Há uma semana, Lula afirmou que as pessoas não deveriam sofrer para garantir “a tal da estabilidade fiscal”. O mercado logo reagiu, e o Ibovespa já acumula perda de mais de 7% desde então, na casa de 107 mil pontos, e com a cotação do dólar próxima a R$ 5,50.
O risco-país saltou mais de 10% somente entre quarta-feira (16) e quinta-feira (17), alcançando 281 pontos. Para efeito de comparação, no auge das incertezas da pandemia da Covid-19, ele atingiu 330 pontos. Após a repercussão negativa, o petista afirmou nunca ter visto um mercado “tão sensível como o nosso”.
A cúpula do Partido dos Trabalhadores (PT) e aliados do presidente eleito também endossaram críticas ao mercado. “Esse pessoal não vai mudar o que fizemos na campanha. Não vamos fazer estelionato eleitoral. Para de mimimi. Esse mercado é uma vergonha, ninguém está passando fome no mercado”, afirmou Gleisi Hoffmann, presidente da sigla.
Lula afirmou ainda que “não adianta ficar pensando só em dado fiscal, mas em responsabilidade social. “Vai aumentar o dólar, cair a bolsa? Paciência. O dólar não cai por conta de pessoas sérias, mas dos especuladores”.
Contudo, ao contrário da narrativa do presidente eleito e de aliados, o mercado financeiro importa muito para o crescimento econômico, geração de empregos e para o próprio governo ter dinheiro para cuidar das pessoas por meio de programas sociais. Em dez pontos, entenda melhor essa relação.
1. O que é o tal "Mercado"?
O mercado vai muito além do que no jargão popular é conhecido como “Faria Lima”, centro financeiro do país. Ele pode ser definido como todo processo de interação humana de troca voluntária de bens e serviços entre os agentes econômicos. Entre esses agentes estão, por exemplo, indivíduos como você, leitor, eu, empresas como a Gazeta do Povo e trocas, como a assinatura para você ler esta matéria.
2. Qual o papel do mercado financeiro?
Dentro do ambiente econômico, há indivíduos com disponibilidade de recursos, os poupadores. Como o valor do dinheiro tende a depreciar ao longo do tempo, especialmente em um país com histórico de inflação como o Brasil, a busca por investimentos é necessária para manter o poder de compra, bem como buscar alguma rentabilidade real.
De outra parte, há os tomadores, que são agentes econômicos que necessitam de capital para investir nos mais diversos projetos, como empresas, infraestrutura, produção de bens e serviços, inovações, contratações de funcionários, publicidade, entre outras ações inerentes aos negócios.
Nesse sentido, o mercado financeiro nada mais é do que uma ferramenta que conecta poupadores e tomadores, de forma a otimizar a alocação de recursos e o fluxo de capitais. Ele permite que indivíduos diversos possam proteger seu dinheiro da inflação e buscar rentabilização ao investir em grandes projetos de economia real.
Nesse sentido, é possível a captação de recursos de forma célere, transparente e acessível.
3. Como as empresas se utilizam o mercado para financiar seu crescimento
Até outubro de 2022, por exemplo, as emissões por empresas no mercado financeiro acumularam R$ 444 bilhões, de acordo com levantamento realizado pelo Banco Inter com dados da Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais). Eles foram emitidos por meio de ações, debêntures, fundos imobiliários, notas de crédito e securitizações.
São organizações empresariais captando recursos para se expandirem, buscar escala, produzindo serviços e produtos melhores, gerando empregos em novos projetos.
4. Governos também dependem do mercado para se financiarem
Mas não são apenas empresas que utilizam do mercado para se financiarem, mas também o próprio governo. Afinal, o Estado não se financia somente por meio de carga tributária.
“A origem do mercado de títulos públicos nasceu exatamente com a necessidade de governos equacionarem receitas e despesas em um cenário de conflitos e guerras na Europa. Ao invés de imprimir moeda e gerar problemas de inflação, foi pensado em um instrumento para fazer a própria população que poupa dinheiro e recurso para aplicar pensando no futuro em troca de pagar juros para os compradores desses créditos”, explica Tiago Pessotti, estrategista-chefe da Apex Partners.
Hoje o governo se financia por meio do Tesouro Direto, havendo três diferentes instrumentos: as LFT (Letra Financeira do Tesouro), as Nota do Tesouro Nacional tipo B (NTN-B) e as Letras do Tesouro Nacional (LTN), cada uma com suas peculiaridades.
“Os leilões do Tesouro acontecem praticamente toda semana. Há um calendário em que já é programado onde o governo buscará captar dinheiro e quanto em cada um”, afirma Pessotti.
Grande parte do volume dos títulos públicos são financiados por fundos de pensão em virtude da relação risco e retorno porque elas miram o longo prazo. “São fundações de capital misto e empresas privadas, além de muitos fundos de pensão de servidores municipais”, diz.
Apesar de haver fundos estrangeiros que participam desses leilões, a maior parte dos participantes são brasileiros. Nesse sentido, se o governo eventualmente der um calote e não honrar com os compromissos da dívida — como o Estado brasileiro já fez em cinco oportunidades, a última no Governo Sarney, em 1987 — os maiores prejudicados serão os brasileiros que aguardavam receber a própria aposentadoria.
5. Como funcionam os leilões do governo no mercado?
Os leilões são influenciados pelos juros futuros, que determinam a precificação de quanto vai ser remunerado por cada título. “Ou seja, quanto maior a percepção de risco sobre um governo não honrar seus compromissos, mais o governo terá de pagar para esses títulos, e automaticamente maior será o custo financeiro da dívida”, afirma Pessotti.
