Nos últimos cinquenta anos desde o fim da era Mao, o Partido Comunista Chinês tem contado com uma classe média crescente e cada vez mais próspera para sua legitimidade. Embora cerca de 600 milhões de chineses ainda vivam com cinco dólares por dia e talvez mais 200 milhões de migrantes rurais em cidades de primeira ou segunda linha vivam com 15 a 25 dólares por dia, eles têm pouca esperança de melhorar de vida por causa do Hukou, o rígido sistema de passaporte interno do regime.
Os portadores do Hukou rural não são os cidadãos com os quais o partido fez seu acordo de prosperidade crescente em troca do apoio tácito ao regime. São os cidadãos mais educados e móveis de Pequim, Xangai, Shenzhen e Guangzhou, e nas inúmeras cidades de segunda linha nos quais o Partido Comunista Chinês (PCCh) depende.
E é esse grupo, com um Hukou urbano, aproximadamente 600 milhões, que está tendo uma mudança profunda de perspectiva. Para eles, a esperança de um futuro melhor foi esmagada. Eles foram brutalizados durante os confinamentos da Covid, o que levou a uma tensão generalizada nas cidades. O regime reconheceu essa crise social acabando com os confinamentos quase da noite para o dia. Ao contrário de grande parte do mundo pós-Covid, a China permanece atolada em dificuldades econômicas. A classe média urbana está acordando para a realidade. E isso representa um desafio significativo para o partido.
De fato, a legitimidade da República Popular da China, pelo menos nas últimas duas décadas, baseou-se no acordo tácito do regime com a classe média urbana de proporcionar sua crescente prosperidade pessoal em troca de abandonar a democracia e todos os seus apetrechos (uma imprensa livre, liberdade de expressão, liberdade religiosa e assim por diante). Com a ascensão de Xi Jinping ao cargo de secretário-geral do PCCh em 2012, o conceito foi institucionalizado como o "Sonho Chinês". Xi chamou para uma rejuvenescimento nacional e para a grandeza da China. Articulando a visão em 2012, ele pediu para o país ser "uma sociedade moderadamente próspera até 2021", o centenário do PCCh, e ser um país totalmente desenvolvido até 2049, o centenário da República Popular da China.
Doze anos depois, o Sonho Chinês de Xi está morto. O desemprego entre os residentes urbanos com ensino superior é de 20 por cento ou mais. Os confinamentos criaram ressentimento e raiva, e o crescimento econômico estagnou. Na realidade, provavelmente está diminuindo, apesar das estatísticas oficiais em contrário.
A classe média não acredita mais que as coisas continuarão a melhorar para eles. Isso poderia levá-los a questionar tudo mais. A espiral descendente lançou uma sombra sobre tudo. A bolha imobiliária urbana que criou uma percepção de prosperidade explodiu, e não há nada para substituí-la. Para aqueles que ainda têm emprego, os salários estão despencando e a moeda está se desvalorizando para impulsionar as exportações. Cada vez mais trabalhos altamente qualificados estão sendo feitos por robôs, satisfazendo os objetivos da política industrial do PCCh. A produção de robôs, segundo uma análise do Center for Strategic and International Studies (CSIS), aumentou em um fator de 20 desde 2012. Um terço das vendas globais de robôs é para a China.
De todas as direções, os habitantes urbanos mais jovens e educados estão cercados por desespero. Eles veem apenas futilidade no acordo que gerações anteriores fizeram, e não estão interessados. Os jovens estão desistindo — não querem casamento, filhos, a busca implacável por empregos cada vez mais escassos que não levarão à prosperidade e mobilidade econômica. É um reconhecimento explícito de outra construção social conhecida como "996" — trabalhar das 9h às 21h seis dias por semana. Os habitantes urbanos mais jovens e educados não aceitam isso.
Embora não possam escolher seus líderes no sentido democrático, os chineses de classe média também estão começando a votar com os pés. Em um sinal ominoso para Xi e o partido, a emigração ilegal da China está aumentando. Segundo relatos da Bloomberg em dezembro passado, a imigração ilegal da China para os EUA aumentou mais de 100 por cento nos últimos anos, com mais de 60 mil cruzando a fronteira desde o final de 2022.
