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Made in Brazil: o país exporta o crime organizado e amplia o poder das facções

A negligência e a falta de estratégia do Estado permitem que o crime organizado ocupe rotas globais e desafie a soberania nacional
A negligência e a falta de estratégia do Estado permitem que o crime organizado ocupe rotas globais e desafie a soberania nacional (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

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Sabemos que visão geopolítica e capacidade de prospecção analítica nunca foram pontos fortes das autoridades governamentais brasileiras.

De forma geral, a classe política se acostumou a enxergar o crime organizado como um fenômeno meramente doméstico — um problema exclusivo de segurança pública, de polícia e de presídios. Jamais se percebeu a atuação do crime organizado como uma ameaça real à própria soberania estatal.

Essa perspectiva, porém, já não encontra aderência na realidade há pelo menos duas décadas.

Enquanto o País permanece preso a instrumentos jurídicos, diplomáticos e operacionais anacrônicos e limitados, subdimensionando o tamanho do desafio, as facções criminosas brasileiras se transformaram em atores centrais do crime global, movimentando redes logísticas próprias, dominando rotas de tráfico de alto valor e se infiltrando em estruturas estatais frágeis aqui e no exterior, expandindo suas operações pela América do Sul, Europa, África e, mais recentemente, pelos Estados Unidos.

O que começou como disputa de poder nos presídios transformou-se em uma engrenagem multinacional complexa, e o resultado é um paradoxo incômodo: o país que historicamente sofreu com o tráfico internacional tornou-se exportador de instabilidade, know-how de logística criminal e violência para múltiplos continentes.

Essa transnacionalização não foi súbita nem fortuita. Ela é resultado direto de quatro fatores estruturais: a consolidação de facções com comando unificado e capacidade empresarial;  a inserção ativa do Brasil em novas rotas globais de entorpecentes e armas; a fragilidade institucional, tanto doméstica quanto regional, que criou corredores naturais para redes criminosas altamente adaptáveis e a falta de disposição política das autoridades públicas locais em combater efetivamente o problema, seja por ideologia, conivência, limitações intelectuais, simples incapacidade executiva ou mera ignorância das dinâmicas geopolíticas em jogo.

Hoje, Brasil, Paraguai, Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela constituem um eixo criminal contínuo e integrado, de onde partem fluxos ilícitos que alcançam o Atlântico Sul, avançam pela África Ocidental e desembocam em hubs europeus. E, agora, chegam também a centros urbanos e corredores logísticos de ao menos 12 estados norte-americanos, segundo investigações conduzidas por autoridades dos EUA.

A ascensão internacional do PCC e a expansão regional das facções

O Primeiro Comando da Capital (PCC) se tornou o caso mais emblemático dessa expansão. No Paraguai, consolidou uma presença estruturada, explorando vulnerabilidades institucionais e capturando partes essenciais da logística usada para enviar cocaína e armas ao Brasil.

Na Colômbia, estabeleceu relações operacionais com dissidências das FARC, ELN e grupos remanescentes do narcotráfico clássico, atuando como financiador, pré-comprador e articulador logístico de carregamentos destinados ao Brasil e à Europa.

Na Bolívia, opera em áreas de baixa presença estatal, influenciando comunidades, comprando proteção política e financiando produção. No Peru, entrou como investidor e comprador direto da pasta de coca.

Na Venezuela, aproveitou o colapso parcial de instituições, o desmonte de controles em algumas áreas fronteiriças e a existência de rotas terrestres e fluviais pouco fiscalizadas para consolidar corredores e pontos de transbordo — integrando o país ao mosaico logístico regional. De lá, abastecem portos brasileiros, como Santos e Itajaí, que funcionam como hubs logísticos globais.

O Comando Vermelho (CV), embora com estrutura menos centralizada, também expandiu sua atuação regional, especialmente em áreas estratégicas de fronteira e em cidades portuárias.

