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Luiz Gama, o advogado autodidata que libertou centenas de escravos
Luiz Gama, o advogado autodidata que libertou centenas de escravos| Foto: Pixabay

A história do advogado Luiz Gama, ícone da luta abolicionista no Brasil, está em alta. Nascido na Bahia e vendido como escravo pelo próprio pai, Gama estudou Direito por conta própria e ajudou a libertar centenas de negros antes da abolição em 1888. Sua rica biografia, pouco conhecida entre os brasileiros, serviu de inspiração para o filme “Doutor Gama”, recém-lançado no serviço de streaming Globoplay, e foi tema de um episódio recente do podcast Ideias nesta Gazeta do Povo.

No último sábado (11), entretanto, o nome do ex-escravo veio à tonaquando a editora Companhia das Letras decidiu suspender as vendas e recolher os exemplares em circulação da obra “Abecê da liberdade”, dos escritores José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta. Lançado em 2015, o livro infantil narra a vida de Luiz Gama e conta com uma cena na qual crianças negras brincam dentro de um navio negreiro, rumo ao país onde seriam escravizadas. A ilustração ganhou destaque em uma reportagem do portal UOL, que ouviu pais e ativistas indignados com o trecho abaixo:

Página do livro "Abecê da liberdade"
Página do livro "Abecê da liberdade"

“Eu, Getulina e as outras crianças estávamos tristes no começo, mas depois fomos conversando, daí passamos a brincar de pega-pega, esconde-esconde, escravos de Jó (o que é bem engraçado, porque nós éramos escravos de verdade), e até pulamos corda, ou melhor, corrente. Nem parecia que íamos ser comprados por pessoas brancas e trabalhar de graça para elas (...)”.

Em nota enviada à Gazeta do Povo, a Companhia das Letras reiterou o posicionamento explicitado na matéria:

“Lamentamos profundamente que esse ou qualquer conteúdo publicado pela editora tenha causado dor e/ou constrangimento aos leitores ou leitoras. Assumimos nossa falha no processo de reimpressão do livro, que foi feito automaticamente e sem uma releitura interna, e estamos em conversa com os autores para a necessária e ampla revisão. De toda maneira, como consideramos a crítica correta e oportuna, imediatamente disparamos o processo de recolhimento dos livros do mercado e interrompemos o fornecimento de nosso estoque atual. Esta edição agora está fora de mercado e não voltará a ser comercializada”.

Nesta segunda-feira (13), o autor José Torero escreveu sobre o ocorrido em sua coluna no jornal literário Rascunho:

"Como autor de livros para crianças, às vezes me sinto pisando em ovos. Ou melhor, num campo minado. Está muito fácil você colocar o pé em algo e bum!, explodir. Ou, pelo menos, ficar com o sapato melecado. (...) É claro que os pais têm direito de reclamar. Eles realmente veem problemas nas questões que apontam. Mas os autores também têm direito de reclamar das reclamações. E com esse diálogo reclamante talvez os dois lados aprendam algumas coisas", relata o escritor.

Revisão versus cancelamento

A decisão da Companhia das Letras de recolher os livros à toque de caixa fomentou debates sobre os limites da liberdade criativa e o alcance da chamada “cultura do cancelamento”. Além das imprecisões históricas, há quem veja na cena em questão uma falta de sensibilidade com relação aos sofrimentos cruéis aos quais as crianças escravizadas foram submetidas.

“Os navios negreiros eram verdadeiras catacumbas, completamente insalubres e a forma como os negros escravizados eram colocados era um horror. O ato de desumanização já começava ali”, avalia o advogado Irapuã Santana, doutor em Direito. “Dizer para uma criança que era possível brincar e ser feliz num ambiente tão hostil é tripudiar da nossa história. A liberdade para criar não exime pessoa alguma de crítica, principalmente o escritor”, avalia o especialista, crítico à cultura do cancelamento e ao combate ao racismo exclusivamente pelas vias à esquerda.

Acertar o tom de obras infantis (dedicadas, portanto, a um público mais suscetível a ideias e imagens) à luz de novas informações e em respeito a grupos que sofreram graves injustiças não é, por si só, um problema. Ocorre que a profusão de "cancelamentos" nos novos tempos leva à pergunta: qual é o limite? Na última semana, foi revelado que, em 2019, uma rede de escolas católicas de Ontário, no Canadá, literalmente atearam fogo em cerca de 5 mil livros infantis considerados “racistas” com o objetivo de promover a "reconciliação" com os povos indígenas da região. Entre eles havia títulos como “Tin Tin”, “Pocahontas” e “Astérix”.

A ação foi movida pela professora Suzy Kies que, até então, se declarava “ativista indígena”. Assim que as queimadas vieram à tona, foi revelado que a ativista não possui relação com o povo indígena e a diretoria da escola alegou estar arrependida da ação. Kies pediu demissão. Em referência ao episódio, o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, conhecido por suas posturas progressistas, afirmou: “Pessoalmente, eu nunca concordaria com uma queima de livros”.

Para o professor de filosofia Alexandre Sugamosto, a postura da editora frente ao episódio do “Abecê da liberdade”, ainda que não inclua fogueiras, ecoa o mesmo espírito de censura. “A Companhia das Letras poderia simplesmente abrir mão dos direitos autorais do livro, já que parece entender que a qualidade do trabalho não se alinha com a sua política editorial”, explica.

“Em primeiro lugar, é bom perceber que o trecho em questão aparece descontextualizado. Qual é o fio da narrativa? O que vem antes? O que vem depois? É mais um daqueles casos em que trechos de obras ou discursos são usados para legitimar determinadas atitudes.  Depois, trata-se de ficção. Podemos questionar a qualidade da ficção e a falta de refinamento do autor em certas escolhas, mas cobrar ‘fidelidade histórica’ de uma obra de fantasia não tem cabimento”, diz o entrevistado.

“Evidentemente, a alegação da militância progressista é que qualquer questionamento em relação ao gesto da editora é uma ‘passada de pano’ para o tenebroso problema histórico da escravidão... A doutrina ‘woke’ está esticando a corda para ver até onde a sociedade tolera suas ações”.

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