O programa 60 Minutes, da rede de televisão americana CBS, recentemente transmitiu um segmento no qual recém chegados foram entrevistados enquanto cruzavam a fronteira dos EUA. Eles explicaram que vieram em busca de trabalho e uma sensação de esperança.
Existem muitas razões para isso. As perspectivas econômicas em declínio na China estão no topo da lista. O colapso imobiliário acabou com as economias de uma vida inteira de muitas pessoas. O deserto demográfico causado em parte pela desastrosa política de um filho, que agora foi abandonada, resultou em uma população em encolhimento. Sem uma rede social significativa, um único filho muitas vezes tem que sustentar dois pais idosos e quatro avós. As mulheres solteiras não têm perspectivas, com homens empregados não tendo benefícios urbanos do Hukou, então muitas estão abrindo mão de ter filhos completamente. Um homem com Hukou rural é negado muitos dos benefícios da cidadania em áreas urbanas. Esses homens não podem mandar seus filhos para escolas urbanas do Hukou ou usar instalações médicas e outros serviços urbanos do Hukou.
O que é notável é quantos desses parecem vir da classe média da China. A reportagem da CBS mostra adultos bem vestidos, famílias com crianças, jovens adultos e outros vindo com bagagem de mão, alguns deles passando por uma abertura na cerca da fronteira.
Há uma preocupação compreensível de que alguns desses migrantes possam estar vindo para se envolver em atividades criminosas, incluindo espionagem econômica e de segurança nacional e para fins relacionados. Alguns podem muito bem estar afiliados ao comércio ilegal de drogas e facilitando a crise de fentanil, que tem raízes na China. O governo dos EUA está certo em se concentrar nessa possibilidade e tomar as precauções necessárias para evitá-la. Mas seria uma leitura equivocada significativa da situação presumir que a maioria dos dezenas de milhares que cruzam a fronteira o fazem por qualquer motivo que não seja que desistiram da China e sabem que não seriam bem-vindos de volta de qualquer maneira. Muitos desses estão claramente prontos para trocar o Sonho Chinês pelo Sonho Americano.
Está em curso na economia chinesa um ciclo negativo sério que contribui para a mentalidade negativa. Com os desafios econômicos em jogo, os gastos do consumidor diminuíram e as economias domésticas aumentaram acentuadamente. Segundo o Instituto Peterson de Economia Internacional, os depósitos domiciliares no primeiro semestre de 2023 atingiram um recorde histórico, aumentando 15 por cento em relação ao ano anterior.
Mesmo antes da desaceleração nos gastos, o consumo como percentual do PIB na China normalmente ficava atrás de outros países. A desaceleração resultante nos gastos do consumidor está contribuindo tanto para o aumento do desemprego quanto para a redução dos salários, que está vendo reduções de dois dígitos, especialmente em posições de mão de obra qualificada de classe média urbana. Isso, por sua vez, alimenta a desaceleração do consumo e a necessidade de poupar mais, e o ciclo continua.
Razões políticas também estão em jogo na mentalidade de classe média na China. As recentes eleições em Taiwan são um exemplo disso. O resultado foi visto como levemente favorável à China porque o partido mais alinhado ganhou a maioria dos assentos no legislativo, enquanto o mais inclinado à independência venceu a presidência apenas com uma pluralidade dos votos, não uma maioria. Mas, independentemente desse resultado, a mensagem real é que os cidadãos chineses de classe média em Pequim, Xangai e outras cidades veem sucessivas eleições multipartidárias em Taiwan, que o PCCh afirma fazer parte da China, e entendem que a promessa de rejuvenescimento de Xi em um sistema autoritário de um partido único é vazia. A democracia liberal "é um claro insulto à narrativa do PCCh", de acordo com Chong Ja Ian, da Universidade Nacional de Cingapura, citado pela Reuters.
