• Carregando...
Para o historiador Lucian Boia, Marx é "um utopista que aborda a utopia de forma passageira e superficial".
Para o historiador Lucian Boia, Marx é “um utopista que aborda a utopia de forma passageira e superficial”.| Foto: Wikimedia Commons

Em seu livro 'Mitologia Científica do Comunismo' (selo Avis Rara), o historiador romeno Lucian Boia vai além da proposta de explicar o surgimento e os fundamentos do comunismo.

Sua intenção, como indica o título do título, é analisar a faceta mitológica do fenômeno. Ou seja, o espírito que o mantém vivo ainda hoje.

Para isso, ele afirma que é fundamental desconsiderar o "verniz científico" da obra de Karl Marx — como você lê no trecho a seguir.

A melhor introdução à obra de Karl Marx (1818-1883) está no elogio fúnebre proferido por seu amigo Friedrich Engels (1820-1895) em 17 de março de 1883, no cemitério Highgate, de Londres.

Uma espécie de Santa Trindade era invocada pelo orador na ocasião: a ciência, cujo nome ressurgia praticamente a cada frase, e os dois personagens que a encarnaram: Darwin e Marx.

Dois descobridores de leis: glória suprema numa época em que a caça às leis científicas representava a ocupação predileta dos cientistas e filósofos.

Darwin encontrara a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, Marx, a lei da História da humanidade, reincidindo, em seguida, com a descoberta da mais-valia, a lei que desnudava o funcionamento da sociedade capitalista.

Não era tudo. Havia, além disso, segundo Engels, descobertas múltiplas e importantes (infelizmente não especificadas), efetuadas por Marx nos domínios mais diversos, incluindo o das matemáticas.

Havia sobretudo uma nova concepção da ciência, delineada como agente revolucionário. Por seus efeitos tecnológicos e econômicos, a ciência auxiliava a humanidade a seguir na direção de um futuro distinto.

Assim, ela acompanhava a luta do proletariado, revolução destinada a abolir a sociedade capitalista e construir sobre suas ruínas o novo mundo. A revolução se tornava, por sua vez, uma ciência!

Dali por diante, o revolucionário será um cientista. A investigação científica das leis sociais e a ação política serão o mesmo e o único combate. Marx, o primeiro, encarnou esse princípio.

Nele, como assegura Lênin (em 'O Estado e a Revolução'), não há inclinação alguma à utopia; ele tratou o comunismo como um naturalista estuda o desenvolvimento de uma nova variedade biológica.

O entusiasmo de Engels e de Lênin pela metodologia científica de seu mestre se justifica na própria carreira do fundador do comunismo científico.

O fabricante de utopias mais célebre e influente ocupa um lugar muito especial na galeria dos utopistas: ele é um utopista que aborda a utopia de forma passageira e superficial.

Em seu caso, a construção utópica "banha" um trabalho científico consagrado a um problema preciso (o mecanismo da economia capitalista).

O mito da lei da História o determinou a prolongar o presente — em linha reta — até o passado e também até o futuro. Tanto ao historiador como ao futurólogo, o presente é mau conselheiro.

Precisamos, antes de tudo, de trabalharmos com um Marx simplificado, até mitificado.

É possível demonstrar, caso o queira, com o apoio de manuscritos e correspondência, que Marx não foi demasiado marxista, que ele teve curiosidades e pontos de vista diversos e contraditórios, que não se deixou enganar pelo esquema unilateral da História, nem do determinismo econômico (chegando até mesmo a sacrificar o racismo ou a influência do ambiente físico, como prova Leon Poliakov em 'O Mito Ariano'), etc.

O verdadeiro Marx é sem dúvida demasiado complexo. O Marx dos escritos publicados (em vida), muito menos. Enquanto que o Marx venerado pelos comunistas é de uma grande simplicidade, bem no espírito do século XIX.

Foi o último que exerceu influência extraordinária; para a mitologia, é o único que conta.

Marx foi um analista do presente — é nessa qualidade que ele teria o direito de reivindicar seu status científico.

O que ele escreveu sobre as sociedades pré-capitalistas se reduz a algumas páginas, das quais as mais interessantes permaneceram em rascunho, como as célebres 'Grundrisse: Fundamentos da Crítica da Economia Política de 1857-1858'.

Nada, ao contrário, além de frases soltas (e, na verdade, sem nenhuma relação "científica" com o resto) sobre o porvir comunista (no 'Manifesto do Partido Comunista', redigido com Engels e publicado em fevereiro de 1848, e também em 'A Guerra Civil na França', 1871, ou em 'A Crítica do Programa de Gotha', 1875, editado em 1891).