Essa expansão, antes restrita à América do Sul, avançou em direção ao Atlântico e ao Mediterrâneo, alcançando a África Ocidental, sobretudo Cabo Verde, Guiné-Bissau e Senegal, onde grupos brasileiros já disputam posições com redes locais e onde a fragilidade institucional cria ambiente fértil para sua expansão e cooptação de autoridades públicas; e Europa, especialmente Bélgica, Holanda, Espanha e Portugal, onde a “marca brasileira” do crime já é conhecida pelos órgãos de segurança.

Entretanto, talvez o dado mais alarmante — e menos discutido — seja a expansão para os Estados Unidos. Nos últimos anos, autoridades americanas documentaram um aumento significativo da presença de brasileiros ligados a facções em operações de tráfico, lavagem e movimentações financeiras suspeitas.

O Departamento do Tesouro dos EUA descreveu o PCC como uma organização com presença operacional em múltiplos continentes, incluindo o território norte-americano.

Essa atuação não seria apenas na forma de “gangues locais”, mas como grupo que opera como extensão logística do crime transnacional, conectado a esquemas de tráfico de cocaína; tráfico de fentanil e outras drogas sintéticas; contrabando e circulação ilegal de armas; lavagem sofisticada de dinheiro; e uso do sistema financeiro americano para ocultar ativos.

Para Washington, o Brasil não exporta apenas drogas e armas: exporta capacidade organizacional, inteligência logística, rede de contatos transcontinentais e acesso a fornecedores e intermediários internacionais.

Não por acaso, cresce nos EUA a pressão para que o Brasil tipifique formalmente essas facções como organizações transnacionais — e como organizações terroristas — abrindo caminho para instrumentos como congelamento automático de ativos, extradições aceleradas e cooperação obrigatória, algo que Brasília reluta em fazer por razões ideológicas (obtusas), jurídicas (obsoletas) e diplomáticas (injustificáveis).

O novo paradigma inaugurado pelos EUA

Não é demais lembrar que, desde março de 2025, o presidente Donald Trump inaugurou uma política inédita: tratou cartéis latino-americanos não como redes criminais, mas como organizações terroristas estrangeiras

A mudança tem consequências profundas, pois passou a justificar legalmente operações militares extraterritoriais, ataques navais e aéreos a embarcações suspeitas, incursões especiais no Caribe e o monitoramento agressivo de rotas ligadas à Venezuela.

Em poucos meses, os EUA realizaram mais de 21 ataques a embarcações ligadas ao narcotráfico na costa venezuelana, matando cerca de 84 delinquentes e destruindo cargas. O governo americano afirma estar “em conflito armado” contra essas organizações, uma expressão cuidadosamente escolhida para enquadrar ações militares como legítima defesa.

O envio do porta-aviões USS Gerald R. Ford ao Caribe elevou ainda mais o nível de alerta. Não se trata apenas de interceptar barcos: é um recado de que Washington está disposto a levar a guerra ao território onde essas redes operam. E nesse mapa, Venezuela, Colômbia e Brasil figuram como peças centrais.

Para as facções brasileiras, o recado é inequívoco: a rota sul-americana se tornou alvo militar de uma superpotência.

Tipificação como terrorismo pode redefinir o jogo

Diante desse cenário, o erro estratégico do Brasil torna-se evidente: persistir em tratar facções como problema policial doméstico, quando a realidade já está muito além disso.

Grupos como o PCC deixaram de ser meras organizações criminosas tradicionais: operam hoje como corporações criminais-empresariais com estrutura hierárquica, logística internacional, divisão de tarefas, capacidade financeira robusta e alianças com atores estrangeiros.

Persistir com um enquadramento legal antiquado, que as trata como simples “facções”, é negar a natureza do adversário. Sem classificá-las como organizações transnacionais, paramilitares ou até terroristas — modelos já usados pelos Estados Unidos contra cartéis latino-americanos — o Brasil se autolimita.

Fica impossibilitado de acionar mecanismos automáticos de congelamento de ativos, acelerar extradições, compartilhar inteligência sensível, acionar dispositivos multilaterais de combate ao terrorismo e participar de coalizões internacionais que já tratam o fenômeno como ameaça à segurança hemisférica.

