Professora da Universidade de Cambridge e da Academia Real Inglesa, Mary Beard é uma das maiores pesquisadoras da Antiguidade Clássica em atividade.
Especialista em história romana, ela publicou livros que extrapolaram o ambiente acadêmico e se tornaram best-sellers mundiais, como ‘SPQR: Uma História da Roma Antiga’ e ‘Imperador de Roma’ – lançado neste ano no Brasil pelo selo Crítica.
Neste mais recente trabalho, Beard discute o que significava ser um soberano no passado e revela como era a vida cotidiana dos imperadores. Como no trecho a seguir, em que a autora mostra o que figuras como Calígula, Tito e Cômodo, entre outros, gostavam de fazer em seus momentos de lazer.
O imperador Cômodo era conhecido por ser um gladiador amador e caçador de feras selvagens, tão apaixonado que alguns desconfiavam de que o entusiasmo que corria em suas veias fora herdado do lutador que se dizia ter sido amante da mãe dele e seu pai biológico.
Em 192 d.C., poucas semanas antes de ser morto por seu treinador num golpe palaciano, Cômodo organizou 14 dias de espetáculos sangrentos no Coliseu, em que ele próprio foi um dos participantes estelares.
Segundo [o historiador romano] Dião Cássio, que foi testemunha ocular, o imperador abriu as sanguinolentas festividades matando 100 ursos no primeiro dia.
Foi mais um tributo à sua pontaria precisa que à sua coragem, pois ele não se arriscava a chegar muito perto dos animais, preferindo atingi-los com lanças em passarelas seguras construídas especialmente acima da “arena” (em referência à harena, ou areia, que a recobria).
Nas manhãs dos dias seguintes, ele desceu ao chão da arena, mas só para abater animais menos perigosos ou feras selvagens já aprisionadas em redes: um pobre tigre, um hipopótamo e um elefante, entre outros.
À tarde, o imperador fazia o ato de abertura, sempre sem correr perigo (ou “brincadeira de criança”, nas palavras de Dião). Armado com uma espada de madeira, travava uma luta-exibição com um gladiador profissional usando somente um bastão como arma.
Assim que vencia, como sempre, Cômodo voltava para seu camarote imperial para assistir às lutas “verdadeiras” pelo resto do dia
Foi durante uma dessas celebrações que o imperador cortou a cabeça de um avestruz, aproximou-se de Dião e de outros senadores sentados na primeira fila e acenou com um sorriso ameaçador.
A afirmação do historiador de que sentiu vontade de rir sem dúvida refletia uma demonstração de resistência ou desdém dos senadores na época, mas no geral seu relato sarcástico dos 14 dias de “palhaçadas” é típico da guerra de palavras tantas vezes travada depois de imperadores terem caído em desgraça, sido depostos ou estarem mortos.
Independentemente do ponto de vista de Dião, fica claro que se presumia que Cômodo era treinado nas artes da arena. Este foi um dos temas memoráveis do filme ‘Gladiador’, que reconstruiu os combates de gladiadores de forma mais precisa e realista que a maioria das tentativas modernas no cinema (que se resumem a duelos de capa e espada um tanto higienizados).
Na Antiguidade, contudo, também houve muitos comentários sobre Cômodo lutando em particular como gladiador, de verdade (às vezes matando seus oponentes, ou só cortando um nariz ou uma orelha), sobre os milhares de animais que abateu, inclusive rinocerontes e uma girafa, e sobre ele ter um aposento privado nos alojamentos dos gladiadores.
Havia até rumores fantasiosos de que – se não tivesse sido assassinado – teria logo executado os cônsules e assumido seus cargos, aparecendo como cônsul em trajes de gladiador.
E Cômodo não foi o único imperador com reputação de gostar dessas lutas e não se limitar ao papel de espectador.
Adriano foi outro, assim como Calígula, que consta ter matado um gladiador profissional armado com uma espada de brinquedo, com o imperador equipado com uma adaga de verdade (uma das mensagens dessa história é que nunca se podia confiar em que um imperador jogasse de acordo com as regras).
Os escritores romanos costumavam especular a respeito do que os imperadores faziam em seus momentos de “lazer”, ou “tempo livre”, como nós diríamos. De certa forma, esses termos são enganosos quando aplicados ao mundo de qualquer autocrata, antigo ou moderno.
Na vida de um monarca, a divisão entre trabalho e lazer é sempre difusa. O que o imperador fazia, em qualquer contexto – na cama ou no campo de batalha, no Senado ou na arena de esportes –, refletia, como vimos no caso de seus jantares, no modelo do seu governo.
No entanto, havia uma diferença entre as tarefas burocráticas, os discursos no Senado, o julgamento de casos legais e o que optasse por fazer quando livre de seus deveres oficiais.
Os termos romanos não correspondem aos nossos de hoje, mas havia um contraste significativo entre otium – que costuma ser traduzido como “lazer”, porém mais precisamente era “o que você fazia quando estava no controle do seu tempo” – e seu oposto “negotium”, “trabalho”, ou “o que você precisava fazer quando não estava no controle do seu tempo”.
