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Ozempocalipse?

Os EUA discutem o impacto que o Ozempic terá na saúde dos americanos — e os contornos desse debate também incluem cultura e política.
Os EUA discutem o impacto que o Ozempic terá na saúde dos americanos — e os contornos desse debate também incluem cultura e política. (Foto: Unsplash/Haberdoedas)

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O Ozempic atingiu um nervo peculiar da cultura americana. No Oscar de 2023, o apresentador Jimmy Kimmel brincou: “Todo mundo está tão lindo. Quando olho para esta sala, não consigo evitar de pensar: ‘Será que o Ozempic é pra mim?’”.

A plateia riu com desconforto. Assim como com a lipoaspiração, o Botox ou qualquer coisa que sugira uma beleza não “natural", Hollywood hesita em admitir sua afinidade com o remédio para diabetes que virou fenômeno de emagrecimento.

O Ozempic, uma das variações comerciais de uma classe de medicamentos conhecidos como agonistas de GLP-1, tornou-se um termo genérico para todos eles; usarei essa abordagem aqui.

Poucas celebridades recém-emagrecidas — ou até mesmo chocantemente magrasadmitiram usar Ozempic. A comediante e atriz Amy Schumer recentemente criticou seus colegas famosos por negarem o uso. Em um exemplo curioso da "cultura da autenticidade" devorando a si mesma, Schumer julgou necessário exigir que um grupo de artistas confessassem ter emagrecido por meios artificiais.

A dissimulação tem limites: procedimentos estéticos relacionados ao Ozempic tornaram-se comuns entre os cirurgiões plásticos da Califórnia. E, aparentemente, a perda rápida de peso traz seus próprios problemas estéticos.

O governo Trump também está dividido

Elon Musk celebrou a "droga milagrosa" no Natal, autointitulando-se o "Papai Noel do Ozempic" em uma postagem no X em que exibia sua perda de peso. O Dr. Mehmet Oz, escolhido por Trump para administrar o Medicare e o Medicaid, há muito é patrocinado pela farmacêutica Novo Nordisk para promover o Ozempic em seu programa de TV.

Já o recém-confirmado secretário de Saúde, Robert F. Kennedy Jr., repetidamente ataca a Novo Nordisk. Ele recentemente afirmou que a empresa "conta com a venda do [Ozempic] para os americanos porque somos estúpidos e viciados em remédios" — observando que a empresa não comercializa o medicamento em seu país de origem, a Dinamarca.

A oposição de Kennedy ao Ozempic está alinhada com sua visão geral sobre as farmacêuticas: ele insiste que as empresas do setor conspiram com o governo para minar a saúde dos americanos, com o objetivo de vender "soluções" fraudulentas.

Em uma postagem de outubro no X, ele acusou o FDA [Food and Drug Administration, agência governamental americana que regula produtos de saúde, alimentos e cosméticos, entre outros] de travar uma "guerra contra a saúde pública" que "inclui a repressão agressiva a psicodélicos, peptídeos, células-tronco, leite não pasteurizado, terapias hiperbáricas, compostos quelantes, ivermectina, hidroxicloroquina, vitaminas, alimentos saudáveis, luz solar, exercícios, nutracêuticos e qualquer outra coisa que promova a saúde humana e não possa ser patenteada pelas farmacêuticas".

Nessa lógica, o Ozempic, com seus efeitos colaterais de náusea e problemas gastrointestinais, é um substituto pobre para hábitos saudáveis.

Divisão reflete a opinião dos americanos

Uma pesquisa recente da AP-NORC [parceria da agência de notícias Associated Press com o National Opinion Research Center, o “Centro Nacional de Pesquisa de Opinião”] mostrou que 61% acham ruim, em maior ou menor medida, que adultos usem agonistas de GLP-1 para emagrecer. Apenas 54% acham bom, em maior ou menor medida, que pessoas com obesidade ou problemas de saúde associados usem o remédio.

Isso levanta uma pergunta óbvia: por quê? Por que tantos americanos — mais de 42% dos quais são obesos — não celebrariam uma droga que ajuda a perder até 20% do peso corporal? E por que as celebridades teriam vergonha de admitir o uso desse medicamento tão popular?

