Um relatório apartidário publicado na segunda-feira (8) pela organização americana Heritage Foundation responsabiliza a ditadura comunista da China pela pandemia de Covid-19. O documento também sugere ações legais que podem ser tomadas contra o regime.
“Depois de quase cinco anos de inação, chamamos o presidente e o Congresso para tomar ações decisivas agora”, diz John Ratcliffe, o chefe da comissão de nove membros autores do relatório, que se distribuem entre republicanos e democratas. Ratcliffe foi diretor de inteligência nacional dos Estados Unidos (acima da CIA e do FBI) no período da pandemia, entre 2020 e 2021; e deputado pelo Texas.
Outro autor do relatório é Robert Redfield, virologista renomado e ex-diretor dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC). Ao menos dois dos autores são democratas registrados: Heidi Heitkamp, ex-senadora pela Dakota do Norte, e Jamie Metzl, ex-funcionário do governo de Bill Clinton e membro de um comitê consultivo da Organização Mundial da Saúde.
A “Comissão Apartidária sobre a China e a Covid-19” analisou centenas de documentos dos últimos quatro anos entre relatórios do Congresso americano, reportagens investigativas e relatos de cidadãos chineses, além de fontes acadêmicas. O grupo realizou duas audiências virtuais com especialistas, analistas de dados e funcionários do governo responsáveis pela contenção da pandemia.
Outros países e indivíduos também têm responsabilidade pela pandemia, mas “a China está num patamar singular e exclusivo em sua oposição ativa e agressiva à honestidade, à transparência e à responsabilidade a respeito do vírus e sua disseminação”, afirma o relatório. “Este comportamento do governo chinês, mais que qualquer coisa, foi a origem proximal da pandemia de Covid-19”.
O termo “origem proximal” é uma alusão a um artigo científico de março de 2020, publicado na revista Nature Medicine, que tentou encerrar prematuramente o debate da origem do vírus SARS-CoV-2 afirmando que “nenhum cenário” laboratorial era plausível. Documentos revelaram mais tarde que os próprios autores expressavam dúvida, em mensagens privadas, a respeito dessa conclusão.
O tamanho do estrago
A comissão deu foco aos custos da pandemia para os Estados Unidos, mas encorajou outros países “a usarem o modelo criado por esta comissão para investigar os custos humanos e econômicos” e “explorar como eles também podem responsabilizar a China por suas ações”.
O excesso de mortes no planeta, tanto pelo vírus quanto por medidas para contê-lo, atingiu um total de 28 milhões de pessoas no mês passado, na estimativa da revista The Economist. O PIB global caiu 3,4%, a produção econômica contraiu em 90% dos países e 255 milhões de vagas de emprego foram fechadas só em 2020, segundo o Banco Mundial e outras fontes citadas. No mesmo ano, 1,5 bilhão de crianças ficaram fora da escola por causa de lockdowns. Até 2021, 97 milhões de pessoas caíram na pobreza.
Fechamentos totais ou parciais de escolas ainda afetavam 616 milhões de crianças em 2022. Naquele ano, o número de crianças de dez anos que eram analfabetas funcionais nos países em desenvolvimento cresceu de 57% para 70%.
A comissão estima que os Estados Unidos perderam US$ 18 trilhões (equivalentes a R$ 98 trilhões na cotação atual) com a pandemia, 13% da riqueza do país — o cálculo considera mortes, perda de renda, inflação, prejuízo educacional, doenças crônicas e problemas mentais derivados da pandemia. A Covid-19 foi a causa principal de 985 mil mortes de americanos, e causa participante de 1,1 milhão de óbitos.
Por que a culpa é da China: a provável origem laboratorial da Covid
A comissão apartidária considera que “a pandemia de Covid-19 muito provavelmente resultou de um incidente relacionado à pesquisa [em virologia] em Wuhan, China”. O governo chinês “ocultou grande parte dos registros relevantes e obstruiu todos os esforços internacionais com credibilidade de investigarem a origem do vírus”. Ainda assim, as evidências disponíveis “apoiam fortemente um acidente relacionado à pesquisa”.
Tentativas de concluir a favor da hipótese da origem natural em animais silvestres pela análise da distribuição geográfica dos casos, como a de um artigo publicado na revista Science, foram “refutadas”. Uma sugestão de que o material genético do vírus indicaria dois eventos de salto de animais para humanos foi derrubada por “dados dos primeiros casos finalmente publicados em 2024”.
Quanto ao mercado de animais silvestres e frutos do mar Huanan, indicado por muitos como o epicentro da Covid, “nenhuma evidência de animais infectados no mercado foi encontrada”. Em outros surtos virais de outras doenças, “esse tipo de evidência foi encontrado muito rápido e em múltiplos locais da rede de distribuição dos animais”.
A origem natural do vírus não foi descartada, mas evidências favoráveis foram ou derrubadas ou não encontradas apesar de enormes esforços de testagem em animais.