As diversas visões que temos do otium do imperador variam do previsível ao pitoresco, do sombrio ao revelador.
Os imperadores eram frequentemente elogiados por levar a sério o estudo da literatura e da oratória, por escrever poesia, tocar música (em particular), por praticar exercícios saudáveis como boxe, luta livre, corrida e natação, e por pintar (é difícil imaginar esses homens como aquarelistas requintados, mas essa – ou algo semelhante – foi uma habilidade atribuída a Adriano, a Marco Aurélio e a Alexandre Severo).
Alguns podem ter tido passatempos mais idiossincráticos. Além de fazer perguntas complicadas aos convidados para jantar com base em suas leituras recentes, Tibério tinha um interesse obsessivo e desproporcional pelas vias arcanas da mitologia, sobre as quais costumava interrogar os especialistas (“Qual era o nome da mãe de Hécuba?”).
Tito parece que gostava de imitar a caligrafia de outras pessoas, levantando o espectro do imperador como falsificador.
Os passatempos de outros expunham lados ainda piores, como a tortura solitária de moscas praticada por Domiciano ou as arruaças noturnas de Nero, Lúcio Vero e Cômodo, os quais – à maneira de alguns reis e príncipes posteriores – supostamente saíam à noite, disfarçados, em busca de malandros para arrumar uma briga.
Cláudio não só tinha uma fraqueza por jogos de tabuleiro, como muitos outros imperadores, mas também era tão aficionado por jogos de azar que escreveu um livro a respeito. Aqui, a incômoda pergunta era até que ponto a própria autocracia podia ser um jogo de azar.
Foi o que Júlio César insinuou já ao atravessar o rio Rubicão em 49 a.C. e começar a guerra civil que levou ao governo de um homem só, com sua famosa declaração: Alea iacta est, “A sorte está lançada”. O Império como um jogo de tabuleiro?
No entanto, as preferências recaíam em várias formas de entretenimento popular, de combates de gladiadores a corridas de bigas e espetáculos teatrais, quando o papel dos imperadores era uma combinação variável de admirador entusiasta, anfitrião generoso e ocasional participante.
Hoje em dia, há uma tendência de amontoar todos esses entretenimentos juntos, muitas vezes sob o rótulo cativante, porém equivocado, de Juvenal de “pão e circo” – resumindo satiricamente as propinas e distrações oferecidas à ociosa plebe romana sob o domínio dos imperadores (e fornecendo um bordão clássico utilizado pelos opositores dos serviços estatais, benefícios e subsídios alimentares desde então).
Os entretenimentos, contudo, eram muito diferentes uns dos outros em caráter, com plateias significativamente diversas e tradições históricas, religiosas e culturais distintas. E evocavam diferentes debates sobre como o imperador deveria, ou não deveria, se comportar nos seus momentos de “lazer” ou quando sob o olhar das multidões.
Alguns desses debates podem parecer à primeira vista pouco mais que a indignação moral de comentaristas conservadores da Antiguidade (“Como o imperador pode se rebaixar, e a nós, tornando-se um ator”).
Uma análise mais aprofundada revela que as reclamações aparentemente estereotipadas contra o imperador desfilando no palco eram algumas das análises mais perspicazes que chegaram até nós dos problemas do governo de um homem só de Roma.
Ao contrário do que os filmes mostram, público das arenas era "ostensivamente ordeiro"
O lugar usual do imperador no Coliseu – quando não estava se equilibrando em passarelas para flechar ursos – era o camarote imperial, no centro de um dos semicírculos mais alongados da arena oval.
De lá, ele assistia a um programa de espetáculos que às vezes durava dias, normalmente apresentando abate de animais (ou animais instigados a se matarem), execução de criminosos com diversas formas de punição sádica (que acabariam como “jogar cristãos aos leões” e coisas piores) e lutas entre gladiadores, chegando até a morte.
Seu lugar era o melhor e o mais espaçoso da casa, embora não tenha sido suficientemente preservado para sabermos o quanto era luxuoso.
Dali ele não só assistia aos espetáculos na arena abaixo como também tinha uma visão clara de grande parte da plateia: umas 50 mil pessoas, organizadas em rigorosa ordem hierárquica, com cidadãos do sexo masculino trajados segundo a lei para a ocasião, com suas togas formais (e aqui, diferentemente das regras de Augusto para o Fórum, tratava-se de um código de vestimenta obrigatório: era proibido entrar sem toga).
No Coliseu não havia como pagar por lugares melhores (é provável que a entrada fosse gratuita). Cada um se acomodava de acordo com seu status formal na hierarquia romana, numa espécie de microcosmo da ordem social.
Segundo o sistema básico, os senadores ocupavam as primeiras fileiras, com uma visão privilegiada (mesmo que às vezes perigosamente perto da ação); os “equestres” da elite ficavam logo atrás, e assim por diante, com as pessoas cada vez mais apertadas e distantes da ação, até chegarem ao alto – a mais de 50 metros da arena –, onde ficavam os mais pobres, as mulheres e os escravos.
As únicas mulheres, além das pertencentes à família imperial, que tinham uma boa visão da matança eram as Virgens Vestais, sacerdotisas de elite com lugares reservados em algum ponto perto das primeiras filas.