O presente, isto é, o século XIX, e mais particularmente o capitalismo ocidental do século XIX (e mais particularmente ainda o capitalismo inglês) é a chave que abre todas as gavetas do projeto científico e revolucionário marxista.

Foi uma era de confrontos: a Europa ou o Ocidente versus os outros continentes, os brancos versus os negros e os amarelos, os burgueses versus os proletários.

O imaginário, em todas as suas variantes, sociais, políticas, científicas, apenas exacerbou esses dados fundamentais. O mecanismo da evolução das espécies foi explicado pela luta pela vida e o mecanismo da História humana pela luta das raças ou a luta das classes.

Na verdade, essas demonstrações prolongavam em todas as direções as consequências da revolução industrial selvagem, que havia impregnado as relações sociais e políticas no interior da sociedade ocidental, e entre ela e o resto do mundo.

A lei da História descoberta por Marx proclamava a precedência da economia, da produção material, o que era, no século XIX, muito sensível, até mesmo obsessivo, para ambos, burguês e proletário.

Segundo Marx, a produção constituía a base sobre a qual se erigia a superestrutura, isto é, todo o resto: instituições políticas, direito, ideologias, artes e religiões.

Eram as “forças de produção” que comandavam, e não as “forças do espírito”, como se acreditara até a descoberta fundamental de Marx.

O determinismo econômico se instalava no lugar dos outros determinismos.

Revolução científica e ideológica? Talvez, mas com a condição de observar que a ideia fundamental de determinismo se mantinha e acabava até fortalecida com a inversão realizada por Marx.

A hierarquia dos elementos mudava, mas as estruturas profundas do raciocínio permaneciam aquelas de um século XIX cientificista, determinista e reducionista ao extremo.

O desenvolvimento das forças de produção deveria se traduzir, inevitavelmente, em mudanças na esfera da superestrutura, que era obrigada a se adaptar às transformações da base.

Mecanismo posto em prática pelo fenômeno social da luta de classes. Essas são as primeiras palavras do 'Manifesto do Partido Comunista', as primeiras palavras do comunismo “científico”: “A história de todas as sociedades até os nossos dias é a história das lutas de classes”.

Como o determinismo econômico, a ideia de luta de classes derivava diretamente das realidades sociais e das mitologias sociais do século XIX no Ocidente.

A revolução industrial, em sua primeira fase, havia desencadeado um processo de polarização social (a Inglaterra apresentava o caso extremo).

Do real ao imaginário, supervalorizando a amplitude e o drama do fenômeno, a sociedade ocidental oferecia enfim a imagem de um conflito muito agudo e irreconciliável, opondo os dois “polos”.

Verdadeira ou falsa, parcialmente verdadeira ou parcialmente falsa, essa dicotomia foi implementada por Marx sobre todo o percurso da História.

Segundo o 'Manifesto', uma luta sem descanso caracterizara as relações entre senhor e escravo (na Antiguidade), então entre o nobre e o servo (na Idade Média).

Para ser justo com Marx, cumpre dizer que, inúmeras vezes, ele matizou seu determinismo econômico, como também a dicotomia social. Perda de tempo, pois as mitologias são refratárias a matizes.

A despeito de tudo o que for dito sobre a complexidade e as sutilezas do pensamento marxista (que são bem reais), Marx permanecerá o homem do determinismo econômico puro e simples e da luta de classes extremada.

Simplificação por fim merecida, em todo caso bem explicável, uma vez que o núcleo sólido de sua doutrina se resume precisamente a esses dois pontos.

Assim, a máquina da História poderia se pôr em movimento. Pela primeira vez — e provavelmente pela última — um sistema completo, sem fissuras, perfeitamente funcional, reunia todos os processos e todos os fatos.

As outras máquinas históricas — como a de Auguste Comte, por exemplo — acabarão parecendo, por suas disfuncionalidades, ou seus desacordos muito gritantes com a História concreta, uma figura triste ao lado da fascinante síntese marxista.

Aquele que aspira a uma história inteligível em seus mínimos detalhes, uma história bem ordenada, trilhando uma via segura, esclarecida pelos refletores da ciência, não tem mais escolha: deve se tornar marxista!

A refutação do marxismo não pode passar pela descoberta de um sistema melhor, mas pela demolição da própria ideia de sistema!

