A burocracia representa o Brasil tão bem quanto o futebol e o samba. E um componente que todo brasileiro que já precisou sente na pele são os cartórios. Em 2021, os brasileiros gastaram R$ 23,4 bilhões em procedimentos burocráticos nos cartórios do país — um valor que supera o orçamento anual da maioria dos ministérios do governo federal. A arrecadação representou um recorde, um aumento de 34% em relação ao recorde anterior, de 2020. Os dados são do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
A média de faturamento bruto de um cartório no Brasil é de R$ 1,8 milhão por ano. Mas há realidades distintas entre os 12.726 cartórios do país. Os 37 cartórios do Distrito Federal, por exemplo, são os que possuem maior faturamento médio: R$ 8,9 milhões por ano. Os 1.544 de São Paulo e os 390 do Rio de Janeiro completam o pódio, com faturamento médio respectivo de R$ 5,1 milhão e R$ 4,6 milhões. Na outra ponta, os 235 cartórios de Alagoas registraram a menor média, de R$ 443 mil por ano.
Os próprios cartórios são vítimas de burocracia
Esses números contribuem para que um titular de cartório tenha registrado no ano passado renda média mensal bruta de R$ 103,1 mil. Atrás deles, membros do Ministério Público (R$ 53,4 mil), Poder Judiciário e Tribunal de Contas (R$ 51,7 mil). Em comparação, médicos possuem renda média mensal de R$ 30,5 mil e atletas e desportistas de R$ 25,9 mil. Os números são da Receita Federal com base na declaração do Imposto de Renda.
Contudo, de acordo com a Confederação Brasileira de Futebol, analisando somente os jogadores de futebol, o salário médio é de R$ 3,7 mil. A média dos boleiros é puxada para baixo, já que cerca de 75% dos 360 mil atletas registrados na organização são amadores e não possuem o futebol como principal fonte de renda.
É simbólico que o rendimento das principais carreiras no Brasil sejam atreladas ao setor público e à burocracia em um país que vai mal em rankings que medem a qualidade da economia de mercado. Entre eles, no de liberdade econômica (133º lugar entre 177 países, segundo a Heritage Foundation), de competitividade global (59º lugar entre 63 países, de acordo com o Fórum Econômico Mundial) e em proteção de direitos de propriedade (74º lugar entre 129 países, no levantamento da Property Rights Alliance).
Vale ressaltar que o valor recebido pelo titular de cartório é bruto, sendo descontado as despesas operacionais dos cartórios e incidindo sobre ele uma série de tributações e taxas, que variam entre os entes federativos. Ou seja, os próprios cartórios são vítimas de burocracia brasileira também.
A média nacional dos repasses é de 28% da receita bruta dos cartórios, de acordo com estudo da Associação dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo (Anoreg/SP). Esse dinheiro é repassado para até 77 órgãos de todo o país, incluindo alguns que possuem a incumbência de fiscalização dos atos notariais, como o Poder Judiciário, mas acaba sendo repassado até para entidades como hospitais filantrópicos. Naturalmente, tantas taxas tornam o serviço notarial mais caro para o cidadão, o grande prejudicado dessa história.
“Após os repasses, ainda é preciso cuidar dos custos com funcionários, aluguel, sistemas, softwares, contas de energia elétrica e água. No que sobrar, ainda incide 27,5% do Imposto de Renda de Pessoa Física porque apesar da lógica ser de uma empresa, quem responde é a pessoa física”, explica Rodrigo Bachour, que é tabelião e oficial registrador desde 2017. Atualmente ele responde pelo distrito de Jaciguá, Comarca de Vargem Alta, no Espírito Santo.
Vale lembrar que eventuais erros cometidos pelos cartórios estão sujeitos ao pagamento de indenizações aos prejudicados. “O reconhecimento de firma para a transferência da titularidade de um carro traz uma receita líquida de cerca de R$ 5 ao cartório, mas se houver erro por parte de um colaborador ou se este for vítima de uma falsificação, pode gerar uma indenização enorme”, afirma.
Não à toa, é comum por cartórios a contratação de seguros de responsabilidade civil, o que restringe a lucratividade da atividade. “Na prática, um cartório bem administrado que tenha um faturamento mensal bruto de R$ 100 mil acaba, na verdade, tendo uma renda líquida de uns R$ 40 mil por mês, a depender do estado”, complementa.
Entre os serviços realizados pelos cartórios estão a resolução de diversas questões típicas do Judiciário, mas que podem ser resolvidas de forma consensual entre as partes, como o inventário, o divórcio e até o usucapião. A lógica é que se não há lide, não precisa envolver um magistrado.