Longe de ser uma multidão descontrolada clamando por sangue, como muitas vezes é imaginado, o público no anfiteatro era ostensivamente ordeiro, e todos usavam seus melhores trajes formais. Nenhum filme jamais mostrou isso.
Parecia mais uma plateia de uma ópera atual que uma multidão enlouquecida – e proporcionava ao homem que olhava do camarote imperial um retrato do “seu” povo, ou da maioria dos seus homens, em desfile.
Na cidade de Roma, os espetáculos públicos desse tipo passaram a ser associados quase exclusivamente ao imperador.
As primeiras lutas de gladiadores eram privadas e de pequena escala, e parecem ter começado como parte do ritual de funerais aristocráticos no século III a.C., com alguns combates ocasionais apresentados como diversão por anfitriões ricos depois do jantar.
A prática se disseminou por todo o Império, junto com caçadas de animais, como a forma característica de “entretenimento” romano global, em geral patrocinada por figurões locais, com trupes de gladiadores e campos de treinamento de iniciativa privada. Na capital, porém, tornou-se um dos espetáculos sob a rubrica do governante, e em grande escala.
Nos primeiros tempos, os espetáculos aconteciam em uma variedade de locais improvisados. Júlio César apresentava caçadas de animais selvagens no Fórum, e Augusto às vezes adaptava o supérfluo salão de votação a lutas de gladiadores.
O primeiro anfiteatro permanente construído para esse fim na cidade foi parte do programa de novas construções de Augusto, patrocinado por um de seus homens de confiança (“anfiteatro” porque, ao contrário de um “teatro” comum, os assentos ficavam ao redor da arena central).
Um século depois, Vespasiano e Tito, pai e filho juntos, causaram um impacto maior ainda ao usarem os despojos da guerra contra os judeus na construção do Coliseu, estrategicamente localizado como um local de prazer para o povo, onde antes ficava a área verde semiprivada da Casa Dourada de Nero.
Enquanto isso, os gladiadores eram cada vez mais de propriedade e treinados com o dinheiro do imperador, os animais eram adquiridos e transportados por seus homens, e os espetáculos, produzidos e financiados exclusivamente por ele, ou às vezes – numa escala mais modesta – por quem tivesse sua autorização.
Os sucessivos imperadores se vangloriavam dos espetáculos e das matanças que proporcionavam: 10 mil gladiadores exibidos ao longo de seu reinado (Augusto); 5 mil animais mortos num único dia (Tito); 11 mil animais massacrados ao longo de 123 dias (Trajano); e muito mais.
Dião Cássio alertou aos seus leitores para não aceitarem esses números exagerados, mas o exagero e a ostentação faziam parte do propósito. Sem dúvida era difícil para um imperador encontrar o equilíbrio certo entre ser entusiasta demais e não entusiasta o suficiente em relação a esses espetáculos.
Alguns imperadores questionaram a violência repugnante dos procedimentos. Nero foi um dos menos entusiasmados com o anfiteatro, e consta que presidiu um evento em que ninguém, “nem mesmo um criminoso”, foi executado.
(Nero não deve ter gostado quando, em uma exibição fatal, um acrobata caiu das alturas e espirrou sangue nele.)
Marco Aurélio também era conhecido por ser avesso à violência e afirmou, de maneira um tanto arrogante em suas Anotações para si mesmo, que achava esses espetáculos “entediantes” por serem sempre os mesmos: matanças e mais matanças, presumivelmente.
Na verdade, quando o imposto sobre a venda de gladiadores foi abolido em todo o Império no seu reinado, em 177 d.C., parte da justificativa foi que o tesouro imperial “não deveria ser contaminado com respingos de sangue humano”.
No entanto, é difícil não desconfiar de que suas objeções fossem mais teóricas do que práticas. Essas preocupações morais, ou seu tédio maçante, não o impediram de promover os próprios espetáculos com gladiadores, que imagino não fossem pouco sangrentos.
A violência desses espetáculos era escabrosa. Por mais que tentemos explicá-los, como historiadores modernos têm feito, em termos de psicologia de massa, perversão do militarismo romano ou de uma exploração ritual da morte, o resultado final era horrendo.
Afirmar que eles ocorriam com muito menos frequência do que tendemos a imaginar (espetáculos gigantescos aconteciam com intervalos de muitos anos) não é suficiente para mitigar o horror. Nem o fato de o número de vítimas provavelmente ser menor do que se supõe.
Apesar das bravatas imperiais, seria necessário mais do que os recursos de um imperador para trazer muitos hipopótamos ou girafas a Roma, e gladiadores treinados eram muito valiosos para serem “desperdiçados” em constantes lutas até a morte.
Mesmo que a crueldade em si seja agora difícil de explicar, porém, podemos detectar uma lógica arrepiante no que acontecia na arena.
Essas ocasiões não só eram um desfile das micro-hierarquias da sociedade romana, mas também marcavam uma divisão ainda mais fundamental: entre nós da plateia e eles, os que lutavam, sofriam ou morriam na arena.
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