Há um bom tempo, a esquerda paulistana cismou que os bandeirantes eram brancos escravocratas que maltratavam índios. Agora Boulos ecoa os seus anseios com a promessa de tirar a estátua do bandeirante Borba Gato e trocá-la pela de Zumbi dos Palmares.
A esquerda é sempre um movimento intelectual de elite, que volta e meia coloca um rosto operário à frente para dar um verniz de povo. (Um rosto branco, diga-se de passagem.) A elite paulista é descendente dos bandeirantes. Logo, quando a esquerda paulista resolve que os bandeirantes eram todos brancos, está na verdade fantasiando uma origem ariana para si própria.
Bandeirante é caboclo insubmisso à Coroa
É bem sabido que no séc. XVIII o Marquês de Pombal proibiu o ensino de línguas ameríndias nas escolas de São Paulo para tornar o português o idioma único do Brasil. Os paulistas falavam mais a língua geral (um tupi-guarani simplificado) do que o português. Afinal, eles eram os descendentes de homens como João Ramalho que, munidos de ferro (não de estupros!), ganhavam prestígio junto aos tupis, que logo lhes davam filhas para casar e forjar alianças. E assim uns poucos europeus viviam nus, poligâmicos, nas brenhas da Mata Atlântica. O governo português do Brasil estava sediado na longínqua Cidade do Salvador. No séc. XVII, São Paulo tinha mais relações com o Paraguai, onde até hoje se fala guarani, do que com a Bahia ou Pernambuco, ambos lusófonos desde cedo. São Sebastião do Rio de Janeiro, que ficava próximo, era uma aldeiazinha povoada por baianos, antes da chegada da Corte.
Os filhos desses homens com as índias eram os bandeirantes. Eles viviam pelas matas à cata de riqueza: comerciavam com os paraguaios, escravizavam jês (como seus ancestrais tupis faziam), seduziam ou guaranis do Paraguai para fora daquela utopia jesuítica, desbravavam mata virgem em busca de minas de ouro, peregrinavam pelo Cerrado, e até chegaram a servir aos senhores de engenho do Recôncavo baiano como mercenários, em guerrilha contra índios brabos que aterrorizavam a região. Nem os tapuias, nem os bandeirantes, falavam português correntemente. O caipira paulista tem a mesma dificuldade que o paraguaio de falar o R europeu de “porta”.
Que a elite paulistana pretenda dizer que os bandeirantes eram brancos hoje, entende-se pela sua história política. Afinal, no começo do século passado, eram eles os principais patrocinadores do racismo científico e do arianismo. Enquanto a elite do Rio de Janeiro louvava os feitos humanísticos do mestiço Cândido Rondon, a de São Paulo criava o Museu Paulista, rival do Museu Nacional, e o entregava a um arianista alemão chamado Von Ihering. Este sujeito bacana polemizou muito com Rondon, e décadas antes de Hitler chegar ao poder ele já falava em solução final – a ser aplicada aos índios no Brasil, que Rondon tanto se esmerava em integrar. Essa polêmica pode ser encontrada no livro "Rondon", de Larry Rohter, ex-correspondente do jornal New York Times no Brasil.
Um intelectual negro descobriu que os bandeirantes falavam tupi
Um outro gênio mestiço, profundamente interessado nas culturas indígenas, foi o responsável pela descoberta. Trata-se de Theodoro Sampaio, um mestiço negro filho de escrava e padre, grande polímata do Império, criador do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da Escola Politécnica de São Paulo. Tal como Rondon, percorreu o Brasil para cartografá-lo e auxiliar a implementação de infraestrutura. Nisso, deparava-se com índios e tentava entender sua cultura.
Quando Cabral chegou, o litoral do Brasil era predominantemente povoado por índios que falavam línguas do tronco tupi. Áreas interiores, como as conquistadas pelos bandeirantes paulistas, eram habitadas por índios do tronco linguístico macro-jê. E ainda assim os topônimos desses locais são tupis e não jês.
