Fazia seis graus abaixo de zero e eu não sentia minhas mãos. Meu voo chegou a Ottawa na noite anterior e eu tinha me esquecido de trazer luvas. Eu havia dormido apenas três horas, depois de uma saga para contornar as restrições fronteiriças com o Canadá— exame de Covid-19, prova de vacinação, instalação do aplicativo ArriveCAN e planos detalhados de quarentena para o caso de eu me contaminar do outro lado da fronteira. O agente alfandegário olhou com desdém para o norte-americano diante dele. “O que o senhor pretende fazer no Canadá?” Cobrir o protesto dos caminhoneiros para uma revista. “Que revista?” A National Review. Ele fez que sim com a cabeça. “Você tem que ver a banheira que eles montaram”.
A verdade é que o acampamento dos caminhoneiros ao redor do parlamento canadense tinha mesmo uma banheira, além de vários DJs, barracas servindo comida e bebida, churrascos, dois mascotes fantasiados e até um castelo inflável. Em vez de cair na banheira, contudo, me vi sob o frio matinal participando da Marcha de Jericó, uma marcha de inspiração bíblica ao redor do Parlamento e que uma dúzia de manifestantes corajosos realizavam diariamente às 9h da manhã. “A empolgação é incrível. Parece que mais e mais gente chega todos os dias” disse Benita Peterson, organizadora da marcha.
“Senti que estava sendo convocado para vir até aqui”, me disse Peterson. Ela parou por um instante a fim de conter as lágrimas e antes de me dar um abraço. “Acho que, se o chamado é para você agir com amor e pacificamente, é um chamado de Deus. E isso é lindo”.
Já em sua terceira semana, o movimento que foi até Ottawa protestar contra as medidas restritivas impostas no país se transformou numa manifestação de música, dança e orações. O comboio parece uma versão do Verão do Amor de 1967, sem o LSD e com muitas camadas de roupa a mais. Os acampamentos surgiram em vários quarteirões ao redor do Parlamento, cada qual com seu estilo de vida, comidas e DJs próprios. Um caminhoneiro construiu uma casa improvisada com folhas de madeira na carroceria de uma carreta de 18 eixos. Outro montou uma ginástica ao ar livre. “Os grupos de caminhoneiros se tornaram uma família”, me disse Greg Wieler, que está participando do protesto com sua esposa. “Eles se comprometeram a ficar unidos até o fim”.
Havia, porém, uma estranha teoria da conspiração circulando entre a multidão (embora raramente entre os caminhoneiros). Ontem, uma senhora sentada ao meu lado num café dizia a um grupo de caminhoneiros que “eles” – e o pronome era bem vago – “estão planejando essa pandemia há cem anos” e que Justin Trudeau bebe o sangue de crianças como parte de um ritual satânico. “Tudo começou com o Titanic”, disse ela, cheia de certezas. “Confie em mim”.
Até mesmo os mais malucos parecem os canadenses estereotipados de sempre – tão educados que é preciso um instante para identificá-los como malucos. Ao conversar com uma senhora de meia-idade na recepção do hotel, os primeiros 30 minutos trataram do incômodo dela com os passaportes vacinais e de sua frustração com a cobertura que a imprensa fazia do protesto – em outras palavras, uma opinião conservadora comum. Mas daí ela me disse que as vacinas na verdade eram microchips de controle mental instalados por Bill e Melinda Gates. “Pesquisei muito sobre isso”, disse ela. “Amanhã posso mostrar o que tenho, se você quiser”. Fiz que sim e sorri.
Mas essas teorias loucas não são o ponto aqui, e os conspiracionistas não são maioria em Ottawa. O protesto – um movimento que já se espalha pelo mundo, da Alemanha à Austrália, passando pela Franca e Israel — não é nem mesmo um movimento antivacina. Políticos e jornalistas de esquerda repetem que 90% dos caminhoneiros canadenses são vacinados, como para sugerir que a manifestação não representa o sentimento da categoria. Mas isso só seria verdade se o movimento fosse contra as vacinas, e não contra a obrigatoriedade das vacinas.