Essa miopia se repete na política externa. Nos países onde o crime brasileiro mais se consolidou — Paraguai, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, além de pontos críticos no Atlântico como Cabo Verde, Guiné-Bissau e Senegal —, o Brasil tem presença diplomática, policial e de defesa pouco estruturada, quando existente.

Adidos são insuficientes, equipes diplomáticas são reduzidas e detêm pouco conhecimento sobre o tema, missões não têm mandato operacional, por exemplo.

O resultado é um vácuo de Estado que as facções ocupam com velocidade: comprando proteção política, aliciando autoridades locais, financiando produção de drogas e montando esquemas de lavagem de dinheiro complexos que passam por portos brasileiros e terminam em hubs financeiros ultramarinos.

A falta de integração da inteligência nacional agrava o problema. Polícia Federal, ABIN, serviços de inteligência, inclusive os militares, Receita Federal, COAF, autoridades portuárias e o próprio Itamaraty operam em compartimentos estanques, sem doutrina comum nem sistema integrado de análise.

Cada órgão enxerga um fragmento do fenômeno; nenhum vê o mosaico completo. Com isso, portos e aeroportos transformam-se em zonas cinzentas ideais para o tráfico internacional: baixa fiscalização, tecnologia defasada, ausência de scanners modernos e uma burocracia dispersa que facilita infiltrações e embarques ilícitos. Enquanto facções montam cadeias logísticas sofisticadas, o Brasil mantém infraestrutura de controle arcaica.

Essa vulnerabilidade se projeta ainda para o Atlântico Sul, hoje parte essencial das rotas do crime organizado entre Brasil e África Ocidental. O país, porém, mantém presença naval limitada, diplomacia descoordenada e inteligência marítima e naval insuficientes.

Enquanto embarcações vinculadas ao narcotráfico cruzam o oceano com relativa liberdade, a Marinha não possui os recursos para modernizar e ampliar seus meios navais e sua capacidade de vigilância, ampliar operações conjuntas e ocupar o espaço estratégico que lhe caberia.

A geografia continua sendo brasileira; mas o controle, cada vez menos. A geopolítica do crime avança, mas o Brasil não.

A resposta legislativa: o PL Antifacção aprovado pela Câmara

Recentemente, um avanço legislativo significativo ocorreu. A Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Antifacção (PL 5582/2025), endurecendo instrumentos de enfrentamento e ampliando a capacidade do Estado de agir contra facções. O texto agora segue para o Senado, onde pode — e deverá — ser alterado.

O PL aprovado, entre outras medidas, amplia o conceito de organização criminosa; cria o crime de “domínio social estruturado”; reforça mecanismos de punição, inclusive para quem financia ou auxilia facções; endurece regras de progressão de regime; aperta dispositivos relativos ao uso de armas, recursos e comunicação por líderes presos; autoriza apreensão e confisco antecipado de bens, inclusive criptoativos; proíbe indulto, anistia ou liberdade condicional para determinados condenados; prevê julgamentos por colegiado em crimes cometidos por facções.

Trata-se de um passo importante — e politicamente significativo — mas insuficiente diante da dimensão transnacional do fenômeno. Enquanto grupos criminosos operam como corporações multinacionais, o Brasil continua respondendo com instrumentos pensados para o crime local, sem se atentar para sua verdadeira natureza: uma ameaça à soberania estatal por atores transnacionais que impactam a segurança e a ordem continentais.

Nesse sentido, o eventual enquadramento de facções criminosas brasileiras como organizações terroristas representaria uma inflexão profunda na política de segurança nacional. Tratar-se-ia não apenas de um ajuste legal, mas de uma mudança de paradigma que alteraria o modo como o Estado brasileiro passaria a se relacionar com grupos que, há décadas, desafiam a autoridade estatal, controlam territórios, intimidam populações e corroem as instituições.

Por muito tempo, o enfrentamento às facções permaneceu restrito ao arcabouço jurídico da segurança pública, o que limitava a ação estatal a operações policiais internas, acordos bilaterais fragmentados e mecanismos de repressão de alcance reduzido diante da crescente sofisticação dessas organizações.

