Quando o ex-presidente e candidato presidencial republicano Donald Trump quase morreu atingido por uma bala no último sábado (13) em um comício na Pensilvânia, o senador J. D. Vance, a dias de ser anunciado seu parceiro de chapa, disse no X que “não é um incidente isolado”.
“A premissa central da campanha de Biden é que o presidente Donald Trump é um fascista autoritário que deve ser parado a qualquer custo”, afirmou o político. “Essa retórica levou diretamente à tentativa de assassinato contra o presidente Trump”.
A tese de Vance é forte demais para ser amparada por evidências. Para que a retórica tivesse levado diretamente ao atentado, seria preciso saber mais do assassino, Thomas Matthew Crooks, mas era uma figura solitária e misteriosa.
Contudo, uma tese de influência indireta, de envenenamento do espaço público pela hipérbole e acusações injustas contra Trump, seria mais viável. Como colocou o editorial da Gazeta do Povo, a degeneração do debate político é “uma causa remota do ataque”. Os exemplos da decadência da retórica são abundantes. Confira os mais notórios abaixo.
Como começou a retórica hiperbólica
Quando Trump anunciou seu interesse em concorrer à presidência em 16 de junho de 2015, ele tocou em pontos sensíveis para progressistas no mesmo discurso. Falando sobre imigrantes ilegais vindo do México, afirmou que “estão trazendo drogas, estão trazendo crime, são estupradores. E alguns, presumo, são boas pessoas”.
Seguiu-se uma reação ferina, de má vontade de interpretar com generosidade as falas do candidato e inserção de opinião sobre a suposta inaceitabilidade das afirmações, como sugeriu no mês seguinte o jornal The Washington Post. Se estivesse errado, ainda era uma opinião comum entre eleitores, e o jornal sugeriu que só “podia” ser rotulada como opinião.
Outro momento importante foi dezembro de 2015, quando Trump comentou os ataques de terroristas islâmicos. Um ataque coordenado no mês anterior matou 130 pessoas e feriru 250 em cinco localidades de Paris, e, no dia 2, outro ataque em San Bernardino, Califórnia, deixou 14 mortos e 22 feridos. Trump emitiu uma nota no dia 7, chamando por “uma interrupção total e completa da entrada de muçulmanos nos Estados Unidos até que os representantes do nosso país possam descobrir o que está acontecendo”. Ele citou uma pesquisa do Centro de Política de Segurança, indicando ódio contra americanos em grandes segmentos da população muçulmana.
No dia seguinte, 8 de dezembro de 2015, o tabloide Philadelphia Daily News publicou na capa uma foto cuidadosamente escolhida de Trump com a mão direita erguida, lembrando a saudação nazista, e o título “O novo furor” (um claro trocadilho com Führer, “líder” ou “guia” em alemão, como Hitler era chamado por apoiadores).
Políticos tiveram uma reação similar. Christine Todd Whitman, ex-governadora republicana de Nova Jersey, disse que “esse tipo de retórica permitiu que Hitler avançasse”, e o prefeito democrata da Filadélfia, Michael Nutter, disse que Trump “arrancou uma página do manual de Hitler”. Meses depois, dois ex-presidentes mexicanos, Vicente Fox e Felipe Calderon, fizeram declarações similares.
Reclamando da banalização do Holocausto em março de 2016, a ADL (sigla em inglês para “Liga Antidifamação”), organização de direitos civis focada no combate ao antissemitismo, afirmou que “fontes tanto da esquerda quanto da direita buscam criticar Donald Trump” fazendo uma analogia com Hitler. Entre elas, os comediantes progressistas Bill Maher, Sarah Silverman e Louis C. K. — o último disse “parem de votar no Trump. Foi engraçado por um momento, mas o cara é Hitler” — e o comentarista conservador Glenn Beck, que já tinha feito o mesmo no passado contra Barack Obama, Al Gore, Michael Bloomberg (judeu) e uma aeromoça israelense.
As comparações não ficaram só nos tabloides e no entretenimento. Jornais maiores também fizeram. “Este comício de Donald Trump parece uma cena da Alemanha nazista”, disse o site The Huffington Post, na época uma das principais apostas da nova imprensa online. A revista Newsweek buscou Eva Schloss, meia-irmã de Anne Frank, vítima do nazismo na Holanda que escreveu um famoso diário. Trump “está agindo como outro Hitler”, afirmou Schloss.
