Em meio a um ano bastante conturbado para a cultura brasileira em geral, e especialmente morno para a literatura, o escritor Sérgio Rodrigues lançou uma preciosidade: a coletânea de contos A Visita de João Gilberto aos Novos Baianos. Fiel à melhor tradição do conto brasileiro, Sérgio Rodrigues une o insólito e o cômico em narrativas marcadas pela metalinguagem, escritas com uma precisão raramente encontrada na literatura contemporânea brasileira, que nas últimas décadas conseguiu a proeza de reduzir ainda mais seu diminuto público com histórias ególatras e investigações sociológicas de todos os tipos.
Um livro como este não pode passar despercebido. Até porque ele traz, ainda no seu “Lado A”, logo depois da história que dá título ao livro, o conto “A Fruta por Dentro” – uma preciosidade que, se a literatura sobreviver à filistinice do século XXI, vai figurar em todas as coletâneas do gênero. O conto conta (sic) a história da noite de núpcias entre dois dos mais emblemáticos personagens da literatura brasileira com uma sutileza sublime — e mais não digo para não estragar a experiência do leitor.
A Visita..., contudo, não é um livro para iniciantes. E essa é uma das suas maiores qualidades, porque Sérgio Rodrigues não se rende ao proselitismo nem ao populismo característicos do nosso tempo, quando escritores, críticos e professores parecem preocupados demais em ensinar aos leitores/consumidores que a literatura é necessária porque supostamente vai fazer de você uma pessoa melhor, mais sábia, especial mesmo. Nada disso. Sérgio Rodrigues escreve sobretudo para raros leitores maduros que já passaram desse limiar e por isso sabem que a literatura não acrescenta nada de tangível à vida de quem a consome.
Até por se recusar a fazer as concessões de praxe, com as já citadas “críticas sociais” e aqueles personagens marginais arrotando a sabedoria das ruas de sempre, e sem ceder à tentação das “tendências mercadológicas”, sejam elas quais forem, A Visita... não é um livro fácil. Mas não se preocupe. Não estamos falando, aqui, de um livro que abaixa a cabeça para a academia ou para a pós-modernidade, no sentido de subjugar o conteúdo à estética apenas para receber aplausos ou para se tornar tema de teses com um sem-número de notas de rodapé.
A dificuldade do livro está mais na bagagem cultural que ela exige do leitor. Mas não para intimidá-lo com malabarismos estilísticos. No final das contas, A Visita... é só um excelente livro de contos à moda antiga, da época em que as pessoas consumiam contos e romances e a literatura era tema de debate no pátio da faculdade e até nos botecos não por seus méritos políticos, e sim pelos estéticos.
E é aqui que entra a metalinguagem — palavrinha que hesitei em usar até aqui, para não espantar os incautos e incultos. A Visita... usa e abusa deste recurso, o que talvez faça com que um leitor mais rabugento considere o livro um impenetrável exercício de autorreferência. Não é. Porque a metalinguagem é usada como uma forma de se olhar para dentro, para o que motiva nossas escolhas e para o que determina o rumo dos nossos pensamentos, sem que precisemos, depois disso, chegar a uma conclusão inscrita na pedra, intransigível e imutável.
Sobre A Visita..., bem como sobre o desgastado trabalho de escritor numa época em que o “lugar de fala” e o anti-intelectualismo transformam imediatamente qualquer pessoa vista com um livro na mão num palhaço ou marionete aos olhos de uma massa que faz da ignorância estandarte político, Sérgio Rodrigues concedeu a seguinte entrevista para a Gazeta do Povo:
Seu livro se apoia muito na metalinguagem e nas referências literárias. Você acha que isso limita o público leitor? Isso é um problema?
Não acho que o livro se apoie demais nisso. A parte mais abertamente metalinguística, o Lado B, me parece também a que mais investe no humor, na leitura como diversão e puro prazer de acompanhar histórias para saber como vão terminar. As referências culturais, sobretudo literárias mas abertas a outras formas de arte, perpassam o livro inteiro porque ele é, a meu ver, uma declaração de amor à literatura que chega a ser quase constrangedora de tão apaixonada. Mas procuro fazer isso como uma camada a mais de leitura, não a única, tentando não excluir do jogo o leitor que não tiver uma ou outra carta na mão. Sinto repugnância por esnobismo e masturbação intelectual.
Aliás, a metalinguagem anda em baixa, muito por conta de certo anti-intelectualismo. Como você vê esse culto à ignorância?
