O trio de filósofos pop-stars do Brasil, formado por Leandro Karnal, Luiz Felipe Pondé e Mario Sergio Cortella, esteve no centro do programa Roda Viva exibido na segunda (16) para falar sobre a felicidade. Quem esperava um festival de platitudes ouviu exatamente isso, exceto por um momento em que um Karnal improvavelmente assertivo atendeu a um pedido da escritora progressista Tati Bernardi para que lhe desse dicas de como sobreviver ao seu Natal em família.
“Neste Natal vou ter que perdoar muita gente, porque metade da minha família votou no Bolsonaro. Então eu queria ouvir de vocês dicas de como perdoar o meu pai, por exemplo. [Ele] Não só votou como está achando que está um ano maravilhoso aí, está tudo dando certo, né?”, disse ela, arrancando risos de Barbara Gancia.
Para a surpresa de Bernardi, de quem estivesse assistindo e de quem depois viu o vídeo pelas redes sociais, o sempre tangencial Karnal deu uma resposta que talvez sirva para milhares ou milhões de adolescentes tardios que, daqui a alguns dias, também enfrentarão o “drama” de ter de conviver por algumas horas com familiares dos quais discordam politicamente.
Erro conceitual
Mas, antes, é necessário apontar um erro conceitual bastante grave no postulado de Leandro Karnal. Ele começa sua resposta para Bernardi fazendo uma alusão velada ao cristianismo, dizendo que muitas religiões pregam o perdão porque “ele é também um exercício de poder”. “Se eu preciso perdoar pertence a mim o poder (...) e você está numa posição inferior que merece o perdão”, diz ele, evidentemente confundindo o perdão genuíno como uma espécie de vingança e reduzindo tudo a uma relação entre o opressor (o dono do poder de perdoar) e o oprimido.
Karnal ignora que, para o cristianismo, o perdão não tem a ver com essa ideia contemporânea de “engolir sapos” em nome da paz comum. Não se trata, portanto, de um ressentimento interiorizado, daquela mágoa que a gente diz que não existe, mas que está sempre ali como uma memória sempre incômoda. Não tem absolutamente nenhuma relação com tolerar o erro (no caso de Bernardi, o erro seria a opção política do pai), mantendo sempre a esperança de que o outro, o errado, um dia reconhecerá o tropeço e dele se arrependerá.
Como ensina Roger Scruton, na tradição genuinamente cristã o perdão pressupõe sacrificar o ressentimento. “Quem perdoa sacrifica o ressentimento e, portanto, renuncia a algo que estimava de todo o coração, escreve ele, dizendo que, infelizmente, essa mensagem se perdeu no ruído do repúdio – e repudiar os oponentes políticos à esquerda ou à direita é tudo o que fazemos hoje em dia.
“Ao vivermos num espírito de perdão, não só evocamos o valor essencial da cidadania como também encontramos o caminho para o senso de comunidade de que tanto precisamos. A felicidade não surge da busca pelo prazer, nem tampouco é garantida pela liberdade”, escreve Scruton, usando termos que, acredito, são caros aos progressistas, que não conseguem compreender noções como “cidadania” e “senso de comunidade” sem apelar para conceitos antiperdão como “reparação histórica” e “vingança (travestida de justiça) social”.
Pilares do ressentimento
Logo em seguida, Karnal derruba um dos pilares do ressentimento de Tati Bernardi, ressentimento comum a muitas famílias no Brasil e que gira em torno de uma visão profundamente ideologizada de mundo, segundo a qual o país é um lixo, a vida é uma droga, Bolsonaro é um vilão em termos morais absolutos e, por causa de pessoas “abjetas” que votaram 17 nas eleições de 2018, todos padeceremos em trevas “nunca dantes vistas”.
Ele argumenta, com uma simplicidade aterradora, que talvez o pai da adolescente tardia com dificuldades para perdoar tenha razão em sua visão (política) de mundo baseada na experiência individual. “Seu pai tem razão. Está um ano maravilhoso talvez na experiência dele”, diz, com aquela voz trovejante e um olhar um tanto quanto condescendente, para então sentenciar que “sempre alguém está bem com o governo. Não há Luis XIV que não satisfaça ao menos uma parte de Versailles”.
O que os progressistas, motivados por um antibolsonarismo irracional ou um eterno espírito revolucionário juvenil, não conseguem aceitar é que, a despeito das bravatas, das grosserias, dos equívocos históricos e de todos os defeitos que se possa atribuir ao presidente da República, muitas pessoas, milhões delas, consideram que a vida hoje é melhor do que ontem. E isso não tem nada a ver com teorias ilegíveis escritas por sociólogos com estabilidade no emprego e salário acima da média em universidades federais. Isso tem a ver com uma percepção cotidiana muitas vezes incapaz de ser traduzida para a linguagem acadêmica e muito menos de ser categorizada pelo ímpeto materialista daqueles que se veem como ungidos para guiar os destinos da Humanidade.
O que chama atenção no drama de Tati Bernardi, que expressa o drama de milhões de partidários de sua visão binária de mundo, é a crença numa realidade macabra, infelicíssima, soturna, insuportável mesmo. Uma realidade que só uns poucos intelectuais iluminados se acham capazes de, em meio às trevas, enxergar. “Em 40 anos eu nunca vi, no Brasil, nada mais grotesco do que o governo Bolsonaro e tudo associado a ele. Quem não está enojado e deprimido tem problema sério de caráter (ou vive em uma bolha sem jornais e seres humanos)”, escreveu ela poucas horas antes de perguntar a Leandro Karnal como perdoar o pai.
"Se não há outro tema, a culpa não é da política"
O golpe definitivo de Karnal na narrativa que ao mesmo tempo mistura vitimismo e aquela sensação de superioridade moral tão típica dos progressistas que empunham a falsa capacidade de perdoar como se fosse uma arma de justiça social vem em seguida. “Se vocês vão se encontrar para o Natal, Bolsonaro não é o melhor tema. E, se não há outro tema, a culpa não é da política”, diz o filósofo, lançando alguma luz sobre problemas de relacionamento que estão na base dessa cansativa batalha ideológico-partidária.
Afinal, a vida não é feita de um embate eterno entre opressores e oprimidos, conservadores e progressistas, brancos e negros, ricos e pobres, Bernardi-pai e Bernardi-filha, etc. Nem tudo pode ser reduzido a uma dicotomia luz/trevas, como querem os progressistas. Um pai que tenha votado em Jair Bolsonaro não fez isso necessariamente para impor o patriarcado ou para expressar uma masculinidade tóxica. Muito menos para ofender um filho que por acaso tenha votado em Fernando Haddad e que ganhe a vida como soldada no exército de intelectuais contra a família e o capitalismo.
O problema dessas pessoas que politizam uma festa natalina com a família, que veem na recusa em comer um delicioso peru um ato de resistência, que reviram os olhos à menção do nome de Cristo e que se recusam a fazer parte da “liturgia capitalista da troca de presentes” é outro, de ordem moral e espiritual. Moral porque escolhem o conflito como única forma de se apaziguar as relações humanas; espiritual porque não enxergam qualquer tipo de beleza e transcendência nessas relações humanas.
Em dado momento do diálogo entre Tati Bernardi e Leandro Karnal, ela concede que talvez seja digna do perdão do pai “por estar me expondo no programa”. É um momento revelador do narcisismo político que orienta toda uma geração. E é bom que, especialmente nesta época do ano, os progressistas acabem por se revelar assim.
Dessa forma é possível que os adultos livres do recinto exerçam o verdadeiro perdão.
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