Questionado sobre a qualidade do serviço dos cartórios, Bachour afirma que qualquer tabelionato de notas hoje concorre nos serviços de escrituras e reconhecimentos de firma. “Isso já não ocorre no registro de imóveis, então pela falta de concorrência é possível que haja um acomodamento por parte de alguns cartórios e o cliente não seja tratado da melhor forma. Como é um serviço monopolista daquela região, independentemente da qualidade do serviço, o cidadão terá que voltar e resolver nele, então isso desgasta a imagem dos cartórios, mesmo quando esse pensamento não é a regra. Conheço diversos registradores de imóveis que fazem um trabalho excepcional”, diz.
“Eu tento desburocratizar para oferecer segurança jurídica para os atos e facilitar a vida do cidadão, mas há um limite. O tabelião e o registrador têm de seguir exatamente os requisitos legais. Se a lei diz que é necessário pedir determinados documentos, eu sou obrigado a cumprir. A gente fica taxado como burocrático, mas só estamos seguindo a lei. Então é preciso que a sociedade chegue a um entendimento e mude as leis”, defende Bachour.
Já foi pior
A pandemia da Covid-19 acelerou os níveis de digitalização, incluindo os cartórios. Antes de 2020, todos os serviços notariais exigiam uma presença física, e a assinatura presencial de documentos. Ele foi substituído por soluções como formatação digital e videochamadas que vieram para ficar. Uma delas é o E-notariado, aplicativo que ajuda no reconhecimento de firmas e procurações.
“A gente sempre pensa: por que diabos isso existe? Mas toda burocracia tem uma razão por trás porque sempre há alguém que se beneficia disso”, explica Geanluca Lorenzon, ex-secretário de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia (SEAE).
Ele explica que na maior parte das vezes a justificativa de uma burocracia é um risco exagerado ou porque em outros setores funciona daquela forma. Nesse sentido, grupos de interesses dificultam aberturas de mercado e desburocratização. “Lidar com os grupos envolve sempre oposição e muito dinheiro por detrás. Afinal, as pessoas têm medo de perder algo nas discussões e propostas de reformas”, afirma.
O país mais complexo do mundo para se fazer negócios
As evidências de que é difícil fazer negócios no Brasil não são apenas anedóticas. O país lidera o Índice Global de Complexidade Corporativa, elaborado pela TMF Group, seguido por França, Peru, México e Colômbia.
De acordo com o relatório, os principais impulsionadores de complexidade no Brasil são tanto o volume de regulações a se seguir em âmbito federal, estadual e municipal, bem como as mudanças regulatórias a cada ano nesses três regimes fiscais.
“No Brasil, não apenas há diferenças tributárias entre os diferentes estados e municípios em que uma empresa atua, mas igualmente entre os diferentes setores empresariais. O Brasil também é a jurisdição que faz o maior número de alterações nas alíquotas de imposto a cada ano – um fator importante para que ele esteja no topo deste ranking”, afirma o relatório.
Um dos processos mais complexos do Brasil envolve a compra, venda ou fusão entre empresas, o chamado M&A. “São 45 dias para as empresas regularizarem a situação na União, estados e municípios. Apesar do processo agora ser majoritariamente digital, as empresas e seus acionistas estrangeiros devem nomear um representante residente local”, critica a TMF.
Herança ibérica
Muitos brasileiros culpam Portugal por causa da herança burocrática dos cartórios, mas o modelo não se trata de uma exclusividade brasileira. Ao todo, há o sistema de notariado em 86 países, de acordo com a União Internacional do Notariado Latino (UINL). Isso inclui 22 dos 28 países que compõem a União Europeia e 15 dos 20 componentes do G20. Ou seja, o sistema de cartórios não precisa ser sinônimo de burocracia.
“Há uma velha brincadeira de que junto com nossas caravelas foram o idioma e o formalismo jurídico”, brinca Fernando Araújo, advogado português e professor da Universidade Católica Portuguesa.
“Os brasileiros herdaram um instrumental jurídico muito pesado, mas os próprios portugueses estão buscando se livrar disso nas últimas três décadas”, analisa.
No início do século, Portugal promoveu diversas reformas no sistema atuarial, criando o Estatuto do Notariado, que restringiu encargos e barateou o serviço, além de uma reforma em 2006 que “privatizou” serviços cartoriais.
“Foi feito um amplo movimento de simplificação administrativa que tentava evitar burocracias por parte dos notários. Acabamos com o monopólio de certificações, autenticações e reconhecimentos de assinaturas. Diversos serviços que antes eram exclusivos passaram a ser fornecidos por outras entidades e autoridades”, explica.
Nesse processo de descentralização, advogados passaram a ter a prerrogativa de dar fé pública aos atos, especialmente reconhecimentos simples, autenticação de documentos particulares e tarefas burocráticas menores. “A tecnologia ajudou a criar um sistema descentralizado, mas com segurança. Não é todo advogado que faz esse procedimento. É preciso passar por certificação e habilitação”, afirma Araújo.
