Os cidadãos britânicos ganharam acesso privilegiado aos bastidores da resposta de seu governo à pandemia. Cem mil mensagens do WhatsApp de Matt Hancock, que atuou como secretário da saúde do país entre julho de 2018 e junho de 2021, foram vazadas pela coautora de seu livro de memórias “Pandemic Diaries” (“Diários da Pandemia”, em tradução livre, 2022) para o jornal The Telegraph. Ele ocupou, portanto, o cargo do Reino Unido equivalente à de ministro da Saúde no Brasil nos primeiros 18 meses da pandemia, a fase mais crítica da crise de saúde global. Representantes de Hancock disseram que um acordo de confidencialidade foi violado com o vazamento.
Desde a semana passada (28), as revelações com base nas mensagens têm sido publicadas pelo Telegraph. Matt Hancock deixou um assessor oferecer tratamento especial para ao menos um político ter acesso a testes quando eram escassos, superestimou a cobertura da testagem, fez uma lista secreta de 95 parlamentares a serem pressionados para aceitar o lockdown, considerou usar um centro para deficientes como moeda de troca para obter o voto de um parlamentar a favor do lockdown, pediu que a polícia endurecesse contra quem furasse o confinamento, descartou a imunidade de rebanho como parte da estratégia, defendeu fechamento de escolas, ficou chocado que havia consultores científicos ganhando até um milhão de libras por dia (R$ 6,1 milhões, na cotação atual) do governo.
Hancock falou mal pelas costas da chefe da Força-Tarefa da Vacina porque ela questionou na imprensa sua promessa de vacinar toda a população em prazo arbitrário, e continuou a política chamada de “desumana” por uma colega de banir visitas a idosos, impondo solidão a eles. Ele também rejeitou conselho de especialista para testar toda pessoa que entrasse nos asilos de idosos, lançando dúvida na alegação do governo de que havia posto um “cordão de proteção” em torno do grupo vulnerável.
Algumas mensagens são pouco lisonjeiras sobre a impressão que o ex-secretário de saúde tinha de si mesmo. Ele fez elogios às próprias fotos na imprensa e via na pandemia um trampolim político para alturas maiores, rejeitou conselhos de dar trégua no isolamento porque “implicaria que estávamos errados”.
Muitos outros atores estão nas mensagens, inclusive o ex-primeiro-ministro britânico Boris Johnson. Na maior parte, Hancock não agiu sozinho.
Projeto do Medo e Lockdowns
Em 23 de março de 2020, o Reino Unido começou o primeiro de três lockdowns. O último foi encerrado mais de um ano após o início do primeiro. Boris Johnson pedia que os cidadãos ficassem em casa e prometia que a curva do crescimento e queda do vírus, que ele chamava de “sombreiro”, seria achatada em três semanas.
Como contou a Gazeta do Povo em fevereiro do ano passado, o governo britânico usou teorias de ciência comportamental, a conselho de especialistas, para manipular psicologicamente sua população a aderir ao lockdown por medo. Hancock participou disso. Em uma das mensagens vazadas, para um assessor em 13 de dezembro de 2020, ele planeja como superar uma possível resistência do prefeito de Londres a mais um lockdown. O assessor sugere usar uma nova variante. “Podemos fazer todos tremerem nas bases com a nova variante”, diz Hancock. “Sim, é isso que vai dar na mudança de comportamento apropriada”, responde o colega. “Quando acionamos a nova variante?”, pergunta o secretário da saúde.
As mensagens vazadas mostram que Liam Booth-Smith, hoje assessor especial do primeiro-ministro Rishi Sunak, tentou quatro dias antes do início do primeiro lockdown introduzir uma crítica à ideia de fechar o país. Booth-Smith via uma contradição na “lógica do lockdown”. “Se os negócios estão vendo sua renda cair”, disse ele em um grupo do WhatsApp, “isso sugere que as pessoas estão na verdade obedecendo [às regras de segurança] e não indo a restaurantes, lojas etc... Então, qual benefício adicional o ‘confinamento’ traz?”
Dominic Cummings, na época consultor político sênior de Johnson, respondeu que todos deveriam parar de usar o termo “lockdown” por ser confuso, e que o problema era definir o que seria uma atividade “não essencial”. No mesmo mês, Cummings violou as regras do confinamento e viajou para fora de Londres enquanto tinha sintomas de Covid-19.
Hancock e Sunak (então ministro das Finanças) defenderam Cummings na época, mas em mensagens privadas um ao outro se disseram aliviados por se livrarem dele em novembro daquele ano: “Um pesadelo que espero que nunca tenhamos que repetir”, disse Sunak. Estrategista político profissional, Cummings usou sua posição no governo para sua empresa de pesquisas ganhar um contrato de 580 mil libras (R$ 3,5 milhões), sem concorrentes, para monitorar a opinião pública durante a pandemia.
