A vitória folgada de Viktor Orbán para um novo mandato como primeiro-ministro da Hungria entusiasmou conservadores em todo o mundo, mas dentro desse espectro político há uma corrente em ascensão que celebrou mais. Trata-se daquela que reúne os defensores de uma ruptura na aliança entre o conservadorismo e o liberalismo econômico, duas linhas de pensamento que desde a Guerra Fria se uniram em vários países ocidentais a fim de se contrapor a um inimigo em comum, o comunismo.
Recentemente, intelectuais e defensores desse afastamento decidiram intensificar a divulgação de suas ideias por meio da publicação de artigos, maior atividade em redes sociais e pelo lançamento sites como o PostLiberal Order, termo que remete ao que pretendem: fortalecer uma direita que deixe para trás os dogmas liberais, o que a tornaria livre para usar um Estado grande e forte em prol da defesa da instituição familiar, de valores cristãos e de outras pautas conservadoras.
Por que o liberalismo passou a incomodar?
Os defensores dessa doutrina em construção partem da pessimista constatação de que os conservadores estão perdendo a guerra cultural, e se tudo continuar como está, serão extintos ou terão de se contentar com a irrelevância. A causa desse gradativo fracasso seria a aliança com o liberalismo econômico que, para eles, foi o único a ganhar na parceria. Afinal, hoje, o comunismo que os uniu é apenas um fantasma do que já foi, o Ocidente está mais rico do que era, mas os valores morais e a família — prioridade dos conservadores — estão definhando. Em parte, explicam, isso se deve ao veto imposto pelo liberalismo em se usar o poder do Estado para impulsionar uma determinada visão moral de mundo, já que para a maioria dos liberais contemporâneos o Estado ideal é mínimo e neutro.
Enquanto esses dois lados do que costuma se chamar de direita brigam entre si, a nova versão do inimigo que os uniu, a esquerda progressista, não gasta tempo ou energia com o dilema, mas se aproveita da confusão, impondo tanto sua visão econômica como sua visão cultural por meio do Estado, seja na nomeação de juízes e procuradores engajados em suas causas, no aparelhamento do funcionalismo público, na doutrinação ideológica em escolas e universidades e na aprovação de legislações anticristãs. Eles reclamam que a esquerda atual faz isso inclusive cinicamente, alegando que o Estado é neutro, mas agindo como se não fosse.
Hungria como modelo
Não há registro de que Orbán se identifique como “pós-liberal”, mas sua gestão é a mais admirada e citada como modelo pelos expoentes dessa nova direita, especialmente após a saída de Donald Trump do palco global. Gladden Pappin, por exemplo, que é professor de Política Pública na Universidade de Dallas e um dos cofundadores do PostLiberal Order, fez questão de estar em Budapeste para acompanhar as eleições húngaras. Ele celebrou o resultado com um texto intitulado Um terremoto do Fidesz sacode a Europa, em referência ao partido de Orbán.
Ao comentar a impressionante vitória do primeiro-ministro por uma margem de dezoito pontos, Pappin diz que o slogan adotado pela oposição progressista, “vamos trazer a Europa aqui para a Hungria”, era implausível até mesmo para Budapeste, mas “soava insano para um prefeito de cidade pequena levar ao interior da Hungria”. Ele conclui apontando para o desconhecimento e desconexão das forças progressistas em relação ao povo húngaro: “A retórica da oposição foi projetada para funcionar bem no Twitter anglófono, mas os comentaristas ocidentais não são eleitores nesta eleição”.
A análise traz em si um eco da vitoriosa campanha de Trump, em 2016, quando seus discursos e suas agendas privilegiavam trabalhadores de baixa renda, pessoas humildes, cultivadores de valores tradicionais que viam seus empregos serem ameaçados pelas ondas imigratórias e seus costumes serem ridicularizados por militantes de pautas identitárias. É nesse ponto que os pós-liberais se aproximam de públicos que já foram os preferidos da esquerda, mas nas últimas décadas perderam espaço e atenção, como os operários.
Contra uma esquerda libertina e uma direita libertária
No ideário pós-liberal, pautas como a manutenção dos empregos em estatais ou mesmo a proximidade entre governo e sindicatos são perfeitamente conciliáveis com aquilo que consideram essencial: um Estado que reconheça o valor da religião, da autêntica cultura local e proteja a instituição familiar de engenheiros sociais que tentam destruí-la.
Pelo menos nos Estados Unidos, esse rearranjo de prioridades tem aberto a possibilidade de alianças consideradas inusitadas por muitos. É o caso da revista digital recém-lançada Compact, que uniu como fundadores o jornalista conservador Sohrab Ahmari, escritor, ex-editor do jornal New York Post e do Wall Street Journal; Mathew Schmitz, também conservador e ex-editor sênior do site católico First Things, e Edwin Aponte, que se declara marxista e em 2020 foi um dos fundadores do site de esquerda The Bellows. Na carta de apresentação do projeto eles afirmam defender um “estado social-democrata forte que defenda a comunidade — local e nacional, familiar e religiosa — contra uma esquerda libertina e uma direita libertária”.