A origem laboratorial, comparativamente, tem mais indícios a seu favor: Wuhan, uma metrópole de 11 milhões de habitantes, fica a mais de 1600 km do habitat natural de morcegos que poderiam ser o reservatório do vírus. Os wuhanenses consomem poucos animais silvestres, comparados a outros chineses. A cidade é sede de mais de um centro de virologia que estuda os coronavírus, o principal deles é o Instituto de Virologia de Wuhan (IVW), que tem “a maior coleção de coronavírus cativos do tipo SARS do mundo”.
O IVW estava “fazendo pesquisa arriscada pela manipulação desses vírus sob condições de segurança abaixo do padrão”, afirma o relatório. Essa pesquisa incluía a infecção de animais de laboratório, incluindo camundongos cujos pulmões foram modificados para se parecerem com pulmões humanos. “Sabemos que o IVW se tornou o ponto focal da pesquisa internacional dos coronavírus depois do surto de SARS (gripe asiática) em 2003”. Com colaboradores americanos, a diretora do IVW, Shi Zhengli, criou coronavírus híbridos com sucesso em infectar os camundongos “humanizados”.
Além disso, o vírus da Covid tem características moleculares indicativas de uma origem laboratorial. A mais notória é o “sítio de clivagem da furina”, uma marcação na proteína do vírus utilizada nas vacinas que indica para o organismo humano um “ponto de corte” que aumenta sua capacidade de nos infectar. Esta estrutura “nunca tinha sido observada nesse subgênero de coronavírus”, diz o relatório. Os colaboradores americanos do IVW escreveram projetos de pesquisa que planejavam inserir esta exata estrutura em linhagens laboratoriais de coronavírus.
A operação-abafa do começo da pandemia
A comissão apartidária aponta para sete semanas a partir de dezembro de 2019 durante as quais os esforços de censura e queima de arquivo foram mais intensos por parte da ditadura chinesa. Os oficiais “poderiam ter mostrado boa fé e honrado seus compromissos internacionais para tentar impedir que uma epidemia doméstica se tornasse uma pandemia global, mas consistentemente escolheram fazer o oposto”.
O Partido Comunista Chinês sabia que havia transmissão entre humanos, mas mentiu para a Organização Mundial da Saúde, que aceitou e repetiu a mentira. O regime censurou agressivamente médicos, jornalistas e outros cidadãos chineses — inclusive prendendo alguns — por tentarem alertar seus concidadãos e o mundo a respeito do vírus.
As autoridades da China esconderam a informação do material genético completo do vírus desde 27 de dezembro de 2019, só tornada disponível por rebeldia de um cientista chinês em 11 de janeiro de 2020, “emitiram ordens para destruir provas laboratoriais que pudessem ser incriminadoras” e “permitiram que voos internacionais de Wuhan e outras cidades chinesas continuassem apesar de evidências de que o vírus letal podia ser assintomático”. Finalmente, bloquearam tentativas internacionais de investigar a origem da pandemia.
Li Wenliang, médico de Wuhan punido por tentar fazer alertas precoces, morreu aos 33 anos, de Covid, deixando a esposa grávida e um filho pequeno. Em uma entrevista antes de sua morte, ele disse que “se os oficiais tivessem divulgado as informações sobre a epidemia mais cedo, penso que teria sido melhor. Deveria ter mais abertura e transparência”.
Possíveis vias legais para responsabilizar a China
Um dos obstáculos legais americanos para responsabilização da China é a Lei de Imunidade da Soberania Estrangeira (FSIA, na sigla em inglês), que evita que cortes americanas declarem outros Estados culpados na maioria dos casos.
A comissão aponta que a FSIA abre exceção para Estados que se engajem em atividades comerciais que afetem os Estados Unidos ou atos que causem “lesão pessoal ou morte, ou danos ou perda de propriedade”, além de terrorismo.
Há potenciais precedentes em dois casos ainda em tramitação, em que os estados americanos do Missouri e Mississippi processaram a China por acumular indevidamente estoques de equipamentos de proteção individual e por acobertar a gravidade da Covid.
O relatório faz 17 recomendações ao governo dos Estados Unidos para que possam fortalecer sua capacidade impor dissuasão, transparência e responsabilidade à China. Entre elas estão estabelecer uma comissão apartidária nacional semelhante à que investigou os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, uma força tarefa de reparações e compensações, facilitar denúncias de cidadãos chineses contra o regime, passar uma lei de biossegurança para desassociar os EUA e cadeias de produção de empresas influenciadas pelo Estado chinês, fazer auditoria de toda pesquisa científica com verba americana realizada na China, impor sanções econômicas a oficiais e entidades chinesas que fizeram a operação-abafa, impor custos à China por violar regulações da OMS, suspender o acordo de colaboração científica e tecnológica de 1979 com a China, e fiscalizar a obediência da ditadura comunista à Convenção de Armas Biológicas.
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