E foram pesquisas de opinião pública, não “seguir a ciência”, como dizia o governo Johnson, o que muitas vezes determinava o curso das decisões. Em 6 de junho de 2020, Boris Johnson mandou uma mensagem a Hancock dizendo que queria encerrar o lockdown antes que o pretendido. Ele queria promover um “dia da liberdade” que marcasse o fim das medidas restritivas. Mas dois assessores de imprensa com carreira nos tabloides Daily Mirror (Lee Cain) e The Sun (James Slack) aconselharam contra antecipar a reabertura porque isso estaria “muito à frente da opinião pública”. Hancock concordou: “Slack e Lee têm um bom argumento”.
Como Cummings, o próprio Hancock também caiu de sua posição por ter furado regras de confinamento em junho de 2021. Ele foi flagrado dando um beijo em sua amante, Gina Coladangelo, também oficial do governo e casada, hoje sua companheira. As mensagens vazadas mostram que ele também escondeu convites à amante para jantares do G7.
A menina dos olhos de Hancock na questão do confinamento foi seu plano de lockdown com zonas baseadas em prevalência da Covid em outubro de 2020. Foi em nome deste plano que ele ignorou uma mensagem de Helen Whately, ministra de serviço social. “Estou ouvindo que há pressão para banir visitas aos asilos na zona 2 e na zona 3. Você pode ajudar?”, escreveu Whately. “Eu me oponho a isso. Onde os asilos têm visitação segura contra Covid, devemos permitir. Impedir maridos de verem suas esposas porque elas por acaso vivem em asilos, por meses e meses, é desumano”.
“Ouvindo de quem?”, respondeu Hancock. “A zona 2 teve consenso ontem, até onde sei”. Whately repetiu sua opinião: “foi errado para os asilos”. Dias depois, quando as regras foram implementadas, a zona 1, de maior relaxamento, só permitia dois visitantes recorrentes por idoso. O segundo lockdown geral começou em 5 de novembro, com o governo permitindo que os asilos fizessem suas próprias políticas de visitação, uma parte dos quais chegou a banir todos os visitantes. A segunda onda da Covid, concomitante às medidas, foi a mais letal para os idosos do país. Quase todos os internos de asilos haviam sido vacinados em janeiro de 2021, quando Whately voltou a falar em relaxar as regras para visitações “dados os riscos de vidas perdidas pelos idosos desistirem [de viver], além de pela Covid”. Hancock respondeu “sim para as visitas, mas só depois de algumas semanas”. As visitações retornaram a um nível próximo da normalidade só seis meses depois.
Em novembro e dezembro de 2020, quando Hancock queria introduzir seu sistema de confinamento em zonas, muitos dos parlamentares conservadores, partido do governo, estavam ficando céticos quanto à eficácia das medidas. Os votos deles eram necessários na Câmara dos Comuns para o plano ser implementado. Foi então que, junto a seu assessor Allan Nixon, o secretário da saúde fez uma planilha com uma lista negra de 95 parlamentares resistentes do Partido Conservador. Os mais irredutíveis eram marcados em vermelho (57 deles), os mais persuasíveis em amarelo.
A estratégia discutida nas conversas privadas de Hancock e Nixon era ameaçar tirar verbas para projetos favoritos dos políticos caso não votassem com o governo a favor das zonas sanitárias. James Daly, parlamentar que representava o distrito de Bury Norte, na zona metropolitana de Manchester, tinha deixado claro que não estava contente com os lockdowns. Em mensagem de 22 de novembro, Nixon menciona que “James quer seu Centro de Deficiência do Aprendizado em Bury”, para deficientes mentais, e sugere que “a equipe da Saúde quer trabalhar com ele para entregar isso, mas fica fora de questão se ele se rebelar”. A resposta de Hancock: “sim, 100%”. Daly havia aparecido antes em fotos com Hancock dando a entender para seus eleitores que obras de saúde viriam para o distrito com a ajuda do secretário.
“Galinha sem cabeça” e a Força-Tarefa da vacina da AstraZeneca
Clive Dix, doutor em farmacologia e diretor executivo de uma empresa especializada em descobrir novos medicamentos, que chefiou a Força-Tarefa da Vacina do governo britânico, disse em artigo no Telegraph que Hancock era “o mais difícil de todos os ministros” porque não dedicava tempo a “entender coisa nenhuma”. O ministro parecia perdido, “meio como uma galinha sem cabeça”. A vacina da AstraZeneca, que foi aplicada no Brasil, enfrentou problemas de fabricação que levaram Hancock ao “pânico”.