Esse sistema une a perfeição à simplicidade. Tudo repousa, em última instância, sobre a base econômica. As relações de propriedade definem as classes sociais que se confrontam.

Quando o desenvolvimento das forças de produção excede em demasia as estruturas sociais vigentes, há revolução, passagem de um modo de produção a outro, de uma formação social a outra.

O começo da História pertence ao comunismo primitivo, sociedade sem propriedade privada e sem classes.

Em seguida, resultante do desenvolvimento econômico e do crescimento das riquezas, três modos de produção (formações sociais), caracterizados pela propriedade privada e, por conseguinte, pela exploração: escravagismo, feudalismo e capitalismo.

Por fim, a espiral histórica deve desaguar em uma nova e última fase igualitária: o comunismo. Dessa vez, o comunismo tecnológico, situado na mesma posição, mas num nível infinitamente mais elevado que o comunismo primitivo.

A simetria é perfeita e a moral, muito explícita: três etapas de iniquidades econômicas e de confrontos sociais não passam de uma espécie de parênteses na História, começando e devendo terminar sob o signo da igualdade e da harmonia.

Como nada é perfeito neste mundo, um toquezinho perturbador confundia o quadro esboçado por Marx.

O mestre encontrou, através de suas peregrinações históricas, um modo de produção suplementar que funcionava de uma maneira pouco ortodoxa.

Ele o nomeou modo de produção asiática, por considerá-lo mais bem representado na Ásia.

Na verdade, essa formação histórica manifestava uma irritante tendência de expansão universal (sobre todos os continentes, menos a Europa), mostrando-se ao mesmo tempo mais estável e mais durável que os outros modos de produção.

Mas era a última das preocupações de Marx: após ter dedicado algumas considerações a eles nas 'Grundrisse', não voltou ao assunto (assim como não se deu ao trabalho de insistir sobre qualquer outra fase histórica pré-capitalista).

A pedra foi lançada, o que gerou certa perplexidade entre seus discípulos, pois o modo asiático de produção possuía uma particularidade perversa: associava propriedade comunitária e exploração social.

Era o Estado que possuía tudo e explorava súditos desprovidos de tudo, e ainda sem piedade (os tiranos orientais!). O agente da exploração se tornava a burocracia de Estado (a nomenklatura?).

Aquilo parecia tanto com o comunismo real que quase beirava à heresia. Essa síntese embaraçosa atrapalhava a lógica de uma teoria que vinculava a exploração social à propriedade privada (e inversamente, a igualdade social à propriedade comum).

O mecanismo da História corria o risco de entrar em pane em virtude de um movimento paralelo que nada tinha em comum com o esquema linear: comunidade primitiva — escravagismo — feudalismo — capitalismo — comunismo.

Um verdadeiro quebra-cabeça para os marxistas. A maioria contornou a dificuldade de uma forma elegante: decidiram não pensar mais nisso.

Mais que pelo passado, Marx se interessava pelo futuro da humanidade, no último estágio de seu esquema histórico: a sociedade sem classes, o comunismo.

Como procedera quanto às demais formações sociais, ele preparou essa fase suprema no mesmo laboratório, o único de que dispunha: o laboratório ocidental do século XIX.

Mais uma vez, tudo decorria do sistema de exploração capitalista, dissecado por Marx em seus trabalhos de economia política ('Contribuição à Crítica da Economia Política', 1859; 'O Capital', livro primeiro, 1867; os livros póstumos, 1885-1905).

Ponto de partida: a teoria do valor. Desenvolvendo as ideias de Smith e Ricardo, Marx considerava o valor como a expressão da quantidade de trabalho social contida numa mercadoria.

Perspectiva simplificadora e determinista ancorada sobre o princípio das causas únicas, que supervalorizava o trabalho manual do proletário, circunscrevendo-se perfeitamente em uma mitologia do trabalho multifuncional característica do comunismo.

Tudo se encadeava a partir dessa premissa. O proletário produzia um valor mais expressivo que o valor recompensado pelo salário. Ele era, portanto, roubado pelo capitalista, que não produzia nada porque não trabalhava, mas se apropriava da mais-valia criada pelo trabalho do proletário.

À medida que o capitalismo se desenvolve, as diferentes categorias sociais (pequeno-burguês, artesãos, camponeses) são, por sua vez, proletarizadas.

Por fim, a sociedade se assemelha a um enorme ateliê em que um punhado de capitalistas mantém em escravidão o imenso exército do proletariado.

