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Edição bilíngue traduzida do grego propõe que o público leia a história de Jesus Cristo como era contada pelos primeiros cristãos.
Edição bilíngue traduzida do grego propõe que o público leia a história de Jesus Cristo como era contada pelos primeiros cristãos.| Foto: BigStock

Hábitos e métodos de leitura tendem a refletir as excentricidades do dono. Mas é muito difícil encontrar quem leia uma boa história (real ou fictícia) em trechos isolados - mesmo as mais conhecidas. Normalmente, conhece-se a raposa depois de saber como se desenha uma cobra devorando um elefante, ainda que o “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”, de Antoine de Saint-Exupéry, seja figurinha carimbada em capas de caderno e legendas de Instagram.

Via de regra, começa-se “Harry Potter” por “A pedra filosofal” e “O Senhor dos Anéis” pela “Sociedade do Anel”. E, ainda que depois de alguns séculos não exista mais spoiler, é incomum começar a ler “Moby Dick” ou “Hamlet” pelas cenas finais. Não foi para isso, afinal, que Melville e Shakespeare os escreveram. Ainda que seus desfechos sejam conhecidos, a construção das personagens, os diálogos, o estilo e os recursos narrativos escolhidos são parte da prática da leitura e devem ser apreciados ao longo do caminho.

Ocorre que, graças aos dois milênios de adaptações, interpretações e de construções de ritos que ainda hoje permanecem calcados em leituras sistematizadas, a história que, para a maior parte do mundo dividiu o tempo raramente é lida como tal.

Lançada no último mês, a obra de estreia da editora Mnêma propõe um resgate literário dos relatos cujo protagonista continua presente, senão em cada prece, certamente em cada debate, cada texto, cada um dos 20.808 lugares batizados em sua homenagem só na Europa. Trata-se de “Os Evangelhos: Uma Tradução”, edição bilíngue em grego e português que almeja levar o leitor a ler a vida de Jesus Cristo da forma como foram registrada: como uma história.

Coube ao jornalista Marcelo Musa Cavallari, formado em grego e latim pela Universidade de São Paulo (USP), a tarefa de traduzir os textos atribuídos a Mateus, Marcos, Lucas e João do idioma no qual todos os seus manuscritos conhecidos foram encontrados, preservando os sentidos originais das palavras escolhidas pelos autores, sem suavizar termos nem facilitar construções.

Em entrevista à Gazeta do Povo, Cavallari explica que o tom elegante em que os livros da Bíblia foram traduzidos na modernidade não corresponde ao grego original, “mais rude e cheio de arestas”. “É um texto escrito por gente que estava sendo perseguida por todos os lados - tanto pelos judeus, dos quais os cristãos estavam se afastando, quanto pelo Império Romano. Não é um texto escrito em uma situação tranquila”, explica o jornalista, que começou a ler o Novo Testamento no idioma original em 1986, ainda na faculdade.

“Eu mesmo me surpreendi com os textos”, explica ele, católico desde os 22 anos. “Ao longo do processo, a figura de Jesus na minha cabeça mudou muito. Ele é muito mais rude e se parece muito mais com os profetas do Velho Testamento, que falam em situações de crise, momentos de decisão. Na verdade, a própria mensagem de Jesus não é ‘fiquem todos calmos e tranquilos’. E o texto não tem essa cara”, diz o tradutor.

Até para os cristãos mais assíduos, acostumados a ler e ouvir trechos do texto sagrado disponíveis em aplicativos de celular, o resultado pode causar algum estranhamento. Além da linguagem sisuda, nota-se, por exemplo, a ausência de palavras como “batismo”, “anjo” e “fé”: termos que não tinham, à época, o significado que têm hoje. A mudança é parte do objetivo de fazer com que o texto seja exatamente o pretendido pelo evangelista.