“Ele não acreditava em nós”, escreveu Dix. “Estávamos trabalhando dia e noite para fazer a coisa funcionar, mas ele virava e dizia ‘eu disse que toda a população do Reino Unido será vacinada’. Mas não podíamos mudar a natureza do processo [de fabricação] e ele não entendia isso”. Em consequência, diz o profissional, Hancock acabou tomando para o país doses que eram destinadas à Índia, fabricadas no país em desenvolvimento, para cumprir “um cronograma arbitrário”. Essa atitude levou Dix a abdicar de sua posição.
Em outubro de 2020, quando a investidora de risco Kate Bingham, outra chefe da Força-Tarefa, disse ao Financial Times que no máximo metade da população britânica poderia ser vacinada no curto prazo, Hancock reagiu. As mensagens no WhatsApp mostram-no dizendo que o gabinete do primeiro-ministro “precisa sentar forte nela” pois ela teria uma “forma maluca de expressar” suas opiniões “e é totalmente indigna de confiança”. Em seu artigo, Dix considerou essa opinião injusta e “deplorável”. Bingham ganhou da Rainha o título de Dama, o equivalente feminino de Sir, em reconhecimento por seu trabalho com as vacinas.
As primeiras conversas sobre vacinas datam de fevereiro de 2020, quando uma reportagem alegou que Israel estava a semanas de desenvolver um imunizante. Dominic Cummings perguntou sobre a credibilidade da notícia aos consultores sêniores de ciência e medicina, respectivamente, Sir Chris Whitty e Sir Patrick Vallance. Vallance não deu crédito à notícia, acertadamente. Whitty comentou que “Para uma doença com uma mortalidade baixa (1%, a título argumentativo), uma vacina tem que ser muito segura, então não se pode fazer atalhos nos estudos de segurança”. O Reino Unido iniciou seu programa de vacinação em massa em dezembro de 2020, antes de fazer testes completos em humanos, que só começaram em janeiro de 2021.
Repercussão
Um porta-voz do primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak, disse que “é claro” que ele não gostaria que seus ministros se comportassem como Hancock, especialmente na ameaça do corte de verbas aos parlamentares.
O jornal Independent noticiou nesta quarta (8) que o vazamento motivou os ministros do governo Sunak, do Partido Conservador, a ligarem a função de deleção automática de mensagens no WhatsApp. Membros do partido Liberal Democrata acusaram os ministros de “se esconder por trás de mensagens que desaparecem”.
Delito contra a ética jornalística?
As mensagens de Hancock foram obtidas porque ele próprio confiou na jornalista Isabel Oakeshott, coautora de seu livro de memórias da pandemia, que as vazou para o Telegraph. Em texto publicado na semana passada, no dia em que o jornal começou a publicar matérias com base no material (28), ela se justifica citando um poema de luto de uma viúva deixado no Muro Memorial Nacional da Covid, em Londres: “Sei que sua vida poderiam ter salvado; O governo, se tivesse se comportado”. A viúva foi proibida de estar na companhia do marido em seu leito de morte e de vê-lo no funeral pelas políticas sanitárias.
Há no momento uma investigação pública independente da resposta à pandemia no país chefiada pela Baronesa Heather Hallett, juíza aposentada e membro da Câmara dos Lordes que também liderou um inquérito independente sobre os ataques terroristas de 7 de julho de 2005. Oakeshott julga que “podemos ter que esperar muitos anos antes que ela chegue a quaisquer conclusões. É por isso que decidi liberar esse arquivo chamativo de comunicações privadas — porque não podemos esperar mais por respostas”. A jornalista também teme que os resultados da investigação sejam inócuos devido aos esforços judiciais, com gasto de dinheiro público, para censurar nomes e proteger reputações.
Matt Hancock teria mandado para Isabel Oakeshott, logo após o anúncio do vazamento, na madrugada do dia seguinte (1º), uma mensagem “ameaçadora”, diz a jornalista. Dessa vez, ela não revelou o conteúdo da mensagem, mas aproveitou para dizer que também fez o vazamento pelas crianças, dando estatísticas que mostram que a saúde mental delas piorou bastante na pandemia por causa do fechamento de escolas do qual Hancock foi um dos proponentes. Ela também mostrou gráficos ilustrando o declínio das capacidades dos alunos em redação, gramática, matemática e ciência durante o mandato dele como secretário da saúde.
O ex-ministro da saúde acusa Oakeshott de “traição” e o jornal Telegraph de ter de alguma forma tirado de contexto ou manipulado as mensagens. Sobre o bloqueio à construção do centro para deficientes em Bury, um porta voz de Hancock disse à BBC que “o que foi acusado aqui nunca aconteceu”. Daly confirmou à BBC Manchester que a ameaça não foi cumprida, mas que ficou “muito decepcionado” ao saber da conversa. “Só pensar que alguém usaria possíveis verbas que poderiam ajudar alguém vulnerável na nossa comunidade para conseguir votos para o governo é simplesmente inaceitável”, completou.
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