A oitava mais bem avaliada revista de epidemiologia do mundo publicou uma revisão sobre a eficácia da hidroxicloroquina (HCQ). Com base em sete estudos com o mais alto nível de rigor da pesquisa médica, a conclusão foi que a HCQ diminuiu o risco de agravamento dos sintomas de Covid-19 em cerca de 28%, se tomada antes da exposição ao vírus, mas não se tomada após o quadro de sintomas se estabelecer. A Gazeta do Povo cobriu a publicação em matéria.
A respeitada agência de notícias Reuters, em sua seção de checagem de fatos em português, publicou uma verificação a respeito da cobertura dada à revisão nas redes sociais. O título dá foco a dois pontos: que o estudo “não prova eficácia” da HCQ, “nem foi feito por Harvard”.
No corpo do texto, a Reuters aponta para publicações nas redes sociais que chamaram a atenção para a revisão com “alegações falsas” e relata que os especialistas consultados “apontaram falhas na metodologia da pesquisa”.
Usurpando os meios oficiais do debate
Uma das frases mais reveladoras da checagem da Reuters é “a publicação não menciona que há comprovação científica de sua eficácia”. Ora, mas não mencionar “comprovação científica” é um problema de quase todo artigo científico em áreas que dependem de dados empíricos (acessíveis aos sentidos) como a medicina. Os artigos quase sempre apresentam uma linguagem cautelosa e humilde a respeito do que pode ser afirmado com base nos dados a que tiveram acesso sobre o fenômeno sob investigação, e buscam organizar a incerteza com as ferramentas da estatística.
“Comprovação científica” é mais um termo que se vê em jornais do que em publicações especializadas. Não é sequer um termo favorecido por filósofos da ciência, que preferem falar em “corroboração”, acúmulo de evidências, resolução de quebra-cabeças (termo de Thomas Kuhn, filósofo da ciência que enfatizou a sociologia da comunidade científica e a história da ciência com períodos de ‘ciência normal’ interrompidos por ‘revoluções científicas’) e, quando há um vocabulário com mais convicção, é na direção da refutação, não da confirmação — como fez Karl Popper, filósofo da ciência considerado rival de Kuhn que enfatizava mais a lógica da justificação das teorias científicas. “Prova” e “comprovação” são termos mais adequados para demonstrações de teoremas na matemática ou deduções na lógica. O problema do vocabulário leigo da checagem se repete em “o próprio estudo não pode ser tratado como uma prova da eficácia” — de fato, até porque o propósito de estudos médicos não é dar “prova” de coisa nenhuma, a rigor.
Ao ouvir acriticamente os especialistas entrevistados, a Reuters acabou repetindo o erro cometido por eles apontado pela própria revisão: a “falácia da linha nítida”. Isso fica evidente quando a agência fala em “sólidos ensaios clínicos já descartaram benefícios do medicamento” e “pesquisas sólidas demonstraram sua ineficácia”. A questão é justamente a tal “solidez” estatística dos artigos e se a interpretação está correta. Como explicou a Gazeta do Povo, há convenções estatísticas que estão sendo interpretadas incorretamente por uma quantidade alarmante de pesquisadores, e quem faz o alerta são especialistas em matemática e estatística, além de mais de 800 cientistas que assinaram uma carta ao periódico científico Nature logo antes da pandemia, em 2019. O fórum apropriado para esse debate entre cientistas médicos e especialistas em estatística são as revistas acadêmicas, não agências jornalísticas.
Outra correção da Reuters que é desnecessária é a insistência de que não é um estudo “de Harvard”. Ora, com “de Harvard” não se quer dizer necessariamente que a Universidade Harvard foi a fonte de financiamento. É um apelo à autoridade feito pelos empolgados com uma conclusão positiva da revisão, que também apresenta conclusão negativa a respeito da profilaxia pós-exposição. Mas apelos à autoridade da instituição de alguns dos participantes, incluindo o primeiro autor, não são a mesma coisa que uma “falsidade” simples e demonstrável por checagem jornalística. Mais uma vez, a checagem pisa fora de sua seara. O fato é que todos nós dependemos da opinião de especialistas em áreas que não dominamos, e com frequência usamos o prestígio de instituições como Harvard para dar um peso de confiabilidade ao que lemos e ouvimos.