A palavra “batismo”, por exemplo, vem do verbo “tizo”, que, em grego, significava mergulhar, molhar. “No Evangelho de João, quando, na Última Ceia, Jesus diz que quem vai entregá-lo é quem molha o pão, ele usa o mesmo verbo - que não tinha o sentido de ‘batizar’. Com o passar dos séculos e a transformação do ‘batismo’ em um ritual, a palavra se especializou. O mesmo se dá com a palavra ‘angelos’, que significa ‘mensageiro’. Só mais tarde passamos a compreender ‘anjo’ como um ser espiritual a serviço de Deus”, diz Cavallari.

No rigor na manutenção dos termos e construções utilizados pelos evangelistas em seu contexto original está o grande ineditismo desta tradução, o primeiro projeto da recém-nascida editora que, em parceria com a Ateliê Editorial, promete lançar em breve um dicionário de grego e uma tradução do Apocalipse. “A primeira vez que o Marcelo [Cavallari] me mandou o texto, respondi que achei estranho. Há leituras ali que não são nem um pouco comuns”, diz o editor.

História das traduções

Desde as primeiras tentativas de organização dos manuscritos no Novo Testamento, por volta do século II, foram necessários mais 200 anos para se chegar aos textos conhecidos como Sinaítico e Vaticano, os mais antigos a preservar os Evangelhos inteiros. É desta época a primeira tradução do grebo koiné (comum) para o latim veio, feita pelo sacerdote católico Jerônimo de Estridão. Mais mil anos se passaram até que Martinho Lutero reescrevesse os textos sagrados em alemão, dando origem às centenas de traduções hoje disponíveis.

A primeira versão do Novo Testamento em português, por exemplo foi traduzida do latim, do italiano e do espanhol pelo pregador reformado João Ferreira de Almeida, em 1645. No Brasil, uma das Bíblias católicas mais populares do país, a da Editora Ave Maria, utiliza-se dos Monges Maredsous, da Bélgica; enquanto a Bíblia de Jerusalém (Ed. Paulinas) foi traduzida dos textos em grego.

Ambas têm adaptações que permitem uma maior aproximação com o público. A “aspereza” dos textos apresentados por Cavallari - que tampouco dispõem das tradicionais divisões em capítulos e versículos - em nada compromete seu impacto. Às vésperas de um Natal incomum, os novos sentidos que emergem da literalidade têm seu valor: note-se que palavra “fé”, por exemplo, está entre as que não aparecem nenhuma vez na nova tradução.

“O termo usado pelos evangelistas é ‘pístis’, um substantivo que vem do verbo ‘peithó’. À rigor, é simplesmente confiança”, explica o tradutor. “Isso, para mim, teve um impacto muito grande. A fé costuma ser vista como algo intangível. Confiar em Deus é uma coisa mais concreta".

Leia, abaixo, alguns trechos selecionados de cada Evangelho:

Lucas 

“No sexto mês foi expedido o núncio Gabriel por Deus à cidade da Galileia de nome Nazaré, para uma virgem penhorada a um homem, de nome José, da casa de Davi. E o nome da virgem: Maria.

E indo a ela falou: ‘Graça agraciada. O Senhor contigo’. Ela, então, por causa da palavra, agitou-se e arrazoava que tipo de saudação seria essa."

Marcos 

“E Jesus, tendo entreouvido a palavra falada, diz ao chefe da congregação: ‘Para de ter medo, só confia’. (...)

E chegam à casa do chefe da congregação e contempla tumulto e [gente] chorando e lamentando muito. E tendo entrado, diz a eles: ‘Por que tumultuais e chorais? A criancinha não morreu, mas dorme’. E derriam-se dele."

Mateus

“Felizes os pobres no espírito, porque deles é o reinado dos céus.

Felizes os que choram, porque serão consolados.

Felizes os doces, porque herdarão a terra.

Felizes os famintos e sedentos de justiça, porque se repastarão.

Felizes os que têm dó, porque deles se terá dó."

João

“Depois disso, sabendo Jesus que já tudo está perfeito, a fim de que se perfaça a escrita, diz: “Tenho sede”. Um jarro estava cheio de vinagre. Uma esponja, portanto, cheia do vinagre tendo cingido a uma vara de hissopo levaram à sua boca. Quando, portanto, tomou o vinagre, Jesus falou: ‘Está perfeito’. E tendo inclinado a cabeça entregou o alento."

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