Em última análise, se há a percepção de que o governo não está sendo responsável pelo fiscal, os compradores desses títulos podem diminuir o apetite para os leilões, com o governo arrecadando menos do que a meta de cada leilão. “Como a máquina pública precisa continuar se financiando, as taxas precisam se tornar mais atrativas, aumentando o custo de financiamento da dívida pelo governo”, finaliza Pessotti.
6. Lula sabe da importância do mercado financeiro
Em 2008, por exemplo, Lula comemorou quando o Brasil ganhou grau de investimento pelas agências de avaliação de risco, pois isso significaria atrair muito mais dinheiro para cá. Nas palavras dele próprio, o país vivia um “momento mágico”:
“O Brasil foi declarado um país sério, que têm políticas sérias, que cuida das suas finanças com seriedade e que, por isso, passou a ser merecedor de uma confiança internacional que há muito tempo necessitava".
Em virtude de erros da política econômica no Governo Dilma Rousseff, com sucessivos déficits primários a partir de 2012, o Brasil perdeu o grau de investimento, restringindo a entrada de capital estrangeiro para o país. Até hoje, aquele grau de confiança no Brasil nunca mais foi atingido.
7. Mercados financeiros bem desenvolvidos geram economias mais robustas
O estudo “Finance and Development: A Tale of Two Sectors da American Economic Review”, publicado na American Economic Review, demonstrou a causalidade entre um mercado de capitais bem desenvolvido e o desenvolvimento econômico de um país. Isso porque o enriquecimento de um país é influenciado pelo nível do estoque de capital (poupança), assim como pela alocação eficiente desses recursos de forma que resulte em aumento de produtividade.
Os pesquisadores demonstraram empiricamente que parte da diferença de prosperidade econômica entre os países desenvolvidos e emergentes é explicada pela diferença do nível de desenvolvimento do mercado de capitais. Os países em desenvolvimento registram, em média, empresas de tamanhos menores do que países desenvolvidos por não haver capital mais barato disponível para empresas.
Isso ocorre porque não conseguem financiar o próprio crescimento, isto é, dependem apenas das receitas para crescer organicamente. Já em países desenvolvidos, em que há mais possibilidades para financiar esse crescimento a partir de um ecossistema de serviços financeiros mais bem desenvolvido, a média de tamanho das empresas é maior.
8. O mercado financeiro menospreza o papel social do governo?
“De forma alguma”, resume Aod Cunha, doutor em economia, ex-diretor do JP Morgan e ex-secretário da Fazenda do Rio Grande do Sul.
“O mercado financeiro ganha muito mais quando o cenário futuro é de mais crescimento e aumento dos investimentos e lucros das empresas. Esse cenário somente pode se confirmar com um ambiente de estabilidade de inflação, taxas de juros baixas e onde as pessoas estejam satisfeitas com o governo e o país que vivem”, explica.
Como alguém que integrou por muitos anos instituições financeiras, ele afirma acreditar que a grande maioria dos integrantes delas entende que o Brasil é um país com enorme déficit social e muita desigualdade, precisando melhorar a qualidade da educação e ter programas sociais que tragam maior igualdade de oportunidades para as pessoas, “independentemente de nascerem ricas ou pobres”.
“O que chamamos de mercado é composto por pessoas e instituições que se dedicam a estudar o que já deu certo e errado no Brasil e noutros países. E o que se sabe é que nenhum programa de melhoria social fica de pé se não houver um mínimo de responsabilidade fiscal. Se a inflação e juros sobem, quem mais sofre são os mais pobres, com a perda de renda e empregos”, afirma.
9. O mercado financeiro tem ideologia?
Aliados do presidente eleito criticam a postura do mercado financeiro diante da PEC da Transição, acusando o mercado de ser político e de oposição ao governo. Mas Helio Beltrão, presidente do Instituto Mises e podcaster da Gazeta do Povo, discorda.
“O mercado não é um sujeito malvadão sentado em um trono, mas milhões de indivíduos tentando proteger sua poupança. Não há espaço para torcida nem ideologia quando se busca retorno financeiro”, diz.
A opinião é corroborada pelo analista político Creomar de Souza, CEO da consultoria Dharma Politics. Questionado se Faria Lima tem preferência política por algum ator político, ele afirmou que “ela tem preferência por fazer negócio”.
“A grosso modo, o mercado tenderá a apoiar um governo ou um candidato que dê regras claras do jogo, ou em termos médios, a ideia de que há previsibilidade em termos de horizonte de negócios”, complementa.
Para ele, no ciclo eleitoral de 2022, foi possível visualizar um maior suporte em favor do governo Bolsonaro, que buscava a reeleição. “No meu ponto de vista, pela percepção de que a regra do jogo e o nível de interlocução construído por estes atores com o Ministro da Economia Paulo Guedes eram vistas como positivas”, afirma.
10. Responsabilidade social ou fiscal?
Todos os especialistas ouvidos nesta reportagem foram consensuais em relação a ser uma falsa dicotomia a afirmação de Lula de que “ou se escolhe responsabilidade fiscal ou responsabilidade social”. “As duas devem andar juntas: não há como fazer programas eficientes de transferência de renda sem controle da inflação”, afirma Aod Cunha.
Se as contas públicas ficarem fora de controle, a tendência passa a ser juros maiores e menor crescimento econômico. Apesar do discurso social, os mais prejudicados tendem a ser os mais pobres.
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