A retórica escala no governo Trump
Em um artigo acadêmico publicado em 2019 na revista Central European History, o historiador Gavriel David Rosenfeld estima que o pico das comparações do movimento político de Trump com o nazismo aconteceu em 2017, primeiro ano de governo.
De fato, foi um ano de zênite dos exageros. Um dia após a posse, na Marcha das Mulheres, a cantora Madonna afirmou que pensou em “explodir a Casa Branca”. Em março, o rapper Snoop Dogg publicou um clipe com o assassinato de um palhaço vestido de Trump. Em maio, a comediante Kathy Griffin posou para fotos com uma cabeça decepada sintética de Donald Trump, ensanguentada.
Em Nova York, em junho, uma produção da peça de teatro “Júlio César”, de Shakespeare, retratou o assassinato de um César que era sósia do presidente. No mesmo mês, no festival de música de Glastonbury no Reino Unido, o ator Johnny Depp disse “quando foi a última vez que um ator assassinou um presidente? Quero esclarecer que não sou ator, minha profissão é mentir. Mas já passou um tempo, talvez esteja na hora”.
Naquele ano, o colunista do New York Times Charles Blow publicou um artigo afirmando que “a comparação adequada não é com Hitler, o assassino, mas com Hitler, o mentiroso”.
Até o uso bem-sucedido que Trump fazia das redes sociais, característica antes elogiada em Barack Obama, agora lembrava a astúcia do ditador nazista em manipular a imprensa no começo dos anos 1930, segundo a revista online Salon, em 2018.
Na mesma época, o ex-diretor da Agência Nacional de Segurança (NSA), Michael Hayden, postou uma foto do campo de concentração de Auschwitz com o comentário “outros governos separaram mães de filhos”, fazendo referência à cobertura inflamada de políticas de fronteira de Trump que diferiam pouco do que foi feito por seu antecessor, Obama.
Ainda em 2018, Maxine Waters, congressista veterana do Partido Democrata, incitou seus apoiadores a assediar membros do governo em espaços públicos, para que fossem confrontados em restaurantes, postos de gasolina e outros lugares.
Finalmente, um mês antes do atentado contra a vida de Trump, a revista The New Republic o colocou na capa com um bigodinho característico do fascista austríaco e o título “Fascismo americano: que aparência ele teria”. A edição especial traz uma coletânea de artigos e reportagens, um deles diz que é “perda de tempo” debater até que ponto o empresário de Nova York e ex-presidente é fascista, outro prevê “o fim da compaixão cívica”.
O que se faz com Hitler?
A ficção e o entretenimento estão cheios de exemplos da expressão do desejo de voltar no tempo e assassinar Adolf Hitler. Está no livro “Novembro de 63” de Stephen King; nos filmes “Bastardos Inglórios” (2009) e “Deadpool 2”(2018); nas séries de televisão “Doctor Who”, “The Umbrella Academy”, “Love, Death & Robots”, “Family Guy” e “Rick and Morty”; nos quadrinhos e em vários títulos de videogames.
É um sonho compreensível, dado o estrago feito pelo mandatário da Alemanha entre 1933 e 1945, sob cujo jugo foram mortos milhões de judeus, ciganos, deficientes, testemunhas de Jeová, homossexuais, dissidentes e outras minorias.
As comparações persistentes com Trump, e outras estratégias de retórica hiperbólica de seus opositores influentes, criaram um ambiente cultural em que um jovem solitário e de vida social disfuncional como Thomas Crooks pode ter visto uma oportunidade de alcançar notoriedade positiva, tirando a vida do político americano.
Crooks “era inteligente, isolado, imaturo, socialmente desconfortável e educado. Ele não se destacava por nenhum motivo”, analisou o terapeuta Todd L. Grande, doutor em aconselhamento psicológico no contexto escolar, em seu canal no YouTube. “É quase como se as pessoas que estavam perto dele nem notassem que ele existia. Talvez ele quisesse remediar isso. Procurava por um modo de ser notado, de ser lembrado para sempre”.
“Foi exposto à retórica venenosa a respeito de Donald Trump. Algumas pessoas de esquerda alegaram que se Trump fosse eleito a democracia implodiria e a sociedade cairia no caos”, afirmou Grande. “Essas emoções fortes e previsões alarmistas chamaram a atenção de Thomas. Era o que ele procurava: matar um candidato presidencial polêmico o colocaria nos livros de História. A maioria o veria como um vilão, mas alguns, como herói”.
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