Essa lógica se mostrou insuficiente: as facções deixaram de ser fenômenos localizados para se transformarem em redes transnacionais integradas ao narcotráfico global, à lavagem de dinheiro e a circuitos internacionais de financiamento ilícito.

A tipificação como terrorismo rompe essa limitação e projeta o problema para outra esfera: a de ameaça à segurança e à paz internacional, reconhecida e regulada por resoluções do Conselho de Segurança da ONU.

Essa mudança destrava mecanismos automáticos e muito mais robustos de cooperação, incluindo bloqueio imediato de ativos financeiros, compartilhamento ampliado de inteligência, extradição acelerada de envolvidos e autorização para o uso de tecnologias de vigilância e repressão de nível estratégico.

Em outras palavras, o Brasil deixa de combater as facções basicamente sozinho — e passa a acionar um ecossistema global que, pela primeira vez, é juridicamente obrigado a colaborar.

Além disso, a reclassificação reposicionaria o próprio Estado brasileiro no tabuleiro geopolítico. Ao adotar a moldura do terrorismo, o país se alinha às práticas de segurança utilizadas por democracias consolidadas para enfrentar ameaças híbridas — aquelas que combinam controle territorial, poder econômico, influência social e capacidade bélica.

Esse movimento, longe de ser meramente retórico, fortaleceria a legitimidade do Brasil para exigir cooperação internacional, pressionar parceiros estratégicos e acessar instrumentos multilaterais de combate ao financiamento ilícito.

Com isso, o País chegaria a um ponto de inflexão. A mudança de enquadramento jurídico não seria uma solução mágica, mas alteraria os incentivos, ampliaria as ferramentas e quebraria uma inércia institucional que já não era há muito tempo compatível com a magnitude do problema.

Ao elevar o enfrentamento às facções ao patamar do terrorismo, o Brasil enviaria uma mensagem ao mundo — e às próprias organizações criminosas — de que reconhece a gravidade da ameaça e está disposto a agir em outra escala.

O sucesso dessa virada dependeria da capacidade do Estado de transformar esse novo enquadramento em estratégia, coordenação e políticas públicas efetivas. Infelizmente, não vemos isso acontecendo.

Com a exceção de algumas poucas iniciativas levadas a cabo por governos estaduais como RJ, SP e SC — de fôlego naturalmente limitado —, não se percebem, sobretudo no Governo Federal, medidas para abandonar o improviso e enfrentar o crime organizado com os instrumentos adequados.

A incapacidade crônica das autoridades brasileiras de enxergar o mundo a partir de lentes geopolíticas cobra, hoje, um preço perigoso. A tempestade perfeita está formada.

A América do Sul vive um momento de convergência explosiva entre colapso institucional, economia ilegal e ações militares de uma potência extrarregional. O crime organizado brasileiro não é mais produto do “nosso quintal”; ele é um componente de uma logística global que hoje desperta reações do governo dos Estados Unidos, as quais incluem ações militares a poucas centenas de quilômetros da fronteira brasileira.

A verdade inconveniente é que o Brasil já perdeu o monopólio da força em parte do território, já perdeu o controle de segmentos essenciais de suas fronteiras e já perdeu protagonismo no tabuleiro internacional onde essa guerra realmente se decide.

E nada disso aconteceu de um dia para o outro: foi resultado direto de negligência política, fragilidade institucional e de uma perigosa recusa em compreender o crime organizado como ator geopolítico.

Se nada mudar — e rápido —, o País não apenas continuará exportando drogas, armas e violência. Exportará instabilidade estrutural, erosão institucional e uma crise de segurança de proporções continentais.

Se o Brasil não compreender que a guerra já chegou à nossa vizinhança — e que seus protagonistas são outros —, correrá o risco de assistir, de fora, à redefinição das regras de segurança regional. Regras impostas, não negociadas.

Paulo Bilynskyj é Deputado Federal (PL/SP) e presidente da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados.

Marcos Degaut é doutor em Segurança Internacional, ex-secretário especial adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, ex-secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa e ex-secretário-executivo da Câmara de Comércio Exterior do Brasil.

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