Falta de generosidade
Muitos filósofos contemporâneos insistem que uma postura correta em um debate qualquer é a generosidade interpretativa: em vez de furar buracos nos detalhes do que está sendo dito por um adversário, faz-se a melhor versão possível da opinião dele, para então criticá-la. Em vez de se fazer um espantalho da opinião alheia, faz-se um “homem de ferro” dela. A postura da checagem parece ser o contrário: interpretar com a menor generosidade possível o que leigos dizem em redes sociais sobre publicações especializadas que não entendem completamente, por exemplo presumindo que “de Harvard” quer dizer muito mais que “há cientistas institucionalmente afiliados a Harvard entre autores do estudo”.
Uma forma de exercer a generosidade interpretativa é pela reinterpretação do que outra pessoa quer dizer de um modo que torne as alternativas mais claras. Como foi feito na Gazeta do Povo: se a revisão corrobora o “tratamento precoce” isso depende do que se quer dizer com esse termo. Se é profilaxia pré-exposição, sim. Se é profilaxia pós-exposição, não.
Ao menos a Reuters entrevistou um dos chefes da revisão, Miguel Hernán, e deu a ele a oportunidade de rebater às críticas. No entanto, vale lembrar que o leitor comum não entenderá a natureza das críticas, e a checagem não é o fórum apropriado para o debate. Fica uma impressão de que os críticos estão descontentes que a revisão de Hernán tenha passado no crivo da revista de epidemiologia e aproveitarão a oportunidade da checagem para insinuar que algo de pouco rigoroso foi feito pela revista. Ainda que seja verdade, foge ao escopo de uma checagem jornalística.
Outra impressão é que a checagem pode ser usada de bom grado como pressão política sobre a revista por ter pisado fora da linha de uma ortodoxia, especialmente quando é entrevistada a editora-chefe da revista, que fala em “investigação”. Ora, a fase de investigação deve acontecer preferencialmente antes da publicação do artigo, críticas posteriores deveriam ser apresentadas em novos artigos e não como uma tentativa de retratar o artigo por blasfêmia. Tudo o que o leitor vê é um lado alegando que os estudos usados na revisão são de “baixa qualidade”, e outro lado respondendo que não são. Há uma verdade a ser checada, mas jornalistas não estão qualificados para fazê-lo.
O fato (checável) é que a revisão não agrada a gregos nem a troianos, mas a bronca dos autores é evidente: é com o consórcio informal de alguns pesquisadores, personalidades das redes sociais e alguns jornalistas que interpretaram incorretamente os dados dos primeiros estudos da hidroxicloroquina, dando uma falsa certeza de “ineficácia comprovada”, o que criou uma pressão de parte da opinião pública que terminou por encerrar prematuramente os outros estudos.
Algumas das publicações das redes sociais acusadas de falsidade estão sob censura, por exemplo, do Instagram, que diz que o conteúdo de uma manchete correta da Revista Oeste (apresentada na forma de imagem) a respeito da revisão é “falso” e credita a demonstração de falsidade à Reuters. A Reuters chama de falso também um conteúdo publicado no Instagram da própria Oeste, onde o Instagram curiosamente não aplicou a mesma censura, apesar do conteúdo quase idêntico das duas publicações. Parece que a censura é permissível quando o alvo é um usuário individual sem muitos recursos para se defender. Ser citado como motivo para uma censura é uma grande responsabilidade para ser carregada por um veículo jornalístico, que deveria prezar pela plena liberdade de expressão inclusive para coisas falsas serem ditas. A solução para falsidades é mais expressão, não menos.
Ocorre que, em se tratando de pesquisa empírica, o que parece falso hoje pode se revelar verdadeiro amanhã, e não há nenhum método infalível de “checagem” jornalística que possa substituir a pesquisa que causa esse tipo de reviravolta. Talvez o que esse estado de coisas reflita é que há uma concordância tácita de linhas editoriais entre o Instagram e a Reuters, que partilham de uma visão de mundo, e uma animosidade às linhas editoriais de publicações como a Oeste e a Gazeta do Povo. Sob o pretexto paternalista e condescendente de substituir o leitor na sua responsabilidade individual de refinar suas crenças na direção da verdade, exerce-se uma aplicação seletiva de políticas vagas de moderação de conteúdo. Aos amigos tudo, aos inimigos, a checagem.
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