Outro aspecto ominoso da situação atual no continente é o quanto da atividade econômica foi entregue ao setor informal. Isso inclui trabalhos intensivos em mão de obra, incluindo vendedores de rua, trabalhadores domésticos, entregadores — a economia do trabalho autônomo, em grande parte. De acordo com uma análise detalhada do CSIS (Center for Strategic and International Studies - Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais) em parceria com o Centro de Economia e Instituições da China da Universidade Stanford, o emprego urbano na economia informal agora é de 60 por cento, mais que dobrando nos últimos 20 anos.
Como observado no estudo, os países com uma grande economia informal também enfrentam uma base tributária em declínio, entre outros resultados negativos. Com mais robôs assumindo posições qualificadas, os trabalhadores urbanos são forçados a aceitar empregos abaixo de suas qualificações, criando uma sensação de desesperança, uma perda de confiança de que suas vidas melhorarão com o tempo. No geral, isso acabou com a percepção de que a China está avançando para se tornar uma economia desenvolvida; a classe média vê seu país regredindo, não avançando. Essa observação é acompanhada por uma aceleração da queda nos padrões de vida e, é claro, no crescimento econômico e na prosperidade.
A China é um estado autoritário, com características totalitárias. Todo aspecto da sociedade é monitorado pelo governo. A informação é rigorosamente controlada, e tudo o que o Ocidente vê sobre a vida na China é o que o governo quer que seja visto. Mas as rachaduras e fissuras estão se tornando muito óbvias para serem ignoradas. A migração externa da classe média é um indicador óbvio de que o regime enfrenta uma séria ameaça à sua capacidade de moldar a narrativa.
Não deve haver dúvida de que isso levará a tentativas ainda mais desesperadas do partido para manter o controle e reverter essas tendências. O governo está na ofensiva. O PCCh está a pleno vapor para mudar as impressões de uma nação em declínio. O primeiro-ministro Li Qiang voltou a Davos este ano, não citando Lincoln como Xi Jinping fez quando esteve lá no início de seu mandato, mas assegurando aos líderes e empresários ocidentais que a China está aberta e recebe investimentos.
Mas os tempos mudaram.
Desde que Xi declarou sua visão para o Sonho Chinês, não dá mais para tapar o sol com a peneira. Os EUA e aliados com mentalidade semelhante entendem que a China não busca um engajamento liberal, orientado para o mercado. O continente absorveu Hong Kong, infelizmente, em todos os aspectos práticos. Que o PCCh faria o mesmo com Taiwan se o resto do mundo concordasse é claramente entendido, e está crescendo a aceitação de que permitir isso seria um desastre.
O abandono do Sonho Chinês pela classe média urbana e educada pode não ser o fim do regime. Mas para manter seu controle, até mesmo monarcas absolutos do passado dependiam do consentimento dos nobres. Eventualmente, esse controle foi cedido, e os nobres ganharam mais agência sobre suas vidas — veja, por exemplo, a Magna Carta na Inglaterra. Isso é da natureza humana. Quando as pessoas sentem que não têm perspectivas de melhorar sua situação, pelo menos procuram maneiras de expressar sua raiva.
Na China, não há mais alavancas para o governo puxar para estimular e controlar a economia, e as classes médias podem começar a tomar outras decisões para expressar frustração. O rápido levantamento das restrições de "zero Covid" pelo regime, em resposta à resistência ativa e passiva ao programa do governo, é o exemplo mais óbvio recente. Assim também demonstra a classe média em fuga do país. O povo chinês está ansioso porque sabe que o acordo com o regime está desmoronando. É impossível saber para onde isso levará, e espero que permaneça pacífico. Mas uma coisa é clara: o Sonho Chinês de Xi tornou-se um pesadelo para as mesmas pessoas das quais seu partido depende para sua legitimidade.
Thérèse Shaheen é empresária e CEO da US Asia International. Ela foi presidente do American Institute in Taiwan do Departamento de Estado dos EUA de 2002 a 2004.
©2024 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês: Xi Jinping’s ‘China Dream’ Is Dead
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