É possível dizer que a metalinguagem anda em baixa, no sentido de que anda menos praticada, mas acho que isso se deve menos ao anti-intelectualismo do que ao desgaste, no meio intelectual, que o recurso sofreu quando virou uma modinha pós-moderna. No entanto, como eu sempre acreditei que recursos literários gastos existem para serem revalorizados, não pretendo abrir mão dessa dimensão em que a linguagem questiona a linguagem. Desde Cervantes, pelo menos, essa me parece uma vocação natural da ficção. Quanto ao culto da ignorância, do filistinismo, da grosseria e da burrice, esse está engolfando tudo, não? Não sei se vai sobrar alguma coisa. Mas os papalvos nem sabem o que é metalinguagem, preferem rejeitar em bloco a literatura, as artes todas, a ciência, tudo.
Adoro metalinguagem, mas me pergunto se isso não acaba refletindo, como leitor, meu apego a uma bolha. Você se pergunta a mesma coisa como escritor?
Não. Pode-se dizer que o tipo de literatura que eu faço, num país tão maciçamente iletrado, já é em si uma espécie de bolha. Mas não me interessa cifrar, dificultar. Se é bolha, prefiro soprar para que ela fique cada vez maior.
Há algum tempo você dizia que a literatura é coisa de uma “seita”. Alguma coisa mudou nesse cenário e nessa sua visão de mundo?
Essa é uma tirada do Marçal Aquino que eu andei citando. Ele se referia à literatura brasileira contemporânea. Infelizmente, não acredito que tenha mudado muito o cenário desde o início do século, quando ele disse aquilo. Basta ver o número de leitores interessados nessa prateleira do mercado. Mas o problema, na minha opinião, transcende a literatura, é uma mazela educacional e cultural do país, eu diria até espiritual, pelo que envolve de ódio à nossa própria imagem no espelho. Vejo a literatura brasileira num bom momento que é até surpreendente, se levarmos em conta a hecatombe de inteligência que estamos vivendo.
A boa literatura, para ser reconhecida como tal, depende também de bons leitores. O Brasil forma leitores capazes de admirar a boa literatura?
Pois é, acho que acabei respondendo a essa pergunta antes que ela fosse formulada. O Brasil não forma, em número suficiente para um país dessas dimensões, nem leitores que entendem uma notícia de jornal popular, que dirá um texto literário. É inegável que nos falta massa crítica. Mas atenção, isso não quer dizer que os escritores sejam vítimas, que o Brasil seja cheio de autores brilhantes que o leitor médio não enxerga, não valoriza. O quadro todo é dialético, um país não pode ler mal e escrever bem, a não ser como exceção, porque uma dimensão cria e se alimenta da outra. Machado de Assis foi um milagre. Enquanto não se educar de verdade, o Brasil estará condenado a depender de milagres, espasmos, exceções.
Há algum tempo você também reclamava da ideia de “lugar de fala” na literatura. Como você vê esse assunto hoje? Você, como um homem branco, hétero e de classe média se sente à vontade para criar um personagem negro, homossexual e pobre?
Não abro mão desse direito. Agora, quanto a ficar inteiramente à vontade, eu estaria mentindo se dissesse que fico. Se, como homem branco hétero, crio uma personagem negra lésbica, eu sei que isso é algo que grande parte dos leitores verá como uma transgressão, talvez como um gesto corajoso, talvez como um gesto inaceitável. Sei também que o julgamento deles será liminar, anterior a qualquer opinião sobre o resultado artístico que eu obtiver. É claro que essa consciência estará incorporada à minha criação de alguma forma, mas assim é o jogo hoje. Quem sabe até essa consciência possa abrir novos ângulos de percepção, muitas vezes as dificuldades fazem isso, acabam propiciando descobertas, soluções novas. O que acho fundamental é não abrir mão da liberdade que tem qualquer autor de criar o que lhe der na telha. É estranho que tenha voltado a ser necessário afirmar uma obviedade dessas, mas aqui estamos.
Ainda sobre isso, você não acha que a segmentação política da literatura (livros de negros para negros, de homossexuais para homossexuais, etc.) acaba por empobrecer a imaginação coletiva?
Mais do que empobrecer a imaginação coletiva, é uma sentença de morte à arte. Sem a liberdade absoluta de fabular sobre o outro, sobre o diferente, sobre tudo, a arte como eu a entendo não tem como existir, morre de asfixia e vira, sei lá, militância, autobiografia, "testemunho". Que são gêneros textuais válidos, mas não são arte. Esta deve ser julgada pelo resultado que a obra entrega, não pelo perfil biográfico de quem a assina.
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