Uma escravidão de certa forma pior que a escravidão propriamente dita da Antiguidade. Pois, diferente dos mestres de antigamente, o burguês não mais consegue assegurar uma existência material mínima a seus assalariados.

Nenhum dano caso morram de fome; eles serão logo substituídos, sendo a mão de obra abundante.

Enquanto o servo da Idade Média, e até mesmo o burguês, conseguiu se emancipar no curso do modo de produção feudal, promoção social semelhante é recusada ao proletariado.

Este, longe de aproveitar os aperfeiçoamentos tecnológicos e o crescimento da produção, vê sua posição piorar continuamente. O burguês se torna cada vez mais rico, o proletário, cada vez mais pobre.

Há, portanto, pauperização absoluta do proletariado, conceito-chave do comunismo científico.

A essa altura, não há outra saída senão a revolução, a inversão por via violenta da classe dominante, o que se prenunciava relativamente fácil de fazer, pois, como o aprendiz de feiticeiro, o capitalista tinha, ele mesmo, criado as condições de sua própria queda.

A socialização muito acentuada do trabalho conduzia implacavelmente ao comunismo. Restava um único e derradeiro movimento a ser feito: eliminar do alto da pirâmide social os ricos ociosos, alimentados exclusivamente do trabalho dos operários.

Era a missão histórica do proletariado, dirigido pelos comunistas.

A fase suprema da História deveria começar por um período de transição, que adotou mais tarde o nome de socialismo para se destacar do comunismo consumado.

Seu papel consistia na destruição, pela ditadura do proletariado, do Estado burguês, das instituições burguesas, do sistema econômico burguês, substituídos por novas estruturas.

Quais seriam essas novas estruturas de fato? Sobre esse ponto, pode-se admirar sempre a discrição do utopista, o laconismo de suas fórmulas.

De algumas frases esparsas, um vago retrato falado da sociedade comunista se delineia: igualdade social e igualdade entre nações (o que Condorcet já previra); a propriedade pertencerá a todos; o trabalho se tornará a primeira necessidade vital, uma necessidade instintiva; as forças de produção e a riqueza coletiva atingirão um grau extremamente elevado; não haverá mais oposição entre trabalho intelectual e trabalho manual; cada um será remunerado segundo suas necessidades!

A coerção desaparecerá — isto é, as estruturas estatais tradicionais.

O homem, livre e consciente, reencontrará sua dignidade; escapará à alienação própria aos sistemas baseados na exploração. A mulher que, casada ou não, não passa de um tipo de prostituta na sociedade capitalista, escapará também da opressão.

Será também o fim da religião, uma vez que os povos não precisam mais desse ópio.

Na verdade, como tantas concepções científicas globais do século XIX, o marxismo toma o lugar da religião, no sentido que constrói um mundo unitário e harmonioso onde o homem encontrará finalmente sua razão de existir.

É interessante notar que o termo ciência pôde ser pronunciado e acreditado (por tanta gente e durante tanto tempo) apesar dessa meia dúzia de ideias ocas sobre o futuro, que não decorriam de nenhum raciocínio demonstrável.

Para compreender a essência do fenômeno marxista, é preciso abstraí-lo de seu “verniz” científico. O que resta afinal não é nem mais nem menos que o sonho milenarista.

Quanto ao aspecto científico, basta confrontar as predições de Marx à evolução real da humanidade no século que deveria assistir à realização de suas profecias.

As revoluções comunistas marcaram profundamente a História do século XX. Elas traziam, aparentemente, uma confirmação irrefutável da demonstração de Marx.

Não passou de um simulacro. Para além de um folclore superficial, essas revoluções apenas contradisseram o esquema marxista.

Para Marx, o capitalismo alçado ao mais alto desenvolvimento deveria ruir para dar lugar ao novo mundo.

Ironicamente, foram sociedades pré-capitalistas, ou pelo menos semicapitalistas, dispondo de tecnologias modestas e de um proletariado pouco numeroso, e muito pouco consciente da missão histórica que lhe era atribuída, que passaram ao comunismo, ou ao tipo de tirania improvisada que adotou esse nome como adorno (Rússia, China, Europa do leste, Sudeste asiático, Cuba, sem falar na África).

Ademais, seria supérfluo dizer que nenhum dos traços sedutores da teoria comunista (auge tecnológico, abundância, trabalho enquanto prazer e segunda natureza etc.) foi encontrado, nem sequer como esboço, no comunismo real.

A História nunca tinha oferecido um afastamento tão considerável e trágico entre a aparência e a realidade de um fenômeno.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]