O movimento busca sobretudo pôr fim às restrições criadas na pandemia, e não disseminar teorias da conspiração e extremismos, como alega o governo de Trudeau. (O agora famoso deboche do primeiro ministro, que disse que o movimento era formado “por uma minoria marginal” parece ter sido adotado da mesma forma que os “deploráveis” mencionados por Hillary Clinton. Isto é, a fala é ostentada em camisetas, bonés, cartazes e nas portas dos caminhões). Os cartazes colados no Parlamento não falam de rituais satânicos ou de microchips, e sim de liberdade, direitos e consentimento. “Liberdade” às vezes é usada como cumprimento. Na minha primeira noite ali, um homem caminhava à minha frente quando viu duas mulheres envoltas em bandeiras do Canadá vindo na direção contrária. “Liberdade”, disse ela. “Liberdade”, responderam elas em uníssono.
No palco principal e nas conversas privadas, os manifestantes dizem estar defendendo seu estilo de vida. “Não tem nada a ver com a vacina”, disse Peter van Oordt, ex-bombeiro voluntário de uma cidadezinha em Ontário que foi demitido por se recusar a mostrar o passaporte vacinal no trabalho. “As vacinas poderiam ter sido maravilhosas. Mesmo que o governo quisesse me fazer beber um copo de água destilada... Não discuto que água destilada não faz mal ao meu corpo. Esse não é o ponto. O ponto é que eles não têm o direito de me obrigar a nada. Ponto final”.
Tudo isso é um retrato bem diferente do movimento dos caminhoneiros mostrado pela imprensa como um movimento sinistro de extrema direita.
Talvez seja algo menor, mas fiquei impressionado com a limpeza da comunidade improvisada. Os organizadores recolhem o lixo e os caminhoneiros tiram o gelo das ruas todas as manhãs. Os grupos cristãos oferecem comida para a população de rua de Ottawa, graças ao dinheiro recebido de doadores do mundo todo. Quando a polícia supostamente impediu os serviços de limpeza de cuidarem dos banheiros químicos do movimento, os organizadores colocaram os banheiro nas carrocerias dos caminhões e os substituíram por novos. Agora eles encontraram uma forma de “usar o caminhão limpa-fossa”, me contou um caminhoneiro que ajuda a organizar o protesto. “Eles vêm todos os dias”.
“Digo isso para os policiais todos os dias: eu entendo”, me contou ele. “Não tenho raiva de vocês. Tenho raiva da polícia, mas não dos policiais. Digo às pessoas que os policiais são gente também. Alguns deles não puderam sair de férias e tiveram de vir aqui trabalhar. E eles não querem isso. Tipo, eles são seres humanos também. Por isso digo para as pessoas serem educadas ao máximo”.
Os caminhoneiros têm enfrentado críticas por suas ações, como o bloqueio da Ambassador Bridge, que liga Detroit a Windsor, e que interrompeu o comércio e as rotas de outros caminhoneiros. Em Ottawa, contudo, a atmosfera animada é diferente de outros protestos realizados recentemente no Canadá. Os protestos do grupo Black Lives Matter canadense ocorreu numa escala menor do que nos Estados Unidos, mas foram marcados pela violência e destruição. No verão passado, depois que surgiu uma notícia, já desmentida, de que covas coletivas numa escola continham os restos mortais de crianças nativas, manifestantes queimaram igrejas católicas.
Os caminhoneiros de Ottawa estão com raiva do governo – mas não o estão queimando. Um participante da Marcha de Jericó me contou como fez algumas pessoas “mudarem de lado” no dia anterior. “A melhor forma de desarmar alguém é com um sorriso, disse ele.
Isso parece estar dando certo. Apesar de Trudeau recentemente invocar poderes emergenciais, o protesto conquistou vitórias no objetivo final de pôr fim às restrições e obrigatoriedades no Canadá. “Várias províncias rapidamente retiraram suas restrições diante da pressão dos manifestantes”, de acordo com a Associated Press. “Alberta, Saskatchewan, Quebec e Prince Edward Island anunciaram planos de retirar ou amenizar algumas medidas, enquanto Alberta (...) deixou de exigir o passaporte vacinal em lugares como restaurantes e se comprometeu a retirar a obrigatoriedade do uso de máscaras até o fim do mês”. O jornal Calgary Herald noticiou que “o Canadá está retirando suas restrições de fronteira”. No dia 28 de fevereiro, “o Canadá voltará a fazer exames aleatórios” e “viajantes vacinados não precisarão de quarentena”. Os caminhoneiros parecem estar diante de algo grande. Os participantes falam em estar fazendo história. Aqui nesse frio insuportável, sobrevivendo à base de sopa e cerveja barata, e motivados pela fé, pelo cheiro de diesel e pelo patriotismo educado típico dos canadenses, eles estão vencendo batalhas.
Nate Hochman é repórter da National Review.
©2022 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês
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