Antigamente, a esquerda sabia que Chico Buarque tinha um pai importante chamado Sérgio, e que este é o autor de um clássico da sociologia chamado Raízes do Brasil. Nele, há um pequeno texto chamado “A língua geral no Brasil”, consistindo num artigo feito para o Estado de S. Paulo em 1945, no calor da II Guerra. Nesse clima, a língua dos bandeirantes era polêmica de jornal. Diz o respeitável pai de Chico: “Admite-se, em geral, sobretudo depois dos estudos de Theodoro Sampaio, que ao bandeirante, mais talvez do que ao indígena, se deve nossa extraordinária riqueza de topônimos e procedência tupi. Mas admite-se sem convicção muito arraigada, pois parece evidente que uma população ‘primitiva’, ainda quando numerosa, tende inevitavelmente a aceitar os padrões de seus dominadores mais eficazes. Não faltou, por isso mesmo, quem opusesse reservas a um dos argumentos invocados por Theodoro Sampaio, o de que os paulistas da era das bandeiras se valiam do idioma tupi em seu trato civil e doméstico, exatamente como os dos nossos dias se valem do português.” Daí para a frente, recolhe escritos de Vieira e de espanhóis no Paraguai sobre o desuso do português em terras paulistas.
Cadê os negros à frente da esquerda?
A fantasia, então, é a seguinte: o esquerdista bem-nascido clama aos quatro ventos que é branco, é branco, é branco, e fica feliz quando acreditam. Expiar seus pecados de branco é um prazer, porque é a única oportunidade dele, socialmente aceita, de dizer que é branco. Se um grande intelectual negro versado em tupi diz que as antigas famílias paulistas, ancestrais desses bem-nascidos, eram caboclas e nem falavam português, a história desse negro fica em branco. Não existe. Todo negro é um coitado aguardando pela redenção do caudilho “ariano”. Exceto Zumbi, liderança que não é exatamente reconhecida por seus dotes intelectuais ou talento para a democracia.
Os bem-nascidos se pintam de brancos superiores e abnegados, que apontam à gente escura um caminho para ter seu lugar ao sol, em espaços gentilmente reservados – ou cercados. Os escuros podem ser vices, como Sônia Guajajara; podem ser mártires santificados, como Marielle. Podem ser vereadores. Mas não são nunca líderes e grandes referências dentro dos partidos da esquerda, que tanto alegam ser a desigualdade consequência direta de racismo. O escuro que não conhece o seu lugar, como Fernando Holiday, atrai uma ira homicida. O jornalista escuro, que não baba esquerdista, como Heraldo Pereira, ganha ofensa racial. Quando se quer ter vida intelectual ou política sem abaixar a cabeça para a esquerda, ser branco é um privilégio.
Se você é escuro, os bem-nascidos da esquerda vão lhe reservar o chiqueirinho do lugar de fala, da vaga por inclusão, do consultor de diversidade, etc. Mas não vão considerá-lo um ser humano autônomo, com direito a ter suas próprias ideias e desafiá-los. Isso é lugar de fala de branco.
Por que Zumbi?
Nas priscas eras em que ser fascista era tão aceitável quanto ser comunista, surgiram no brasil a Ação Integralista Brasileira e o seu movimento associado, a Frente Negra Brasileira. Esta foi integrada pelo papa do racialismo brasileiro, Abdias do Nascimento, autor da tese segundo a qual miscigenação é genocídio. Pois bem: a Frente Negra tinha um jornal chamado A Voz da Raça. Lendo alguns trechos dele, entende-se o motivo do fetiche por Zumbi: “Nos Palmares, não se discutia o Chefe, o Zambi. Igualmente não devem os frentenegrinos discutir o chefe da Nação.” Será a defesa do Führerprinzip? Isso mesmo: “Hitler, na Alemanha, anda fazendo uma porção de coisas profundas. Entre elas a defesa da raça alemã. […] Que nos importa que Hitler não queira, na sua terra, o sangue negro? Isso mostra unicamente que a Alemanha Nova se orgulha de sua raça. Nós também, brasileiros, temos raça. Não queremos saber de arianos. Queremos o brasileiro negro e mestiço que nunca traiu nem trairá a nação!” (Quem quiser ler mais sobre, procure o livro "A utopia brasileira e os movimentos negros", de Antonio Risério.)
Esses negros não tiveram grande sorte. Apoiaram Vargas, que privilegiou a ala arianista do integralismo. Legou aos frentenegrinos, porém, o cercadinho da negritude, expresso na valorização oficial de Zumbi.
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