O professor português aponta que nas principais cidades de Portugal, como Lisboa e Porto, o processo como um todo foi muito descentralizado na prática. "Tabeliães antigos reclamaram muito de perda de receitas, o que indica que havia barreiras artificiais”, analisa.
Até mesmo competências territoriais, como registro predial, desapareceram com a informatização e Portugal. “Essa descentralização de escrituras ainda é comumente feita em cartórios quando os negócios representam maior volume financeiro. Então na prática o 'filé mignon' continua com eles, mas em transações de baixo valor se tornou comum a descentralização, então facilitou muito a vida do cidadão”, analisa.
Questionado se os brasileiros têm razão em reclamar da herança de Portugal, Araújo pondera. “Por um lado, os brasileiros já tiveram 200 anos para corrigir os males herdados, mas talvez 200 anos pode não ser tanto tempo assim”.
“O formalismo jurídico português é extremamente pesado, mas Portugal está em um movimento forte de simplificação administrativa, burocrática e jurídica… nem sempre essas reformas ocorrem na velocidade que se gostaria, mas ao menos isso tem sido tentado em Portugal”, complementa.
“Apesar de haver muito interesse em simplificação, o Brasil tem o problema de ter muita gente que depende da confusão administrativa. Essas dificuldades artificiais são o ganha pão de milhões de pessoas, então dificulta a aprovação de melhorias. Portugal, nesse sentido, se beneficiou do fato de ser um país menor”, analisa ao comparar com o Brasil.
Como desburocratizar o Brasil?
Não é tão simples se livrar da praga da burocracia. Além da resistência de grupos de interesses que buscam obstruir ou minimizar eventuais perdas diante de um processo de desburocratização, o processo legislativo no Brasil impõe um elevado quórum e a necessidade de até sete votações para ser aprovado, incluindo comissões. Isso sem falar na elevada fragmentação partidária, o que dificulta a formação de consensos políticos.
Por fim, agendas de curto prazo dos parlamentares costumam se sobrepor à criação de uma agenda estruturante. Há a necessidade de formar convicção política, e isso costuma requerer um tempo de maturação da sociedade para se avançar reformas que transformem profundamente determinados setores.
Geanluca Lorenzon, que ajudou a coordenar a aprovação da Lei da Liberdade Econômica, traz um bom exemplo dessa dificuldade.
“Aprovar grandes reformas não são oportunidades rotineiras, precisa de toda uma conjuntura. A agenda da MP da Liberdade Econômica em 2019 estava conectada com o resultado eleitoral, havia muitos atores políticos que queriam marcar presença e dar uma resposta para aquele contexto. Essas oportunidades precisam ser aproveitadas quando surgem”, explica.
“Outro exemplo foi a Lei da Assinatura Eletrônica, que mudou completamente a questão do certificado digital e desburocratizar em parte os cartórios. A pandemia deu uma justificativa política para finalmente adotarmos um modelo mais simples. Aprovar uma reforma é uma mistura de estratégia com aproveitar oportunidades de cenário”, analisa Lorenzon.
Não basta só mudar a lei
A mencionada Lei da Liberdade Econômica tinha como objetivo primário remover obstáculos burocráticos para as empresas, respeitar direitos de propriedade e restringir a influência governamental na economia. Sancionada há três anos, porém, uma das partes relacionadas à desburocratização, que envolve a dispensa de alvará de funcionamento para atividades de baixo risco, depende de regulamentação municipal, mas somente 16,6% dos municípios com mais de 10 mil habitantes a regulamentaram, totalizando 517 cidades no país.
O número é do Mapa da Liberdade para Trabalhar, desenvolvido pelo Instituto Liberal de São Paulo. O presidente da organização, Marcelo Faria, analisa que a implementação de uma legislação que tira poder das autoridades locais é difícil.
“Há cidades que tivemos contato que até aprovaram a lei, mas dispensando menos atividades do que poderia porque a renda de fiscais naquela região é relacionada à produtividade. Dispensar muitos alvarás vai de encontro ao interesse de fiscais”, conta.
O levantamento mostra que cidades da região Norte e Nordeste avançaram muito pouco na implementação desta legislação. “Uma hipótese que temos é que avançar com a lei em cidades do interior significa que empresários ficarão menos dependentes de agentes públicos, especialmente vereadores, então a lei simplesmente não é implementada”, analisa Faria.
“A burocracia brasileira é, sobretudo, um produto cultural de como fazemos as coisas. Tal como em uma empresa, mudar pessoas, mudar processos, mudar missão e mudar os valores é mais fácil. O mais difícil é mudar a cultura, é isso que enquanto país nós precisamos vencer”, conclui Lorenzon.
Enquanto isso não mudar, a profissão de maior renda tenderá a ser as que representam, ao menos simbolicamente, o oposto do que deveríamos ser enquanto país.
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