A agência de cinema da prefeitura de São Paulo tem publicado editais que reservam vagas para transexuais e pessoas “socialmente negras”.
A SPCine, financiada pelo poder municipal, distribui recursos de fomento à cultura e tem um orçamento anual de aproximadamente R$ 26 milhões.
A Política Afirmativa da SPCine existe desde 2021, quando a Portaria nº 01/2021 entrou em vigor. Além de cotas raciais, o órgão separa vagas para mulheres e pessoas que se identificam como transexuais.
A SPCine responde à Prefeitura de São Paulo. O órgão se apresenta como “a empresa de cinema e audiovisual de São Paulo, iniciativa da Prefeitura de São Paulo com foco no desenvolvimento dos setores de cinema, TV, games e novas mídias”.
A prefeitura é comandada por Ricardo Nunes (MDB), que busca a reeleição e tem o apoio do PL, do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Cotas chegam a maioria das vagas
As normas da SPCine afetam, por exemplo, editais abertos por meio da Lei Paulo Gustavo de fomento à cultura.
A lei, em vigor desde 2022, ajuda a custear eventos e produções artísticas.
Uma das seleções afetadas foi o edital 06/2023 da Lei Paulo Gustavo, tinha como objetivo selecionar dez projetos de audiovisual. Cada um receberia R$ 100.000. A SPCine destinou seis vagas a minorias: duas para "socialmente negros", uma para mulheres, uma para indígenas, uma para pessoas que se identificam como transexuais e uma para pessoas com deficiência. Para concorrer no sistema de “ações afirmativas”, o projeto precisa ser apresentado por (ou ter como responsável artístico) uma pessoa dessas categorias.
Outro edital de eventos, mostras e festivais, adotou os mesmos critérios de reserva de vagas. O mesmo vale para uma seleção de roteiristas.
No mesmo ano, o órgão também lançou um edital de R$ 4,4 milhões de reais para financiar desenvolvedores de jogos eletrônicos. A iniciativa tinha como objetivo selecionar até 11 projetos, cada um no valor de R$400 mil reais. Desses, seis foram direcionados ao sistema de cotas.
Características físicas são julgadas por comitê
Pelo manual da SPCine, a definição de “socialmente negro” se baseia em aspectos fenotípicos (ou seja: as características físicas). Nas palavras do órgão, esse é “o indivíduo que apresenta características fenotípicas de pessoa negra (preto ou pardo) que assim seja socialmente reconhecida, não sendo suficiente apenas sua identificação pessoal e subjetiva”.
A portaria de 2021 da SPCine estabelece que os candidatos à reserva de vagas para negros devem encaminhar uma foto “de rosto inteiro, do topo da cabeça até o final dos ombros, com fundo neutro, sem sombras e datada há, no máximo, 30 (trinta) dias”.
Curiosamente, embora tenha uma categoria específica para pessoas que se identificam como transexuais, o edital também permite que pessoas autodeclaradas “mulheres trans” se inscrevam nas cotas para mulheres. A SPCine afirma que mulher é quem “se identifica com o gênero feminino independente do gênero ao qual foi designada em seu nascimento (mulher cis e mulher trans)”.
Em janeiro deste ano, uma portaria da SPCine expandiu a política de ações afirmativas. Agora, o órgão também pode aplicar o chamado “Teste de Bechdel” a obras exibidas por iniciativa do órgão. O objetivo é analisar o conteúdo das produções previamente para “promover obras que contemplem a representatividade feminina, bem como o estabelecimento de critérios que contemplem a representatividade negra, indígena, Trans e PCDs e suas narrativas, bem como de pessoas em condição de vulnerabilidade socioeconômica”.
Para passar no "Teste de Bechdel", o filme precisa ter pelo menos duas mulheres que tenham no mínimo um diálogos entre si, e o assunto do diálogo não pode ser um homem.
Escritor critica política
O escritor e roteirista Alexandre Soares Silva critica a reserva de vagas a grupos minoritários. Para ele, o único critério dos editais deveria ser a qualidade artística. “A qualidade deve sempre prevalecer. Dar a função de roteirista para alguém não é uma esmola, uma recompensa para que se julga que sofreu demais. O que interessa é que as pessoas em casa vejam algo bom e bem-feito”, afirma.
Soares Silva também enxerga problema de ordem prática: “Se você selecionar entre a população inteira, já é difícil (muito, muito difícil) encontrar roteiristas com talento. Se você diminui a amostragem para só uma raça, um gênero, uma preferência sexual etc, fica mais difícil ainda", diz ele.
Uma lógica semelhante se aplica aos outros projetos financiados pela SPCine. Se as pessoas que se identificam como transexuais já são uma parcela reduzida da população, o número de desenvolvedores de jogos eletrônicos dentro desse grupo é infinitesimal.
Norma do Ministério da Cultura também prevê reserva de vagas
O governo federal também exige a reserva de vagas em editais da cultura, embora a percentagem seja menor que a estabelecida pela SPCine.
Um decreto publicado em 2023 pelo governo Lula modificou as regras estabelecidas pela Lei Paulo Gustavo e passou a exigir que 20% das vagas sejam direcionadas a negros, e 10% a indígenas.
A norma não trata de vagas reservadas para mulheres ou pessoas que se identificam como transexuais.
Na mesma época, o Ministério da Cultura também baixou uma instrução normativa determinando a reserva de vagas a certos grupos em projetos financiados pela Lei Adir Blanc — que é semelhante à Lei Paulo Gustavo mas tem caráter permanente.
O texto menciona “mulheres, pessoas negras, pessoas e povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, pessoas LGBTQIAPN+, pessoas com deficiência, pessoas idosas, pessoas em situação de rua, e outros grupos vulnerabilizados socialmente”. Mas, na prática, a exigência se restringe a três grupos: 25% das vagas devem ir para pessoas negras, 10% para indígenas e 5% para pessoas com deficiência. A norma também permite que a reserva de vagas seja expandida — o que fez a SPCine.
A reportagem da Gazeta do Povo procurou a SPCine e a Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo, mas não obteve resposta.
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