A atriz Mindy Kaling, por exemplo, parece ter emagrecido bastante nos últimos anos — mas evita cuidadosamente abordar o uso do Ozempic, enfatizando em vez disso sua rotina rigorosa de exercícios. A disciplina física é admirável; o emagrecimento farmacêutico pode ser visto como uma admissão de fracasso ou fraqueza. Hollywood talvez se incomode com o emagrecimento induzido por remédios porque sugere um "atalho fácil".

A ideia de emagrecer com Ozempic também pode entrar em conflito com a noção de que a beleza deve ser natural, fruto de bons genes ou hábitos saudáveis, não de tecnologia ou artifícios. Há uma crescente desconfiança em relação a tratamentos cosméticos modernos excessivamente transformadores — Kylie Jenner finalmente admitiu ter feito preenchimento labial após anos de negação.

Ou talvez seja uma questão de classe: além de caro, o Ozempic não é coberto por muitos planos de saúde, pelo menos quando usado para perda de peso (e não para diabetes).

Mudança na “cultura das dietas"

Com a ascensão do "ativismo gordo", admitir o desejo de emagrecer tornou-se socialmente constrangedor. Uma pesquisa realizada pela empresa YouGov em 2023 mostrou que 55% dos adultos dos EUA acreditam que alguém pode ser muito acima do peso e ainda assim saudável; em 2012, apenas 23% pensavam assim, segundo a AP-NORC

A maioria hoje acredita que os obesos sofrem discriminação no mercado de trabalho, na saúde e em outros ambientes. E a maioria atribui a obesidade a fatores como a indústria alimentícia, o ambiente e a genética, além de escolhas pessoais.

A ativista Virgie Tovar, uma das principais vozes contra a "discriminação baseada no peso e o preconceito contra os gordos", intitulou uma postagem de abril de 2024 em seu boletim na plataforma Substack como "O Ozempocalipse". Personagem de um documentário do serviço de streaming Hulu sobre o Ozempic, ela é consultora do Departamento de Saúde Pública de São Francisco e autora do livro “Você Tem o Direito de Ser Gordo” (2018).

Descrevendo a "festa cultural em torno dos GLP-1", Tovar escreve: "É alarmante. É aterrorizante. É eugenia". E continua: "Um grupo de pessoas com poder decidiu que uma certa característica de um grupo mais marginalizado não atende a seus padrões e busca eliminá-la".

Em um texto de 2019 para a revista Ravishly, Virgie Tovar citou o "Manifesto da Libertação Gorda", publicado em 1973 por Judy Freespirit e Sara Fishman, membros do grupo radical Fat Underground. O documento insiste que as lutas das pessoas gordas estão "aliadas às de outros grupos oprimidos contra o classismo, racismo, sexismo, etarismo, exploração financeira, imperialismo e similares".

Freespirit e Fishman "repudiam a ‘ciência’ mistificada" que afirma que pessoas gordas são pouco saudáveis e rejeitam os "interesses comerciais e sexistas [...] que vendem a falsa promessa de evitar ou aliviar [...] o ridículo".

O manifesto também declara:

Nós identificamos como inimigos especiais as chamadas "indústrias de emagrecimento". Isso inclui clínicas de dieta, spas redutores, clínicas de emagrecimento, médicos de dieta, livros de dieta, alimentos e suplementos dietéticos, procedimentos cirúrgicos, supressores de apetite, drogas e aparelhos como cintas e "máquinas redutoras".

Exigimos que assumam a responsabilidade por suas falsas promessas, reconheçam que seus produtos prejudicam a saúde pública e publiquem estudos de longo prazo comprovando a eficácia estatística de seus produtos. Fazemos essa exigência sabendo que mais de 99% de todos os programas de perda de peso falham completamente em um período de cinco anos e cientes dos danos extremos comprovados das grandes flutuações de peso frequentes.

Segundo essa linha de pensamento, os produtos para emagrecer são intrinsecamente prejudiciais. Eles só trazem decepção e piora do bem-estar por meio de dietas ioiô. Beneficiam aproveitadores predatórios às custas de pessoas vulneráveis.

