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Candidato à presidência da Argentina, Javier Milei é um "ancap" convicto.
O economista libertário Javier Milei, candidato à presidência da Argentina| Foto: EFE/Juan Ignacio Roncoroni

Segundo colocado no primeiro turno das eleições presidenciais da Argentina, realizado neste domingo (22), Javier Milei “semeou” na grande imprensa uma palavra até então mais restrita às bolhas políticas da internet: anarcocapitalismo.

Milei se considera anarcocapitalista, ou ancap, como também são conhecidos os entusiastas dessa vertente, digamos, mais radical do pensamento liberal. Em linhas bem gerais, trata-se de um sistema filosófico, político e econômico cujos princípios incluem a liberdade individual, a propriedade privada, o livre mercado, o princípio da não-agressão e, acima de tudo, a eliminação total do estado.

Ou seja, é uma espécie de libertarianismo levado às ultimas consequências, em que todos os aspectos da sociedade devem ser privatizados – incluindo a administração pública, a polícia e até a justiça.

Mais do que uma escola de pensamento, o anarcocapitalismo hoje em dia se configura como um movimento, quase uma contracultura de direita (com seus institutos, livros, influenciadores e canais de discussão e divulgação). O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro contou com vários ancaps em suas fileiras, e nas redes sociais é possível identificar uma quantidade significativa de jovens que aderiram a essa corrente.

O economista e filósofo norte-americano Murray Rothbard (1926-1995), ligado à Escola Austríaca, é considerado o principal teórico do anarcocapitalismo e responsável pela criação do termo. Mas nomes como Hans-Hermann Hoppe, Stephan Kinsella, David D. Friedman, Robert Nozick, Ayn Rand e o casal Morris e Linda Tannehill também contribuíram ou são influências decisivas para o desenvolvimento das ideias ancap. A seguir, elencamos alguns tópicos elucidativos para os não iniciados no movimento.

Anarquia?

Para muitos críticos, especialmente os de esquerda, a simples ideia de conectar os conceitos de anarquismo e capitalismo é bisonha – como se os ancaps juntassem alhos e bugalhos, descontrole e rigor. É o típico erro de quem não faz a lição de casa direito. Os dois sistemas compartilham, em suas nomenclaturas, a raiz “anarco", derivada do grego “anarkhos” (“sem governo”), que não tem nada a ver com bagunça ou desordem.

O anarcocapitalista defende a existência de uma sociedade com instituições, cooperação e governança. Porém, diferentemente do anarquista clássico, o ancap crê que a propriedade privada é a principal garantia da liberdade dos indivíduos.

Diferença entre anarcocapitalismo e libertarianismo

As duas correntes têm em comum a ênfase na liberdade individual, na propriedade privada e no livre mercado. Mas enquanto os ancaps desejam que todas as funções do Estado sejam realizadas por entidades particulares, os libertários tendem a aceitar um governo mínimo, capaz de proteger os direitos básicos e necessários.

Costumes e questões morais

Em geral, os anarcocapitalistas não entram em discussões de fundo moral. Liberdade, autonomia e responsabilidade pessoal estão entre os pilares do movimento. Um ancap pode até ser contra o uso de drogas, os casamentos homoafetivos ou a mudança de gênero – mas jamais vão apoiar a intervenção estatal em qualquer um desses assuntos. A única exceção diz respeito ao aborto. Enquanto alguns entendem que a prática é uma decisão da mulher (considerando a ideia de “propriedade corporal”), outros veem a interrupção da gravidez como uma violação dos direitos individuais de um ser humano em potencial.

“Se você colocar quatro libertários em uma sala para debater, o único ponto que vai gerar discórdia é o aborto”, diz Raphaël Lima, empreendedor, criador do canal ‘Ideias Radicais’ (com mais de 650 mil inscritos no YouTube) e uma das figuras que mais influenciam os ancaps brasileiros – ainda que prefira ser chamado de libertário.

Administração de grandes crises

Sem um governo central, é possível resolver ou conter problemas como desastres naturais e epidemias? Para os ancaps, essa lacuna deve ser preenchida com coordenação e cooperação. Empresas, comunidades, organizações voluntárias e indivíduos podem se unir para organizar ações, compartilhar recursos e definir acordos em prol das áreas e pessoas afetadas. Um ponto controverso, aqui, é a dependência das agências de seguros privadas – em um sistema anarcocapitalista, elas seriam fundamentais para diminuir riscos e prejuízos.

A ciência em xeque

Os anarcocapitalistas têm posições variadas com relação a temas polêmicos envolvendo a ciência, como a existência de uma crise climática e a eficácia das vacinas e dos lockdowns. Eles creem, por exemplo, que a poluição é uma agressão e uma invasão à propriedade privada (“Quem mais joga esgoto nos rios é o próprio Estado”, comenta Raphaël Lima). No entanto, não compactuam com a teoria do apocalipse ambiental a médio ou curto prazo.

Quanto às vacinas, o grupo já se mostra bem mais dividido, e muitos influenciadores ancap admitem publicamente não ter recebido nem a primeira dose do medicamento contra a Covid-19.  Mas todos, claro, são enfaticamente contra qualquer tipo de imunização obrigatória.

O que isso tem a ver com Bitcoin?

Tudo. Por circularem em redes descentralizadas, independentes de bancos ou governos, as criptomoedas vão diretamente ao encontro dos princípios de autonomia valorizados pelos ancaps. Além disso, possibilitam a privacidade nas transações e, ao menos em tese, possuem caráter deflacionário (entre outros motivos, por não estarem submetidas à manipulação da oferta monetária operada pelo Estado).

Principais questionamentos

As preocupações mais comuns com relação ao anarcocapitalismo dizem respeito à falta de proteção para as comunidades mais vulneráreis e ao meio ambiente, à facilidade da criação de monopólios econômicos e ao risco de não haver mais ordem social e justiça. Para os que não acreditam na viabilidade dessa filosofia, há uma imensa desconexão entre os ideais ancap e a complexidade e o desafios práticos da vida contemporânea.

Utopia x realidade

Ainda não existem exemplos concretos de países, cidades ou territórios realmente anarcocapitalistas – o que, para muitos, é o suficiente para classificar esse sistema como um delírio utópico. Libertários como Raphaël Lima, no entanto, contestam o uso dessa expressão. “Se a definição de utopia é uma sociedade planejada e idealizada, o anarcocapitalismo se coloca totalmente como o contrário disso. Ele é uma antiutopia, pois não quer desenhar ou impor um modelo para o futuro”, afirma.

“Outra definição de utopia é algo que nunca vai se realizar. Mas se você pudesse voltar no tempo, em 1512, e perguntar para uma pessoa se um dia a escravidão acabaria, ela com certeza iria te achar um maluco, porque não entraria na cabeça dela que isso pudesse vir a acontecer”, conclui.

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