Em 2019, aliás, Ahmari e Schmitz já haviam assinado juntos, unidos a outros intelectuais que compartilham de sua revolta contra o liberalismo, o manifesto que melhor sintetiza o dilema, pelo menos no contexto norte-americano. Intitulado Against the dead consensus (Contra o consenso morto), o texto publicado em vários sites de direita foi direcionado especialmente aos dirigentes do Partido Republicano, enfatizando que não era mais possível retornar ao velho consenso dominante na sigla até 2016, num claro recado aos políticos republicanos que se opunham ao modo de Trump governar e não queriam nem sequer que ele fosse o candidato do partido. No texto, os autores afirmam que o “o velho consenso conservador elogiou da boca para fora os valores tradicionais, mas não conseguiu retardar, muito menos reverter, o eclipse das verdades permanentes, da estabilidade familiar, da solidariedade comunal e muitos outros problemas”.
Pelo fim do Estado neutro
Para justificar seu argumento, os pós-liberais questionam ideias dadas como imutáveis pelas modernas democracias liberais, como a neutralidade do Estado, a visão do direito como mero instrumento pacificador e a separação exagerada entre política e religião. A melhor sociedade possível, para eles, não é aquela em que um Estado imparcial se limita a proteger os direitos e liberdades individuais, mas aquela em que a ordem política facilita a “boa vida”, para usar uma expressão da filosofia grega, notoriamente muito bem quista pelos divulgadores do pós-liberalismo.
O professor de filosofia política da Universidade de Notre Dame, Patrick J. Deneen, se destaca como um dos teóricos mais mencionados pelos simpatizantes dessa nova vertente, em parte, devido à enorme repercussão provocada por seu livro 'Por que o liberalismo fracassou?' (Ed. Âyiné), publicado em 2019 e traduzido para vários idiomas. Ele explica que para os pós-liberais, o Estado não devia se negar a fazer juízos de valor, simulando uma neutralidade total que é simplesmente impossível. Ao invés disso, ele afirma que o Estado ideal deveria garantir aos seus cidadãos as condições que lhes garantam, por exemplo, um casamento estável, um ambiente saudável para as crianças, uma comunidade religiosa e uma herança cultural consistente.
Formas de se alcançar esses objetivos na prática vem sendo frequentemente sugeridas pelos defensores e simpatizantes do pós-liberalismo em seus escritos. Um dos mais empenhados nessa tarefa é Nathan Blake pesquisador do think thank Ethics and Public Policy Center.
Para o público brasileiro, bem mais acostumado com um Estado grande do que os norte-americanos, algumas sugestões se assemelham com o que conhecemos há décadas, desde o governo de Getúlio Vargas, como as licenças-maternidade e paternidade ou o salário família. Há também aquelas tomadas por óbvias para qualquer governo conservador, como a de indicar somente juízes com posicionamentos notoriamente pró-vida e pró-família para as cortes superiores.
Outras, no entanto, revelam-se mais ousadas, como a ideia de forçar os sites pornográficos a implementarem sistemas eficazes para verificar a idade dos usuários; a destinação de pelo menos 5% do PIB para políticas de auxílio e promoção da família (exatamente como Orbán faz na Hungria); a isenção de impostos pessoais para pais e mães de famílias numerosas; subsídios para avós que cuidam dos netos de até dois anos de idade; flexibilização do expediente de trabalho para pais com filhos pequenos; selos ou certificados de turismo familiar para estabelecimentos turísticos que favoreçam clientes com filhos, além de medidas para reduzir o custo da vida familiar, como material escolar gratuito ou até mesmo programas de férias subsidiado para estudantes desfavorecidos.
É nessa prioridade absoluta dada à família que os pós-liberais se diferenciam dos conservadores nacionalistas. Embora estejam juntos na ideia de um estado forte, com predileção pela economia protecionista e sejam bastante cautelosos na acolhida de imigrantes, muitos dos nacionalistas atuais tendem a deixar questões morais em segundo plano. Um exemplo é a postura de Marine Le Pen, a candidata à presidência da França e líder do nacionalismo local. Ela se opõe vigorosamente às intromissões da União Europeia nas decisões do país, mas declara-se favorável ao aborto e mantém relativa distância de temas religiosos.
Naquele país, os pós-liberais preferem Marion Maréchal, a jovem ex-deputada e sobrinha de Marine Le Pen que rompeu com sua tia após as eleições de 2017, justamente por causa das posições hesitantes de Le Pen em temas como defesa da vida desde a concepção e a agenda LGBT. Nas eleições de 2022, Maréchal declarou apoio a Éric Zemmour, rival da tia no campo da direita.
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