Pessoas gordas são arbitrariamente levadas a se sentir menos dignas e depois presas em uma vida de regimes físicos e emocionais danosos. Para os ativistas, supressores de apetite como o Ozempic estão entre seus "inimigos especiais". "Gordos do mundo, uni-vos!", proclamam Freespirit e Fishman. "Vocês não têm nada a perder."

Ativismo ganhou força nas décadas seguintes

Os ativistas citam figuras como Oprah Winfrey — que lutou publicamente contra dietas ioiô — para mostrar que regimes da moda ou cirurgias não oferecem soluções duradouras, e que o peso quase sempre retorna. Os danos do ganho de peso inevitável, eles insistem, são intrínsecos a produtos que prometem perda drástica. Os verdadeiros beneficiários são os donos da indústria do emagrecimento, não as pessoas recrutadas — muitas vezes por meio de abuso e vergonha.

Aubrey Gordon — escritora, autodeclarada gorda e coapresentadora do podcast Maintenance Phase, que busca desmontar o "complexo industrial do bem-estar" — parece concordar. Em um episódio de outubro de 2023, ela afirmou:

Só quero que as pessoas entendam que há o risco de sentir que não pertencemos a este mundo. Quando falam sobre como tudo será melhor quando eu, como estou, não estiver por perto, não é "sensibilidade exagerada" minha, não são os gordos levando para o lado pessoal. É você dizendo claramente: "Tudo será melhor quando você, do que jeito que está, sumir". E então, pessoas gordas absorvem essa mensagem. Isso é horrível.

Gordon e seu coapresentador, Michael Hobbes, desmistificam dieta após dieta no programa, criticando a ideia de que a obesidade deva ser tratada como categoria de saúde especial, muito menos doença. Ela rejeita a noção de que a gordura diminui a beleza: "Mulheres gordas incrivelmente belas como Lizzo, Aidy Bryant, Queen Latifah e Beth Ditto já nos mostraram há muito tempo o poder da beleza gorda".

Ativistas como Virgie Tovar e Aubrey Gordon acreditam não apenas que pessoas gordas formam um grupo marginalizado, mas que drogas como o Ozempic são ferramentas de eugenia — ou, como insiste Tovar, de genocídio.

Gordura como identidade

Enquanto Freespirit e Fishman não consideravam a "gordura" parte intrínseca da identidade, Tovar e Gordon a apresentam como característica imutável, alvo de eliminação por programas eugênicos. Essa abordagem gerou resultados políticos: em 2023, o prefeito de Nova York, Eric Adams, sancionou uma lei contra a discriminação por altura ou peso.

Gordon também ressalta que o Ozempic só funciona até certo ponto: após perder uma porcentagem do peso, o efeito supressor de apetite diminui. Assim, é improvável que pessoas muito obesas fiquem magras. Ela argumenta que, mesmo com essa limitação, a culpa pela obesidade só aumentará com a popularidade da droga.

Esse ativismo parece estar em declínio cultural, mas é interessante sua sobreposição com o programa de Robert F. Kennedy Jr. de rejeitar abordagens farmacêuticas e reconectar os EUA aos "ritmos naturais" do corpo. As sensibilidades comuns entre o movimento "Make America Healthy Again" de Kennedy e a libertação gorda refletem uma desconfiança generalizada em autoridades de saúde — das farmacêuticas ao ex-conselheiro médico da Casa Branca, Anthony Fauci, alvo frequente em debates.

O impacto que o Ozempic terá na saúde americana ainda é incerto. Mas os contornos desse debate revelam muito sobre cultura, política e as guerras em torno do corpo.

Devorah Goldman é editora do Public Discourse e da revista Mosaic. Seus artigos sobre cultura, bioética e políticas de saúde já foram publicados em veículos como The Wall Street Journal, Bloomberg BNA, The Weekly Standard, National Affairs e The New Atlantis, entre outros.

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©2025 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês: Ozempocalypse?

Conteúdo editado por: Omar Godoy

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