano 2000, Anne Fausto-Sterling, professora emérita de biologia e estudos de gênero da Universidade Brown (EUA), defendeu em um livro que os intersexos são pessoas “que desviam do ideal platônico” dos sexos. Com base nessa definição, ela estimou em 2% a prevalência deles na população.
O psicólogo e médico da família Leonard Sax respondeu dois anos depois que a definição era ampla demais. Voltando à definição clássica (quando o termo era “hermafrodita”), ele defendeu que indivíduos intersexuais “têm cromossomos XY com anatomia feminina predominante, cromossomos XX com anatomia masculina predominante ou genitálias ambíguas ou mistas”. Nessa definição, o número caía para um centésimo do estimado por Anne Fausto-Sterling: duas pessoas a cada dez mil, ou menos.
O padrão comum da população é que os seres humanos têm 46 cromossomos em cada célula, dois dos quais são ligados ao sexo. Em homens, os dois cromossomos sexuais são XY, nas mulheres, são XX. Os nomes dos cromossomos são porque no exame do cariótipo, em que eles ficam visíveis, os sexuais realmente se parecem com as letras X e Y (o último, o cromossomo masculino, é substancialmente menor). Cromossomos são como carretéis de longas fitas do DNA, onde estão os genes.
Não há notícias de que as duas boxeadoras tenham órgãos genitais ambíguos, ou seja, aqueles que os médicos têm dificuldade de dizer se são pênis ou vagina. Imane Khelif foi criada como menina numa cultura islâmica, então é improvável que tenha diferenças notáveis que sejam externas.
Seguindo a definição de Sax, há duas formas principais de as atletas serem intersexo.
Caso o teste da IBA esteja correto, Khelif e Yu-ting podem ter algum tipo de insensibilidade à testosterona. Então elas ainda teriam testículos internos que produzem esse hormônio masculino, mas suas células poderiam ser insensíveis a ele de forma branda, parcial ou completa (devido a diferenças genéticas). Somente no terceiro caso seria possível dizer com segurança que elas não têm vantagens atléticas conferidas pela puberdade masculina. A insensibilidade completa ocorre em meninas XY nascidas com vagina que não desenvolvem características masculinas, a insensibilidade branda ou parcial pode levar a meninos com micropênis.
Caso o teste da IBA esteja errado e ambas tenham os cromossomos XX, a condição intersexo mais provável, e a mais comum, é a hiperplasia adrenal congênita (CAH). Neste caso, as glândulas acima dos rins crescem mais que o normal e produzem muita testosterona, masculinizando o corpo e o comportamento. Ao nascer, as crianças com CAH podem ter um pênis com aparência completa ou, o que é mais comum, genitália ambígua. Neste caso, vantagens para o esporte feminino são esperadas.
Outras possibilidades
Caso não sejam intersexo, as atletas podem ter diferenças de desenvolvimento sexual de outros tipos. Emma Hilton, professora de biologia da Universidade de Manchester, no Reino Unido, acredita que pode ser um caso de mutação que causa uma deficiência na enzima 5-alfa-redutase (a sigla em inglês para a condição é 5ARD). O papel dessa enzima, um tipo de molécula importante para as reações químicas do organismo, é transformar a testosterona em um tipo especial do hormônio que atua especificamente no crescimento do pênis e da próstata no feto.
“O bebê começa se desenvolvendo como um menino saudável (XY, testículos, testosterona, todo o funcionamento interno). Mas ele não tem uma proteína (enzima) para fazer o pênis crescer. Isso significa que sua genitália pode se desenvolver com uma aparência feminina. Assim, o bebê pode ser registrado ao nascer como menina”, afirmou a especialista.
“Durante a puberdade, as partes internas masculinas começam a produzir grandes quantidades de testosterona e sua genitália externa começa a se tornar mais masculina. É como se tentasse alcançar o tempo ‘perdido’.” Então, o resto do corpo de meninos com 5ARD “se desenvolve como o corpo de qualquer outro homem”, disse Hilton. “É por isso que eles não deveriam estar em categorias femininas do esporte. Pois elas não têm nada a ver com a genitália externa e o que seus documentos dizem”.
“Pessoas que vivem com DSDs devem ser tratadas com compaixão e entendimento”, disse a bióloga evolucionista Carole Hooven, que deixou sua posição de professora após 20 anos na Universidade Harvard por pressão do ativismo identitário. “Mas quando atletas do sexo masculino têm DSDs que dão a eles vantagens sobre as mulheres, e eles competem na categoria feminina, isso gera preocupações a respeito de segurança e justiça, e força uma discussão a respeito das características físicas relevantes”.
De preocupação especial, para Hooven, são as diferenças de desenvolvimento sexual em que atletas têm testículos internos que lhes conferem “benefícios físicos da alta testosterona durante a puberdade que se traduzem em vantagens atléticas sobre as mulheres”. Hooven afirmou que a 5ARD já foi submetida a testes quanto a isso em 2012, e o resultado foi confirmação das vantagens. Na história das Olimpíadas há 18 atletas intersexo ou com diferenças de desenvolvimento sexual.
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